Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
119/03.6TBANS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HÉLDER ROQUE
Descritores: ERRO SOBRE OS MOTIVOS DO NEGÓCIO
CONTRATO DE CESSÃO DE QUOTAS
DEVER DE INFORMAR
Data do Acordão: 06/24/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ANSIÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 251.º; 252º , N.º 2; 289º, Nº 1; 292º E 293º ; 437º ; DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. O erro sobre a base do negócio consiste na representação de uma das partes, conhecida da outra e relativa a certa circunstância basilar respeitante ao próprio contrato, e que foi essencial para a decisão de contratar, sendo constituída pelas circunstâncias determinantes da decisão do declarante que, pela sua importância, justificam, segundo os princípios da boa fé, a invalidade do negócio, em caso de erro daquele, independentemente de o declaratário conhecer ou dever conhecer a essencialidade, para o declarante, dessas circunstâncias e, por maioria de razão, sem necessidade de os dois se mostrarem de acordo sobre a existência daquela essencialidade.
2. Tendo os autores celebrado o contrato de cessão de quotas da sociedade proprietária de um estabelecimento comercial, por estarem convencidos que este poderia continuar a laborar, enquanto condição necessária e insuperável, com base na escassez dos elementos informativos de que dispunham, mas que implicavam uma muito considerável diminuição do valor do estabelecimento, devido a impossibilidade de obtenção de licença de utilização para o mesmo, cuja essencialidade os primeiros réus não desconheciam, incorreram em erro que assumiu um papel determinante na decisão de contratar.
3. A obrigação de informar existe quando resulta das negociações a sua essencialidade para a formação da vontade negocial do declarante, como acontece, por exemplo, no caso de ele pretender condicionar a celebração do negócio a determinada afectação da coisa.
4. Incidindo o erro sobre as qualidades do estabelecimento, as condições factuais e jurídicas que, pela sua natureza e duração, influem no valor ou no préstimo desse bem, traduzem-se em qualidades substanciais e relevantes que consubstanciam um erro sobre o objecto e não um erro sobre os motivos determinantes da vontade, relacionado com a base do negócio.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

A....e esposa, B...., residentes no nº 8, Chemin de L´Olifan, Vienne, França, propuseram a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra C....e esposa, D...., residentes no Largo de São Lourenço, ……, e E....e esposa, F...., residentes em 67, Boulevard Henri Barbusse, Houilles, França, pedindo que, na sua procedência, os primeiros réus sejam condenados [a] a reconhecer que o contrato efectuado com os autores é nulo, porquanto se tratou de um negócio simulado, já que o negócio pretendido era, não a cessão de quotas, mas sim o contrato de trespasse do estabelecimento comercial, [b] a reconhecer que, somente, celebraram o contrato de cessão de quotas, pelo preço de 9.000.000$00, porquanto era o preço equivalente ao valor das quotas que os primeiros réus possuíam, no capital da sociedade “G....”, [c] a reconhecer que, não tendo os primeiros réus transmitido aos autores que os alvarás de café e do restaurante se encontravam caducados, há já alguns anos, e que o estabelecimento comercial não podia reabrir, por não verificação das características de salubridade, solidez e segurança, que já haviam participado à Câmara Municipal e aos segundos réus as vicissitudes alegadas na petição inicial, que já haviam ocorrido vistorias desta entidade e, confirmado as mesmas, e, constituindo a existência dos alvarás válidos, condição de abertura e exploração do estabelecimento, por si ou por terceiros, que ao procederem de forma indevida à venda do imobilizado, se verificou erro para os autores sobre as circunstâncias da base negocial e, portanto, têm os autores direito, caso não proceda a nulidade invocada, a ver declarado resolvido o contrato, com base na alteração anormal das circunstâncias, atento o erro havido, [d] a reconhecer que, tendo omitido, de forma voluntária e consciente, a situação em que se encontrava o estabelecimento comercial de que era arrendatária a sociedade que representavam, actuaram com dolo ao convencerem os autores de que o estabelecimento se encontrava apto a funcionar e, portanto, é também anulável, [e] e (uma vez declarado nulo o contrato celebrado, ou, em alternativa, sendo o mesmo resolvido) restituir aos autores as quantias entregues, a título do preço, ficando eles com o estabelecimento, e os segundos réus condenados [f] a (uma vez que não procederam às obras alegadas e que lhes incumbia efectuar) reconhecer que incumpriram o contrato de arrendamento efectuado à sociedade “G....”, aqui representada pelos autores, já que impediram o gozo do arrendado, de manter aberto o estabelecimento, [g] a restituir aos autores todas as rendas recebidas, até à presente data, e contabilizadas desde Fevereiro de 2002 até Fevereiro de 2003, e que totalizam a quantia de 2.367,17 euros, e bem assim como todas aquelas rendas que lhes venham a pagar, em consequência do contrato de arrendamento não cumprido, e todos os réus condenados [h] a reconhecer que, porque, somente, em finais de Agosto de 2002, os autores tiveram conhecimento dos factos relatados na petição inicial, estão em tempo para a dedução da presente acção.

Alegam, para o efeito e, em síntese, ter efectuado diligências, junto dos ora primeiros réus, que eram os únicos sócios da sociedade “G....”, no sentido de adquirir à dita sociedade o estabelecimento de café e restaurante que ela possuía, por trespasse, mas que, porque com o trespasse a sociedade tinha de dar conhecimento aos senhorios, a fim de estes poderem exercer o eventual direito de preferência, celebraram uma escritura pública de cessão de quotas, tendo constatado, quando se dirigiram à Câmara Municipal, a fim de requerer a abertura do estabelecimento, que o mesmo não podia abrir, visto que os alvarás haviam caducado, e que os primeiros réus já haviam apresentado queixa contra os senhorios, na Câmara Municipal, porque não se verificavam as condições de higiene e salubridade.

      Que os senhorios, os segundos réus, notificados para executar as obras necessárias à regularização das anomalias verificadas pela comissão de vistorias, nada fizeram, e que os primeiros réus, à data da negociação com os autores, bem sabiam que já não possuíam qualquer alvará válido que permitisse a laboração e que o estabelecimento sofria de vícios que impediam a abertura ao público, sendo certo que os autores, caso conhecessem a situação do estabelecimento, jamais efectuariam qualquer negócio.

Os primeiros réus contestaram, invocando que o negócio querido e, efectivamente, realizado foi a cessão de quotas da sociedade, e que aqueles deram conhecimento aos autores de todos os elementos relativos à sociedade e ao contrato de arrendamento, tendo estes, a partir da assinatura do contrato promessa de cessão de quotas, tomado posse de todos os bens da sociedade, sendo certo que, à data da assinatura do aludido contrato promessa, o estabelecimento estava aberto, em funcionamento, com todas as licenças e alvarás que eram necessários, e que os autores pretendiam adquirir a sociedade para disporem de uma posição privilegiada na aquisição do prédio onde o estabelecimento se localizava, que se encontrava à venda.

Na contestação dos segundos réus, estes negam que os autores tenham pago quaisquer rendas, alegando que a responsabilidade pelo deficiente funcionamento dos esgotos é da inquilina que, quando arrendou o espaço, assumiu a obrigação de proceder, à sua custa, a diversas obras.

A sentença julgou a acção, totalmente, improcedente, por não provada, e, em consequência, absolveu os réus C....e esposa, D...., e E....e esposa, F...., dos pedidos contra eles formulados, pelos autores A....e esposa, B.....
Desta sentença, os autores interpuseram recurso de apelação, terminando as alegações com o pedido da sua revogação, na parte que respeita ao negócio de aquisição da sociedade, ordenando-se, em consequência, a restituição do preço aos recorrentes, formulando as seguintes conclusões:
1ª - Os recorrentes residem em França.
2ª - Em Dezembro do ano de 2001 vieram a Portugal e procuraram comprar uma sociedade aos primeiros recorridos, seus sócios–gerentes, para adquirirem um estabelecimento de café e restaurante, sito no rés-do-chão de uma casa dos segundos recorridos que à sociedade tinham dado de arrendamento.
3ª - O locado não tinha saneamento e tinha gravíssimos vícios ou anomalias nos esgotos e nas fossas, de tal maneira que as águas sujas (urinas) ressumiam no pavimento.
4ª - O tecto da casa de banho tinha fendas, assim como as paredes que deixavam entrar água das varandas e das escadas.
5ª - Ao recorrente foram-lhe só mostradas as salas.
6ª - Os recorrentes, porque o restaurante estava a funcionar, agindo com boa fé e confiança, prometeram comprar a sociedade a conselho do seu advogado e seguiram para França onde tinham a sua vida e dos seus filhos.
7ª - Os primeiros recorridos não lhes deram qualquer informação sobre esses vícios e anomalias, auferindo, consequentemente de sua má fé a quantia de 45.000 €.
8ª - Tais vícios eram ocultos e obviamente que a casa foi limpa quando lá foi.
9ª - A falta de informação e o restaurante a funcionar levaram-no a cair no logro erro, sobre o objecto do negócio, que era, na sua essência a aquisição do restaurante com o locado.
10ª - Os recorridos exploraram a falta de experiência de negócios e ligeireza dos recorrentes, que como parte mais fraca e desembolsando 45.000 €, deveriam ser protegidos pelo Tribunal, que violou, entre outros, os artigos 487º nº2, 282º nº1, 251º, 247º e 252º nº2, do Código Civil.
Nas contra-alegações, que, apenas, os réus C....e esposa, D...., apresentaram, estes concluíram pela manutenção da sentença recorrida.
Na sentença apelada, declararam-se demonstrados, sem impugnação, os seguintes factos, que este Tribunal da Relação aceita, nos termos do estipulado pelo artigo 713º, nº 6, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz, acrescentando-lhe, porém, um novo, sob a alínea M), com base no acordo das partes, resultante da versão conjugada da contestação e da réplica, atento o preceituado pelos artigos 502º, nº 1, 490º, nº 2, 659º, nº 3 e 713º, nº 2, todos daquele diploma legal:
Os primeiros réus, à data de Janeiro de 2002, eram os únicos sócios da sociedade comercial por quotas “G....”, com sede no lugar de Mogadouro de Cima, freguesia de Santiago da Guarda, nesta comarca, cujo objecto social é o serviço de café, cervejaria e restaurante – A).
A sociedade comercial, referida em A), era constituída com o capital de 10.000.000$00, distribuído por duas quotas de 5.000.000$00, pertencendo cada uma a cada um dos primeiros réus – B).
Pela Câmara Municipal de Ansião, foi-lhe atribuído, em 25 de Fevereiro de 1992, o alvará de licença sanitária nº 382, para exploração de café e o nº 383, para exploração de restaurante – C).
A sociedade, referida em A), de que os primeiros réus eram os únicos sócios, possuía o estabelecimento de café e restaurante, instalado no rés-do-chão do prédio urbano, sito no lugar de Mogadouro de Cima, freguesia de Santiago da Guarda, e inscrito na matriz respectiva, sob o artigo 2487 – D).
O rés-do-chão fora dado de arrendamento à sociedade comercial, referida em A), por escritura, datada de 8 de Fevereiro de 1993, e celebrada no Cartório Notarial de Ansião, pelos seus donos, os segundos réus, E....e F...., residentes em 67, Boulevard Henri Barbusse, Houilles, França (documento de fls. 22 a 26, cujo teor a sentença se dá por, inteiramente, reproduzido) – E).
Em 4 de Fevereiro de 2002, no Cartório Notarial de Ansião, os autores e os primeiros réus celebraram uma escritura de cessão de quotas, nos termos da qual os réus, na qualidade de únicos e actuais gerentes da sociedade comercial por quotas G...., cederam aos autores as quotas que detinham nessa sociedade, com o valor nominal, cada, de 24.939,89 euros – F).
Nos termos do auto de vistoria nº1/98, levado a efeito pela Câmara Municipal de Ansião, ao estabelecimento, identificado em D), resultou que as instalações sanitárias possuíam deficiências de funcionamento, ao nível do escoamento dos esgotos; as descargas dos esgotos dos aparelhos sanitários das instalações sanitárias não tinham escoamento, aparecendo ao nível do pavimento; existiam infiltrações, na sala de refeições e instalações sanitárias, provenientes das varandas e escadas, tendo a Câmara Municipal de Ansião emitido parecer no sentido de que o estabelecimento de café-restaurante não assegurava as condições mínimas de salubridade, notificando o proprietário E....para proceder, no prazo de 30 dias, à execução das obras necessárias à regularização das anomalias verificadas – G).
A notificação, referida em G), foi enviada, em 13 de Janeiro de 1999, por carta registada, para a morada do segundo réu, em França – H).
A notificação, referida em G) e H), foi repetida, em 14 de Junho de 2000, na pessoa do Sr……, na qualidade de procurador do segundo réu – I).
A notificação, referida em I), foi repetida, em 11 de Outubro de 2001, na pessoa do Sr. Dr. ….., na qualidade de procurador do segundo réu, sendo a notificação para proceder a obras, no prazo de 60 dias – J).
No auto de vistoria nº 2/03, de 9 de Janeiro de 2003, foi emitido parecer no sentido de não ser concedida licença de utilização para o estabelecimento, identificado em D), (documento de fls. 109 cujo teor a sentença dá por, inteiramente, reproduzido) – L).
O preço da cessão de quotas, aludida em F), foi de 44891,81€ (acordo das partes) – M).
Posteriormente ao negócio celebrado e referido em F), os autores, enquanto representantes da sociedade “G....”, requereram uma vistoria ao estabelecimento, referido em D), cujo resultado está mencionado em L) – 1º.
Em 16 de Março de 2001, veio a ocorrer uma vistoria da Delegação de Saúde de Ansião ao estabelecimento, referido em D) – 4º.
A referida vistoria constatou que existiam anomalias nas instalações do referido estabelecimento, que consistiam em infiltrações na sala de refeições, algumas a atingir caixas eléctricas, instalações sanitárias com paredes e tectos, completamente, negros devido às escorrências, motivando um pavimento com água, e uma fissura no tecto da casa de banho – 5º.
Os primeiros réus, na qualidade de gerentes da sociedade “G....”, apresentaram queixa contra os segundos réus, como senhorios, nos serviços da Câmara Municipal de Ansião, em data anterior a 4 de Fevereiro de 2002 – 8º-A.
Os primeiros réus conheciam as anomalias das instalações do estabelecimento, referido em D) – 9º.
Os autores apenas celebraram o negócio referido com os primeiros réus, por estarem convencidos que o estabelecimento poderia continuar a laborar – 11º.
Os autores pretendiam adquirir o estabelecimento comercial, referido em D) – 17º.
À data da celebração do contrato promessa, entre autores e primeiros réus, em 31 de Dezembro de 2001, o prédio onde se encontrava instalado o estabelecimento estava à venda – 23º e 27º.
Em Dezembro de 2001, o estabelecimento comercial encontrava-se em funcionamento – 24º.
Os primeiros réus entregaram as chaves do estabelecimento aos autores, em data não, concretamente, apurada, mas compreendida entre finais de Dezembro de 2001 e inícios de Janeiro de 2002 – 26º.

                                                    *

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.

A única questão a decidir, na presente apelação, em função da qual se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do CPC, consiste em saber se a conduta dos primeiros réus foi causa de erro que atingiu os motivos determinantes da vontade, por se referir ao objecto do negócio ou à base do negócio celebrado com os autores.


           DO ERRO SOBRE O OBJECTO E SOBRE A BASE DO NEGÓCIO

Os autores alegam que o restaurante que prometeram comprar à sociedade “G....”, de que os primeiros réus eram os seus únicos sócios-gerentes, apresentava anomalias e vícios ocultos, de que estes lhes não lhe deram qualquer informação, e porque o restaurante estava a funcionar, levaram-nos a cair no logro e erro, por terem agido com boa fé e confiança, sobre o objecto do negócio, que era, na sua essência, a aquisição do restaurante com o locado.
 A este propósito, ficou demonstrado, no essencial que à questão decidenda importa considerar, que, pretendendo os autores adquirir o estabelecimento comercial de café e restaurante, que se encontrava à venda, titularidade da sociedade comercial por quotas “G....”, de que eram únicos sócios e gerentes os primeiros réus, instalado no rés-do-chão do prédio urbano que fora dado de arrendamento aquela sociedade, pelos segundos réus, seus donos, os primeiros réus prometeram ceder aos autores, em 31 de Dezembro de 2001, as quotas que detinham na mesma, acabando por se vir a celebrar a respectiva escritura de cessão definitiva, pouco mais de um mês depois, a 4 de Fevereiro de 2002, ascendendo o correspondente preço do contrato definitivo, a 44891,81€.
À data da realização do contrato-promessa de cessão de quotas, o estabelecimento comercial encontrava-se em funcionamento, tendo os primeiros réus entregue as respectivas chaves aos autores, o mais tardar nos primeiros dias do mês subsequente a essa promessa, sendo certo, igualmente, que estes apenas celebraram o negócio, por estarem convencidos que o estabelecimento poderia continuar a laborar.
 Porém, após a data da celebração do contrato definitivo de cessão de quotas, os autores requereram uma vistoria ao estabelecimento, tendo, em consequência, sido emitido parecer no sentido de não ser concedida licença de utilização para o mesmo.
Com efeito, já, em 16 de Março de 2001, anteriormente à data da realização do contrato-promessa de cessão de quotas, numa vistoria efectuada ao estabelecimento, pela Delegação de Saúde de Ansião, fora constatada a existência de anomalias nas instalações do mesmo, que consistiam em infiltrações, na sala de refeições, algumas a atingir caixas eléctricas, nas instalações sanitárias, com paredes e tectos, completamente, negros, devido às escorrências, motivando o pavimento com água, e uma fissura, no tecto da casa de banho.
Entretanto, já o auto de vistoria nº1/98, levado a efeito pela Câmara Municipal de Ansião ao estabelecimento, constatara que as instalações sanitárias possuíam deficiências de funcionamento, ao nível do escoamento dos esgotos, as descargas dos esgotos dos aparelhos sanitários das instalações sanitárias não tinham escoamento, aparecendo, ao nível do pavimento, a existência de infiltrações, na sala de refeições e instalações sanitárias, provenientes das varandas e escadas, tendo a Câmara Municipal de Ansião emitido parecer no sentido de que o estabelecimento de café-restaurante não assegurava as condições mínimas de salubridade, notificando o proprietário e ora segundo réu, por carta registada, enviada a 13 de Janeiro de 1999, para proceder, no prazo de trinta dias, à execução das obras necessárias à regularização das anomalias verificadas, notificação essa repetida, em 14 de Junho de 2000, e, em 11 de Outubro de 2001, na pessoa do seu procurador, vindo ainda os primeiros réus, que conheciam as anomalias das instalações do estabelecimento, a apresentar queixa contra os segundos, como senhorios, na Câmara Municipal de Ansião, em data anterior à da celebração da escritura de cessão definitiva.

Valendo o negócio jurídico, no mundo do Direito, como manifestação da autonomia privada, de acordo com a vontade dos sujeitos, esta tem que ser exteriorizada, para poder produzir os efeitos pretendidos.

Por via de regra, os dois elementos por que é constituída a declaração de vontade, isto é, o elemento externo ou a vontade declarada, e o elemento interno ou a vontade real, coincidem.

Porém, excepcionalmente, pode haver divergência entre aqueles dois elementos, por falta ou desvio de algum dos componentes em que se desdobram, o que compreende as situações de falta e dos vícios da vontade.

No caso dos vícios da vontade, que agora interessa considerar, trata-se de deficiências que afectam o processo gestativo da vontade negocial, que é determinada por motivos anómalos, que a desviam do modo julgado normal e são, e que o Direito valora como ilegítimos[1].

A vontade não viciada é a vontade esclarecida e livre, mas que pode deixar de o ser quando se determina por defeituoso conhecimento de causa, como acontece no caso do erro.

O erro é, assim, um dos mais importantes tipos de vícios da vontade, abrangendo, entre outros, o erro sobre os motivos determinantes da vontade, em relação ao objecto do negócio, a que alude o artigo 251º, e o erro sobre os motivos determinantes da vontade, em relação às circunstâncias que constituem a base do negócio, a que se reporta o artigo 252º, nº 2, ambos do Código Civil (CC).

Dispõe o artigo 251º, do CC, que “o erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, torna este anulável nos termos do artigo 247º”, isto é, “desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro”.

Se, porém, o erro do declarante recair nos motivos determinantes da vontade, não se referindo à pessoa do declaratário, nem ao objecto do negócio, incidir sobre as circunstâncias que constituem a base do negócio, é aplicável ao mesmo o disposto sobre a resolução ou modificação do contrato, por alteração das circunstâncias vigentes no momento em que o negócio foi concluído, por força do disposto no artigo 252º, nº 2, ou seja, haverá lugar à anulabilidade do contrato, nos termos do preceituado pelos artigos 437º a 439º, todos do CC.

Regressando à factualidade que ficou demonstrada, importa reter que os primeiros réus conheciam as anomalias existentes nas instalações do estabelecimento, ainda antes da celebração da escritura do contrato definitivo de cessão de quotas, tendo, por via disso, apresentado queixa, na Câmara Municipal de Ansião, contra os segundos réus, na qualidade de senhorios do locado.
Por outro lado, os autores apenas celebraram o contrato de cessão de quotas da sociedade, proprietária do estabelecimento comercial que pretendiam comprar, por estarem convencidos que este poderia continuar a laborar, sendo certo, porém, que, após a data da realização do contrato definitivo, ao requereram uma vistoria ao estabelecimento, foi emitido parecer no sentido de não poder ser concedida a licença de utilização solicitada, em virtude das aludidas anomalias, verificadas nas respectivas instalações.
Efectivamente, os autores, ignorando os vícios existentes nas instalações do estabelecimento que causaram a impossibilidade de laboração, na sequência do parecer negativo de não concessão camarária da respectiva licença de utilização, incorreram em erro que assumiu um papel determinante na decisão de contratar, porquanto apenas celebraram o contrato de cessão de quotas, por estarem convencidos que o estabelecimento poderia continuar a funcionar.
Ora, a limitação resultante das analisadas anomalias onera, sobremaneira, o estabelecimento, com diminuição manifesta do seu valor, desencadeando um erro que bem se pode dizer que atinge os motivos determinantes da vontade, consoante decorre da previsão constante do artigo 251º, do CC.
A representação que os autores fizeram do estado de satisfação e de funcionamento do estabelecimento, baseada na escassez dos elementos de que dispunham, em especial, devido à sonegação dos dados que os primeiros réus lhes não forneceram sobre a situação da sua profunda degradação, foi, absolutamente, determinante para a formação da decisão de contratar, o que não teria, de todo, acontecido, se estivessem a par das referidas circunstâncias.
Efectivamente, a obrigação de informar existe quando resulta das negociações a sua essencialidade para a formação da vontade negocial do declarante, como acontece, por exemplo, no caso de ele pretender condicionar a celebração do negócio a determinada afectação da coisa.
Ora, como já se referiu e resulta do quadro factual provado, os autores só celebraram o negócio, por estarem convencidos que o estabelecimento poderia continuar a laborar, ou seja, a operacionalidade do estabelecimento, para os fins da restauração a que se destinava, era condição necessária da vontade negocial daqueles, esclarecida e livre.
Na verdade, não tendo os primeiros réus informado os autores, devendo fazê-lo, acerca do estado de acentuada degradação física do estabelecimento, com o mais que previsível desfecho do seu encerramento, se nada fosse corrigido, e sendo convicção dos autores que o mesmo continuaria a poder laborar, como condição necessária da formação da sua vontade negocial, o comportamento dos réus é, outrossim, causa de erro dos autores, qualificado por dolo[2].

O erro que incida sobre os motivos determinantes da vontade, quer se refira à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, tem de ser sempre essencial, determinante, relevante, um erro que influencia a formação da vontade, e não um erro indiferente, por forma a que, sem ele, o declarante [errante] não teria querido o negócio, em termos absolutos, o que não acontece quando se admita estar disposto a celebrá-lo, embora em termos diferentes, afastando-se, assim, a ideia do erro, apenas, relativamente, essencial ou incidental.

O princípio da tutela da confiança do declaratário, com vista a evitar que seja traído na confiança depositada na declaração, por ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre o qual este veio a invocar o erro, obriga a que o declarante deva chamar à atenção do declaratário para essa essencialidade ou, pelo menos, a certificar-se que o declaratário se deu conta dela, pelo que se a este escapou essa essencialidade, o negócio deixa de poder ser anulado.
Por outro lado, é manifesto, por tudo quanto se expôs, que os primeiros réus, promitentes cedentes das quotas sociais, não podiam, nem deviam ignorar a essencialidade, para os autores, promitentes cessionários das mesmas, do elemento sobre que incidiu o erro, porquanto tal implicava uma muito considerável diminuição do valor do estabelecimento, desde logo, declarado inoperacional pela entidade camarária competente.
Quer isto dizer que os primeiros réus não ignoravam a essencialidade, para os autores, do valor do estabelecimento, reflexo da sua situação jurídica, resultante da inexistência das limitações verificadas, a que correspondia um determinado valor económico.
Está-se, por isso, perante um erro, absolutamente, essencial, causal ou determinante, que levou os autores a concluir o negócio, e não apenas nos temos em que foi celebrado[3].
De igual modo, se mostra preenchido o segundo requisito geral da relevância do erro, ou seja, a propriedade, porquanto a ignorância dos autores incidiu sobre uma circunstancia que se não traduz na verificação de um elemento legal da validade do negócio jurídico[4].

As hipóteses em que se pode afirmar que o erro incide sobre a base negocial, não se exigindo, nestes casos, uma cláusula limitativa que condicione a correspondência entre a previsão e a realidade, são aquelas em que revela a não verificação da pressuposição, sendo esta o estado de espírito do estipulante que não hesita em contratar como contratou, por se achar, absolutamente, seguro de que as coisas se passaram, estão a passar-se ou virão a passar-se de certo modo[5].

O erro sobre a base do negócio, em regra, de natureza bilateral, ou seja, de ambos os contraentes, consiste numa situação em que as partes representam, falsamente, as circunstâncias basilares respeitantes ao próprio contrato em que fundaram a decisão de contratar, e que foi essencial para a decisão de contratar, nos seus termos concretos[6].

Constituem base do negócio as circunstâncias determinantes da decisão do declarante que, pela sua importância, justificam, segundo os princípios da boa fé, a invalidade do negócio, em caso de erro daquele, independentemente de o declaratário conhecer ou dever conhecer a essencialidade, para o declarante, dessas circunstâncias e, por maioria de razão, sem necessidade de os dois se mostrarem de acordo sobre a existência daquela essencialidade.

Referindo-se o erro à base do negócio, não se exige o reconhecimento, por acordo das partes, sobre a essencialidade do motivo que determinou o erro, conforme está previsto no nº 1, do artigo 252º, do CC, sendo suficiente o conhecimento das partes a seu respeito.

Se o declaratário, sabendo que o declarante não teria querido celebrar o negócio, em termos diferentes, não aceita a vontade do deste, a sua oposição é irrelevante, pois que o declarante tem assegurada a anulação do negócio ou a sua transformação, em negócio de tipo ou de conteúdo diferente, nos termos do disposto pelos artigos 292º e 293º, do CC.

Assim sendo, trata-se de um erro que incidiu sobre as qualidades do estabelecimento, as condições factuais e jurídicas que, pela sua natureza e duração, influem no valor ou no préstimo desse bem, sendo certo que essa circunstância não deixa de se enquadrar no conceito de qualidades do objecto, de que os autores não tiveram conhecimento, mas cuja influência, quer pela sua natureza, quer pelo montante envolvido na sua recuperação, não pode, manifestamente, ser subestimado.

O erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira ao objecto do negócio, tem em vista a identidade do objecto, as suas qualidades, incluindo as suas qualidades jurídicas, o seu valor e o conteúdo do negócio, mas não o erro sobre a evolução futura do objecto.

Trata-se, assim, de qualidades substanciais e relevantes, dotadas de potencialidade anulatória do erro verificado, sobre o objecto do negócio.
Assim sendo, enquanto erro sobre as qualidades do objecto, consiste num erro sobre o objecto e não sobre os motivos determinantes da vontade, relacionado com a base do negócio[7].
Porém, ainda que assim não fosse, a aceitar-se a existência de uma situação de erro sobre a base negocial, a sanção que lhe corresponderia era a da anulabilidade e não a da resolução do contrato.
Efectivamente, sendo, no caso em apreço, o vício da vontade, anterior ou contemporâneo à formação do negócio, o sentido da remissão efectuada pelo nº 2, do artigo 252º, para o “…disposto sobre a resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias vigentes no momento em que o negócio foi concluído”, contemplado pelo artigo 437º, ambos do CC, visa, tão-só, os requisitos específicos neste último consagrados, ou seja, “desde que a exigência das obrigações assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato”, mas não a resolução, propriamente dita[8].

Embora a lei mande aplicar ao erro sobre a base do negócio o regime da resolução ou modificação do contrato, por alteração das circunstâncias, trata-se antes de duas figuras diferentes, pois que esta supõe um contrato já, validamente, formado, que será resolúvel, e aquele um contrato em formação, que se torna anulável.

Ora, decorre do disposto pelo artigo 289º, nº 1, do CC, que “tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente”.

Por isso, recai sobre os réus C....e esposa, D...., a obrigação de restituir aos autores as quantias por estes entregues aqueles, a título de preço, acrescidas de juros de mora, e aos autores a obrigação de abrir mão do estabelecimento comercial, entregando-o aos referidos réus, no estado em que o receberam.

Procedem, assim, em parte, as conclusões constantes das alegações dos autores.

CONCLUSÕES:

I – O erro sobre a base do negócio consiste na representação de uma das partes, conhecida da outra e relativa a certa circunstância basilar respeitante ao próprio contrato, e que foi essencial para a decisão de contratar, sendo constituída pelas circunstâncias determinantes da decisão do declarante que, pela sua importância, justificam, segundo os princípios da boa fé, a invalidade do negócio, em caso de erro daquele, independentemente de o declaratário conhecer ou dever conhecer a essencialidade, para o declarante, dessas circunstâncias e, por maioria de razão, sem necessidade de os dois se mostrarem de acordo sobre a existência daquela essencialidade.

II - Tendo os autores celebrado o contrato de cessão de quotas da sociedade proprietária de um estabelecimento comercial, por estarem convencidos que este poderia continuar a laborar, enquanto condição necessária e insuperável, com base na escassez dos elementos informativos de que dispunham, mas que implicavam uma muito considerável diminuição do valor do estabelecimento, devido a impossibilidade de obtenção de licença de utilização para o mesmo, cuja essencialidade os primeiros réus não desconheciam, incorreram em erro que assumiu um papel determinante na decisão de contratar.

III - A obrigação de informar existe quando resulta das negociações a sua essencialidade para a formação da vontade negocial do declarante, como acontece, por exemplo, no caso de ele pretender condicionar a celebração do negócio a determinada afectação da coisa.

IV – Incidindo o erro sobre as qualidades do estabelecimento, as condições factuais e jurídicas que, pela sua natureza e duração, influem no valor ou no préstimo desse bem, traduzem-se em qualidades substanciais e relevantes que consubstanciam um erro sobre o objecto e não um erro sobre os motivos determinantes da vontade, relacionado com a base do negócio.                                                     

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DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar procedente a apelação e, em consequência, declaram a anulabilidade do contrato de cessão de quotas, celebrado por escritura pública, em 4 de Fevereiro de 2002, no Cartório Notarial de Ansião, nos termos do qual os réus C....e esposa, D...., na qualidade de únicos e actuais gerentes da sociedade comercial por quotas “G....”, cederam aos autores A....e esposa, B...., as quotas que detinham nessa sociedade, condenando, igualmente, os mesmos réus a restituir aos autores a quantia por estes entregue, a título de preço, no quantitativo de quarenta e quatro mil oitocentos e noventa e um euros e oitenta e um cêntimos [44891,81€], acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação e até integral cumprimento, e os autores a abrir mão do aludido estabelecimento comercial, entregando-o aos referidos réus, no estado em que o receberam, confirmando, quando ao demais, a sentença recorrida.

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Custas, em ambas as instâncias, a cargo dos réus C....e esposa, D.....


[1] Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1966, 227 e 228; Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, 498 e 499.
[2] STJ, de 26-5-94, BMJ nº 437, 486.
[3] Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1966, 237 e 238; Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, 507.
[4] Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1966, 239; Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, 509.
[5] Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1966, 403 e 404; Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, 514, 515 e 605.
[6] Castro Mendes, Direito Civil, Teoria Geral, III, 1979, 212 e ss.; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 1987, 236.
[7] Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1966, 250 e 251; Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, 512 a 517 e nota 711; Ferrer Correia e Almeno de Sá, Oferta Pública de Venda de Acções e Compra e Venda de Empresa, CJ, Ano XVIII, T4, 15.
[8] Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1966, 247; Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, 514 e 515 e nota 702; Calvão da Silva, Compra e Venda de Empresas, CJ, Ano XVIII, T2, 9.