Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
33/05.0JBLSB-L.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RIBEIRO MARTINS
Descritores: DECISÃO INSTRUTÓRIA
ABSOLVIÇÃO DE INSTÂNCIA
“SITUAÇÃO TRIBUTÁRIA”
Data do Acordão: 05/13/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 307º DO CPP, N.ºS 2 E 4 DO ARTIGO 42º DO RGIT
Sumário: 1. A decisão instrutória de pronúncia tem como efeito a submissão do caso a julgamento e a delimitação do objecto quanto à decisão de mérito.
2. As questões que tenham já sido expressamente abordadas sobre a regularidade da relação processual ficam definitivamente resolvidas no processo, só restando ao tribunal do julgamento liberdade no plano da culpabilidade do arguido.
3. A expressão «situação tributária» constante dos n.ºs 2 e 4 do artigo 42º do RGIT seja sinónimo de «liquidação do imposto» pela Administração Fiscal enquanto acto susceptível de reclamação graciosa ou de impugnação judicial.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na Secção Criminal da Relação de Coimbra –
I –
1- No processo comum 33/05 do 3º Juízo Criminal de Leiria foi deliberado pelo colectivo dos juízes que procedem ao julgamento e proferido pela Juiz presidente na acta da sessão de julgamento de 13/1/2009 consequente despacho pelo qual se absolvem da instância os arguidos V..., A..., R..., J..., C..., «H…, L.da», «M…, L.da», «B... & Cª, L.da», e «S... – Hotelaria, L.da» relativamente às infracções fiscais de que foram pronunciados e, consequentemente, também os absolve da instância quanto ao pedido cível deduzido pelo Estado.
2- Recorre o Ministério Público, concluindo –
1ª. As razões que levaram o Presidente da Relação a ordenar a subida imediata do recurso do despacho de 10/10/2007 (que ordenara a separação do processo pelas infracções tributárias) valem igualmente quanto a este recurso,
2ª. Já que através dele se pretende também separar o processo pelas infracções tributárias, agora com o argumento da falta dum pressuposto processual traduzido no acto tributário de liquidação.
3ª. A que acresce a circunstância de começar a haver risco de prescrição do procedimento pelas infracções mais antigas.
4ª. A questão abordada no despacho recorrida já foi decidida pelo JI no sentido de que para o prosseguimento do processo pelas infracções tributárias não é necessário um acto tributário de liquidação.
5ª. Efectivamente –
a) Para o despacho recorrido aquele acto constitui uma condição de procedibilidade nos termos do artigo 42/4 do RGIT ao determinar que «não serão concluídas as investigações enquanto não for apurada a situação tributária ou contributiva da qual dependa a qualificação criminal dos factos». A interpretação feita pelo Ministério Público (a «fls. 12.328-12.336) do art. 45/ 5 da Lei Geral Tributária» é inconstitucional «por violar as garantias dos arguidos, lhes vedar o acesso à justiça tributária e violar a distribuição de competências entre Tribunais Comuns e Tribunais Tributários».
b) Para a Decisão instrutória o referido acto de «liquidação» não é necessário porque o MP procedeu ao apuramento dos valores através de perícias feitas por peritos da Administração Fiscal.
6ª. A diferença entre as duas decisões é, pois, ao nível da aplicação do direito –, acto tributário de liquidação como pressuposto processual para o Tribunal Colectivo ou como meio de prova para o Juiz de Instrução.
7ª. Não ao nível do ponto concreto mas do meio (Direito) para a resolver.
8ª. E isto apesar do tribunal recorrido invocar o argumento de que o JI não conheceu da questão do artigo 47º do RGIT suscitada pelos arguidos, desde logo por estes apenas terem deduzido as impugnações tributárias depois da decisão instrutória.
9ª. O despacho recorrido não resolve a questão da pendência das impugnações tributárias dos arguidos, limitando-se a invocar o aludido artigo apenas como justificação da interpretação que faz do artigo 42º/4.
10ª. A decisão do JI não foi objecto de recurso sendo na altura recorrível (Assento n.º 6/2000 de 19 de Janeiro).
11ª. Razão por que transitou em julgado (artigo 677/ 1 do CPC e artigo 4º CPP).
12ª. E portanto como uma decisão definitiva para o processo (art.º 672º do CPC) obstava à aplicação do artigo 338º/1 do CPP sobre a mesma questão.
13ª. Pelo que se violou não só caso julgado com também o art.º 338º/1.
14ª. Este também violado face ao momento em que o Tribunal Colectivo se pronunciou.
15ª. Efectivamente, se o Colectivo entendia que não estava preenchida a condição de procedibilidade que defende consagrada no artigo 42º/4 do RGIT, deveria tê-lo dito antes de invocar a violação do artigo 46º do RGIT para ordenar a separação do processo pelas infracções tributárias.
16ª. As questões prévias devem ser conhecidas na fase introdutória da audiência de julgamento ou na fase da sentença (artigo 368º/1).
17ª. Não colhendo a invocação do Acórdão do para Fixação de Jurisprudência nº. 2/95 ou os Acórdãos da RL de 23-11-1994 e da RP de 31-10-2001. O primeiro na medida em que se reporta a decisões tabelares. Os segundos por não explicarem o motivo por que apesar do «favor rei et libertatis» o legislador distingue as nulidades em absolutas e relativas nem como é que o despacho de pronúncia pode «desempenhar satisfatoriamente a sua missão se a todo o tempo pode ser alterado».
18ª. A isto acresce que a Relação, colocada perante a questão da separação do processo pelas infracções tributárias nos termos do artigo 46º do RGIT, por Acórdão de 19/5/2008 já decidiu que o julgamento se fizesse por todos os crimes da pronúncia.
19ª. Tudo como se este acórdão não devesse atentar na falta do pressuposto processual que agora se afirma existir.
20ª. Daí que se deva entender que não foi acatado o caso julgado do Acórdão de 19/5/ 2008.
21ª. Vício que traduz a inexistência jurídica do despacho recorrido (Acs. da RP de 17/2/1993 e da RG, de 28/6/2004).
22ª. Quanto à violação do caso julgado da decisão instrutória afigura-se-nos que a situação configura uma incompetência funcional e por isso uma nulidade absoluta (artigo 119º alínea e) do CPP).
23ª. O crime de fraude fiscal não é um crime de resultado prelo que a sua consumação se verifica independentemente da efectiva diminuição das receitas fiscais, apenas tendo de atender-se ao limite mínimo de €15.000 para a sua ocorrência.
24ª. É crime que dispensa qualquer acto de liquidação tributário para o seu preenchimento.
25ª. Ainda que no artigo 42º/ 4 do RGIT se pudesse ver a exigência dum acto tributário de «liquidação» e uma condição de procedibilidade, nunca esta condição relevaria no caso.
26ª. O mesmo sucedendo se nele se visse uma omissão de diligência probatória (Ac RL de 22/3/2006).
27ª. Efectivamente, para quê condicionar o conhecimento do mérito da pronúncia por crime de fraude fiscal a um acto que nada mais visa do que a quantificação do valor do imposto quando o crime se consuma independentemente da obtenção de qualquer valor?
28ª. A circunstância do valor superior a €15.000 ser elemento de punibilidade não dita que a «liquidação» seja um pressuposto processual em vez de meio de prova.
29ª. Um facto não pode simultaneamente ser pressuposto processual e objecto de prova com vista ao mérito da causa. Ou serve à prosseguibilidade da instância ou é objecto de prova com vista ao mérito da causa.
30ª. Mas não são apenas razões jurídicas que levam à conclusão da impossibilidade de qualificar o acto tributário de liquidação como um pressuposto processual.
31ª. Há também razões de política criminal evidenciadas na circunstância de pelo menos desde 27 de Julho de 1976 a vontade do legislador ser a de endurecer a luta contra a fraude fiscal e não criar obstáculos ao exercício da acção penal face ao cada vez maior desvalor ético dos crimes tributários.
32ª. Desvalor a que não é alheia a natureza supra-individual dos bens jurídicos protegidos nestes crimes.
33ª. Acrescem obstáculos processuais derivados do segredo de justiça, ainda que os inquéritos penais tributários sejam realizados pelos órgãos da administração tributária pois o acto tributário de liquidação obedece a um procedimento específico incompatível com as razões que podem determinar a preservação daquele valor processual.
34ª. Para além disto o despacho é incompatível com a autonomia da responsabilidade penal tributária relativamente à responsabilidade tributária.
35ª. Autonomia que deve levar-nos a dizer que em Portugal existe um Direito Penal Tributário e não um Direito Tributário Penal.
36ª. Embora tanto a declaração por parte da administração tributária dum direito de crédito tributário (procedimento de liquidação) como a afirmação por parte dum tribunal duma infracção tributária tenham como pressuposto comum um facto tributário, a afinidade termina aqui. No primeiro está em causa a obrigação principal nascida do facto e no segundo pode estar em causa apenas a violação duma mera obrigação acessória.
37ª. Enquanto o não cumprimento da obrigação principal dá origem a juros moratórios ou à instauração de processo executivo, a violação das obrigações acessórias pode nada ter a ver com o incumprimento da primeira.
38ª. A «liquidação», acto administrativo de natureza declarativa (art.º 36º/1 da LGT) apenas serve para determinar o «quantum» da obrigação principal e individualizar o seu sujeito passivo. A infracção tributária não visa directamente o cumprimento da obrigação de imposto.
39ª. Daí que se diga que pode haver infracções tributárias sem que seja devido qualquer imposto. E mesmo quando este seja devido não é o seu não pagamento que constitui infracção. A responsabilidade pela infracção e a responsabilidade pelo imposto são títulos autónomos de responsabilidade e de diferente natureza.
40ª. Importa notar que o fim do processo penal não é a cobrança de impostos. É dar consistência à ideia de que a criminalização das infracções tributárias é um imperativo dos Estados Modernos do ponto de vista ético e da sua danosidade social.
41ª. Avivar que o dever de contribuir é um pressuposto da existência duma convivência pacífica e também da própria subsistência dos outros direitos fundamentais.
42ª. Fazer depender o exercício da acção penal da prévia «liquidação tributária» seria retirar ao Direito Penal Tributário o papel exclusivamente virado para a tutela de bens e direitos fundamentais.
43ª. E esquecer que só um Direito Processual Penal Tributário que elimine os espaços impróprios da discricionariedade da administração tributária pode oferecer sólido fundamento ao controlo das ilegalidades do poder.
44ª. Com o crime de fraude fiscal não se visa um interesse de arrecadação tributária mas a defesa de valores colectivos indispensáveis à existência da sociedade.
45ª. O que tudo justifica que os tribunais superiores sejam unânimes em afirmar que o MP pode deduzir pedido de indemnização civil em processo penal tributário ainda que haja dívida tributária a ser judicialmente executada.
O STJ no Ac. de 6-1-2005 afirmou que o processo relativo àquele pedido nada tem «a ver com outro eventual processo que exista ou venha a existir destinado ao apuramento dos impostos em dívida, cuja quantia final poderá ser igual ou diferente da fixada na acção indemnizatória, fazendo-se depois as necessárias compensações»».
46º. É pacífica a autonomia do processo penal tributário relativamente a qualquer procedimento tributário seja ele ou não de «liquidação».
47.º Ainda que o acto deste devesse ser utilizado naquele processo como meio de prova da vantagem patrimonial ilegítima e do pedido de indemnização, nem assim ele poderia ser aceite sem mais em prejuízo dos princípios da presunção de inocência e do contraditório.
48ª. Tanto mais que se está perante um acto que pode assentar em presunções, estimativas, índices e outros elementos repudiados pela presunção de inocência que serve ao direito penal.
49ª. Para efeitos penais o que conta será sempre a vantagem patrimonial ilegítima que era idónea a ser provocada pelas condutas do artigo 103.º/ ainda que exista uma sentença a confirmar o acto tributário de liquidação assente nos referidos métodos e a mesma tenha a força do artigo 48.º do RGIT.
50ª. Do que segue que o valor que o Colectivo atribui a este artigo e ao que o precede não é tão grande como afirma, pois se não forem devidamente interpretados podem funcionar contra o arguido e os princípios estruturantes do processo penal.
51ª. A vantagem patrimonial ilegítima pode ser provada por qualquer meio de prova legalmente admissível (artigo 125º do CPP), nomeadamente [como já decidiu essa Relação pelo Ac. de 15/10/ 2008/ Relator Des. Jorge Gonçalves] por um relatório da inspecção tributária.
52ª. Acórdão que não cinge a prova ao acto tributário de liquidação nem o vê como condição de procedibilidade.
53ª. Perante matéria que envolve conhecimentos técnicos recorre-se ao meio de prova mais adequado – o pericial.
54ª. A interpretação que o Colectivo faz do artigo 42º/4 do RGIT não é a mais conforme com as regras da hermenêutica jurídica.
55/1) Gramaticalmente «apurar uma situação» significa «tornar puro», «escolher», «seleccionar», «averiguar: procedi a um inquérito e eis o que pude apurar». Não «liquidar um imposto». Se o legislador quisesse referir-se este acto teria utilizado a expressão «liquidação» como o fez noutras disposições do RGIT.
55/2) «Situação tributária» é um conceito técnico/jurídico que não é sinónimo de prestação ou imposto. Exprime uma realidade que preexiste a este, não se confundindo com a sua liquidação.
55/3) «Apurar a situação tributária» não é praticar um acto de liquidação tributária, mas tão só averiguar no inquérito todos os elementos que revelem a capacidade contributiva do arguido (art.º18/3 da LGT).
55/4) «Situação contributiva» é o conjunto de elementos que respeitando ao arguido/contribuinte se reportem à sua situação «considerada pela lei tributária como causa da obrigação de imposto» ou aos deveres fiscais acessórios que recaem sobre ele.
55/5) «Qualificar criminalmente» um facto é dizer o crime que ele integra, indicar o ilícito criminal a que deve ser subsumido; não referir se ele deve ser punido como crime ou contra-ordenação, até porque esta é uma realidade dogmática juridicamente diferente, «uma espécie de limite negativo de todo o direito penal.
55/6) Do que se segue que nunca se poderia dizer que a qualificação dos factos da acusação como crime dependia da realização dessa liquidação em virtude do crime de fraude fiscal prescindir da determinação de qualquer valor a título de imposto para a sua consumação (Ac. da RL, de 22-03-2006/ Relator Des/ Carlos Almeida).
55/7) Também não se pode dizer que a palavra «procedimento» do preceito em causa é «típica do procedimento administrativo ou tributário».
55/8) Pelo que não pode deixar de ser interpretada dentro do contexto em que está inserida.
55/9) Se assim se proceder, verificar-se-á que ela não se reporta a outra «coisa» senão ao apuramento da situação tributária ou contributiva.
55/10) Aliás a única palavra «procedimento» que tem o sentido de «procedimento tributário», como se verifica das considerações da Comissão Revisora do ARGIT, é a do nº 2 do mesmo artigo, para, como aí se afirma, se adaptar a terminologia desse preceito à LGT [e não, por exemplo, ao CPPT, já que este, ao invés daquela e quanto à expressão pela mesma utilizada «processo tributário», fala de «processo judicial tributário», cfr., v.g., art.º1.º alínea a)].
55/11) Por outro lado também a génese e a evolução legislativa que precederam o preceito (artigo 42º/ 4 do RGIT) parecem rejeitar a interpretação da posição recorrida -
a) A génese -, na medida em que o mesmo nunca teve a importância que aquela posição ( do tribunal colectivo ) lhe atribui, tendo o respectivo preceito sido introduzido à «última hora» no ARGIT apenas «para ir de encontro a preocupações manifestadas» aquando da revisão do respectivo artigo;
b) A evolução legislativa antecedente, na medida em que o conceito «situação tributária» era autonomizado de «acto tributário de liquidação» pelo menos no Dec-Lei nº 619/76 que via nessa situação uma realidade comprovável por documento; e no RJIFNA onde nunca foi visto o art.º 50º como pressuposto processual.
55/12) Acresce que mesmo quando a lei exigiu ao MP o dever de indicar na acusação o valor dos impostos, nunca o impediu de para isso recorrer à prova pericial.
55/13) De salientar que mesmo para efeitos tributários acto de liquidação e acto de apuramento de situação tributária são realidades autónomas integradoras de diferentes procedimentos tributários:
a) Quando se fala do primeiro destes procedimentos tem-se em vista a actividade da administração tributária prevista, entre outros, nos artigos 54.º/1 alínea b) da LGT e 59º a 64º do CPPT conducente à identificação do sujeito passivo (lançamento subjectivo), à determinação da matéria colectável (lançamento objectivo) e à liquidação propriamente dita dos tributos (liquidação em sentido estrito);
b) Do segundo fala-se para se designar aquela actividade regulada, entre outros, nos artigos 63º/1 e 69º da LGT e no RCPIT através da qual se visa a recolha pela inspecção tributária de dados respeitantes à verdadeira capacidade contributiva, actividade que pode tanto ser desenvolvida a nível interno ou externo e de uma forma geral ou polivalente, como servir à concretização do procedimento de liquidação.
55/14) Aliás que o apuramento em causa não é um acto de computação de qualquer imposto mas um conjunto de actos para a recolha de dados que permitam nomeadamente avaliar do dever que recai sobre todos os cidadãos de, ponderando os seus rendimentos e património, contribuírem para as finalidades acima referidas, extrai-se do próprio RGIT quando sanciona os comportamentos que inviabilizem os meios através dos quais aquela recolha de dados deva ser efectuada (cfr. artigos 103º. e 113º.) e, se se quiser, inclui o referido apuramento nos meios de prova do processo de contra-ordenação conforme resulta do artigo 72.º/1 (ao dispor que «o dirigente do serviço tributário juntará sempre ao processo os elementos oficiais de que disponha ou possa solicitar para esclarecimento dos factos, designadamente os respeitantes à situação tributária ou contributiva do arguido).
55/15) Tudo leva a qualificar o acto de apuramento da situação tributária ou contributiva como um acto investigatório, ou seja, um acto semelhante ao desenvolvido pela inspecção tributária no âmbito dos poderes que lhe são conferidos pelos artigos 63º da LGT e 28/ 2 do RCPIT.
55/16) Tanto mais que o contexto do art.º42/4 não leva a outra conclusão e o preceito encontra-se inserido num artigo que não cura senão do inquérito realizado pela administração tributária.
55/17) Porque é um acto investigatório que está em causa o RGIT não suspende quer o prazo da realização do inquérito penal tributário quer o da prescrição do procedimento criminal (art.º21/ 4).
55/18) De resto mesmo que fosse um acto de liquidação de impostos nunca este acto poderia ser praticado pela administração no exercício do seu « jus imperii » de liquidar tributos e desta forma externamente ao processo penal, mas como órgão de polícia criminal nesse processo.
55/19) Acresce que a interpretação do despacho recorrido conduz a antagonismo fazendo com que nunca possam existir inquéritos cujo prazo de 8 meses de realização possa correr ininterruptamente e o artigo 42º/1 nunca tivesse aplicação.
55/20) Efectivamente se o nº4 do artigo consagrasse como pressuposto processual a prática do acto tributário de liquidação [acto que apenas pode ser praticado no procedimento tributário respectivo -, art.º54º/1 alínea b) da LGT] quando é que o inquérito seria encerrado no prazo máximo de 8 meses sem a suspensão do nº 2?
55/21) Como é que este número prevê a hipótese de não haver procedimento tributário se [ na interpretação do Colectivo] as investigações nunca podem ser concluídas sem este procedimento?
55/22) Finalmente a interpretação do Colectivo vai contra o que resulta do artigo 45º/5 da LGT onde expressamente se prevê a existência de processo penal tributário sem o procedimento tributário de liquidação.
55/23) E não custa compreender que a lei ponha a cargo dos órgãos da administração tributária com competência delegada para o inquérito o dever de apuramento da situação tributária ou contributiva.
55/24) É que são essas autoridades pelas especificidades da actividade que exercem que estão em melhores condições de com rapidez dotar o inquérito dos elementos necessários ao apuramento da situação tributária relevante para a qualificação criminal dos factos em investigação.
55/25) Tudo para que o arguido se possa defender e possa ser confrontado com as investigações.
56ª. Nem se diga que a não haver lugar ao julgamento em separado, esse julgamento não deve ter lugar já que a apresentação de impugnações judiciais «terá como consequência a suspensão do processo penal tributário na parte em que a matéria nele discutida seja afectada pela decisão que tais impugnações vierem a merecer dos Tribunais Tributários» e que «tal suspensão determina a separação dos processos».
57ª. Antes de mais porque para que a suspensão do processo penal tributário possa ter lugar torna-se necessária a verificação cumulativa de dois pressupostos -, o decurso dum «processo de impugnação judicial» ou de «oposição à execução» e que nesses processos «se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados».
58ª. De impugnação judicial nos termos do CPPT só se pode falar quando se esteja perante o processo previsto pelos seus artigos 99º e sgs., por isso um processo através do qual se vise atacar um «acto praticado pela administração tributária para obter a declaração da sua inexistência ou nulidade ou a sua anulação».
59ª. Por sua vez questão prejudicial só existe quando o acto praticado pela administração tributária sobre o qual recai a impugnação judicial seja de molde a contender com o mérito da pretensão punitiva.
60ª. Do que se segue que a suspensão do processo penal tributário não dispensa um despacho a apreciar se se verificam os aludidos pressupostos.
61ª. O que não contraria a doutrina do Acórdão do S.T.J. de Fixação de Jurisprudência nº. 3/2007 na medida em que a suspensão do processo apenas deverá ter-se por automática a partir da apresentação das impugnações e reconhecida a virtualidade da causa apontada como determinante para aquela suspensão.
62ª. Ora aquilo que os arguidos e o Tribunal Colectivo chamam de impugnação tributária nada tem de tal.
63ª. Pela simples razão de que os processos que os arguidos instauraram (apenas cinco dias antes de julgamento e depois de negadas todas as suas pretensões em sede instrutória) não dizem respeito a qualquer acto tributário mas aos próprios factos da pronúncia, bem como dos relatórios periciais capciosamente qualificados como «liquidações efectuadas pela DGCI» («vide» fls. 14.747)
64ª. E como é bem de ver não é pelo facto desses actos terem sido por eles qualificados dessa forma que os mesmos passaram a revestir a natureza que não possuem.
65ª. Por outro lado e ainda que algum dos Tribunais Tributários dos pretensos processos de impugnação viesse a conhecer da referida matéria (despacho de pronúncia, quanto à parte tributária e respectivos relatórios periciais) nunca a sua decisão teria alguma eficácia no presente processo pois é à jurisdição penal que incumbe conhecer das causas penais.
66ª. Efectivamente nessa hipótese ter-se-ia que entender que se estava perante decisão juridicamente inexistente, totalmente inidónea a produzir efeitos jurídicos.
67ª. Mas será que não obstante o exposto, os demais argumentos aduzidos pelo Tribunal recorrido a propósito dos artigos 47º e 48º conduzem a que se deva ver no artigo 42º/4 um pressuposto processual consubstanciado na prática de um acto tributário de liquidação? Não pelas seguintes razões -
68/1) Argumento de que os artigos 47º e 48º pressupõem que antes da decisão penal de mérito «há-de ser praticado acto susceptível de impugnação judicial ou de dar origem a execução fiscal à qual possa ser deduzida oposição» (fls. 16.55, último §) -
a) O artigo 47º e a sua história são bem inequívocos: suspender o processo penal tributário apenas quando em impugnação judicial ou oposição à execução fiscal se «discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados».
b) Ir para além disso é extravasar do artigo. É criar Direito e não aplicá-lo. O artigo admite que possa não estar a correr processo de impugnação judicial ou de oposição à execução.
c) É não ter em conta - 1) que a fraude fiscal prescinde de qualquer prejuízo; 2) que a responsabilidade penal tributária não se confunde com a responsabilidade tributária; 3) que a infracção tributária embora em regra parta dum facto tributário não se confunde com a obrigação principal, podendo haver processo penal sem o mesmo como pode o MP deduzir pedido de indemnizatório independentemente desse acto; 4) que os n.ºs 1 e 2 do artigo 42º admitem a inexistência de procedimento tributário e artigo 45º/ 5 da LGT também é claro neste sentido.
68/2) Argumento de que dos artigos 47º e 48º «infere-se a preferência da jurisdição fiscal para a apreciação das questões fiscais» -
a) O facto de se inferir a preferência não quer dizer que tenha de haver um acto tributário de liquidação e está igualmente muito longe de significar que o Juiz Penal nada saiba sobre a matéria;
b) De resto, mesmo que se tenha de ter em conta a sentença do tribunal tributário isto não significa que ela se imponha sem mais, nomeadamente se assentar em inversões do ónus da prova.
68/3) Argumento da «compreensão pela preferência da jurisdição fiscal para a apreciação das questões fiscais» por parte da jurisprudência (fls. 16.555 e sgs) -
a) É um argumento indiscutível, o que porém não significa que os artigos 47º e 48º tenham de ser sempre aplicáveis; podem não ser aplicáveis em virtude de, por exemplo, nos processos de impugnação judicial ou oposição à execução fiscal discutirem-se questões que contendem apenas com a medida da pena.
b) Por outro lado essa preferência não tem nada a ver com o condicionar ou não o exercício da acção penal à prática de um acto tributário;
c) Antes e tão só com a situação de estando a discutir-se em dois tribunais -, um deles especializado -, a mesma questão jurídica, deva dar-se prevalência ao tribunal especial.
68/4) Argumento da «consonância» da verdade material do processo penal «com a verdade obtida no procedimento e processo tributários» -
a) O argumento extravasa o âmbito dos artigos 47º e 48º para ver neles o que nos mesmos não se vê nem pode ver-se já que neles não se diz que os factos dados como provados nos referidos procedimento e processo devem ter-se como assentes;
b) De outro modo não valia a pena haver no processo penal julgamento pois bastaria juntar a certidão da sentença judicial tributária e aplicar aos factos nela narrados o Direito Penal Tributário, caso não estivessem em causa outros factos para além dos dela;
c) Por outro lado e sob pena de inconstitucionalidade, a verdade material do processo penal não tem necessariamente que coincidir com a verdade material fiscal a qual não pode deixar de ser sujeita no processo penal ao crivo do contraditório.
68/5) Argumento de que a suspensão do processo prevista pelo artigo 47º«tem garantia constitucional» surgindo como consagração da «garantia de defesa em processo criminal e de acesso à justiça tributária» e da «distribuição de competências entre tribunais comuns e tribunais tributários» (fls. 16.563) –
a) O artigo 47º tem a ver com a realização da Justiça Penal;
b) O acesso à Justiça Tributária, realçado pelo artigo 9ºda LGT, é garantido através de disposições da mesma, do CPPT e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais;
c) O que no referido artigo está em causa nada tem a ver com o artigo 212º/ 3 da CRP.
d) Mas tão só com uma excepção semelhante à do princípio subjacente ao artigo 7º/1 do CPP porque apesar da questão a resolver pelo tribunal tributário ter a ver com a essência da acção, com a existência de crime e revestir portanto natureza de questão material, através da decisão fora da jurisdição criminal se pode melhor «provocar a revelação da verdadeira natureza dum acto que tanto poderá ser criminoso como poderá estar coberto por qualquer preceito legal ou legítimo direito»;
e) Não existe processo que ofereça mais garantias que o processo penal.
68/6) Argumento de que «a norma do artigo 42º/4 está intimamente ligada ao artigo 47º demandando para que este possa ser aplicado que oportunamente tenha sido dado cumprimento a ele (fls. 16.564 e sgs) -
a) É evidente que no actual ordenamento jurídico o artigo 47º é fundamental para o processo penal tributário;
b) Só que a esta evidência deve acrescentar-se outra, a de que o artigo 47º só é fundamental se estiver a correr processo de impugnação judicial ou de oposição à execução fiscal e se no mesmo processo se discutir situação tributária da qual dependa a qualificação criminal dos factos.
c) Do que se segue que do artigo 47º apenas resulta a existência dum acto tributário de liquidação enquanto pressupõe, antes de mais, a pendência duma impugnação judicial ou duma oposição à execução fiscal e não que tenha que haver sempre o mesmo acto para que o processo penal tributário possa prosseguir para o conhecimento do mérito da pretensão punitiva.
68/7) Argumento de que «a norma do artigo 42/4 é aplicável ao inquérito realizado pelo Ministério Público» (fls. 16.565 e ss.) -
a) O preceito está inserido num artigo com uma epígrafe profundamente esclarecedora, não têm outro fim senão regular o inquérito a realizar pelas autoridades tributárias com competência delegada;
b) Não é por isso aplicável ao Ministério Público nem por aplicação analógica nem por interpretação extensiva;
c) O que não significa que o Ministério Público não deva, nos termos do artigo 262/1 do CPP, diligenciar pelo referido apuramento sempre que a situação tributária relevar para a qualificação criminal dos factos.
d) Ao Ministério Público como ao Juiz de Instrução é aplicável o artigo 47º.
68/8) Argumento de que a interpretação do artigo 42º/4 «no sentido de exigir um acto tributário de liquidação também se extrai do artigo 5º/5 do Dec-Lei nº 275-A/2000 de 9 de Novembro, na redacção do artigo 1ºdo Dec-Lei nº 304/2002 de 13 de Dezembro e do artigo 3º/3 do Dec-Lei nº 96/2003, de 30 de Abril» (fls. 16.566) -
a) O artigo 5º/5 do Dec-Lei nº 275-A/2000 foi revogado pelo que dele nada se pode extrair;
b) Ainda que se extraísse, nunca teria o sentido que o Tribunal lhe dá, mas o contrário, isto é, se na investigação dos crimes referidos na alínea ee) do n.º 2 do citado artigo 5.º a Polícia Judiciária deveria ser assistida por um funcionário designado pela administração tributária fiscal ou aduaneira, nomeadamente para efeito do cumprimento do disposto no n.º 4 do artigo 42.º, isto só significava que a assistência devia ter lugar no âmbito do inquérito a ser realizado pela Polícia Judiciária; e ainda que esse cumprimento fosse um acto de liquidação este acto nunca poderia ser o do procedimento tributário de liquidação na medida em que este corre autonomamente a qualquer processo nomeadamente o do inquérito; e
c) O artigo 3º/3 do Dec-Lei nº 93/2003 aponta também em sentido contrário ao pretendido pelo Despacho recorrido pois tem a ver com as informações provenientes das bases de dados da Direcção-Geral dos Impostos e da Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo e do Sistema Integrado de Informação Criminal da Polícia Judiciária, ou seja, com elementos que têm a ver com o apuramento da situação tributária, pelo que o «posto próprio» do preceito em causa não é demonstrar que o artigo 42º/4 do RGIT também é aplicável ao Ministério Público e que neste se consagra como pressuposto processual a obrigatoriedade da prática dum acto tributário de liquidação, sob pena de o processo não prosseguir e o arguido ter que vir a ser absolvido da instância.
68/9) Argumento de que «o cumprimento do artigo 42º/4 pelo Ministério Público sempre teria a cobertura do artigo 43º/ 2» -
a) O preceito apenas diz respeito ao que se pode designar por «inquérito delegado» dando ao Ministério Público o poder/dever de o complementar com «os actos que considerar necessários à realização das finalidades do inquérito» (fls. 16.569); b) Daqui até se concluir que o artigo 42º/4 lhe é aplicável vai uma grande distância. c) A posição do Tribunal «a quo» é contraditória confundindo duas realidades distintas, pois se nesse preceito se exige um acto tributário de liquidação para o prosseguimento do processo; se a sua aplicação ao Ministério Público tem a cobertura do art.º43º/2 que lhe dá o poder de praticar «os actos que considerar necessários à realização das finalidades do inquérito»; e se o inquérito tem, nos termos do artigo 262º/1 do CPP, como fins «investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação» -, então o que se qualifica como pressuposto processual é ao invés um acto de investigação.
68/10) Argumento de que «a não ser o artigo 42º/4 interpretado como aplicável ao Ministério Público e como impondo a prática dum acto tributário de liquidação ficava encontrada a forma de nunca se poder suscitar a aplicação do regime do art. 47º do RGIT, bastando para tanto que ele avocasse sempre o processo penal tributário» (fls. 16.569) -
a) O argumento não tem apoio na realidade existente pois podem cogitar-se situações em que o artigo 47º deve ser aplicado mesmo que o Ministério Público avoque o inquérito, situações essas que constituem mais de 90% dos casos investigados na medida em que são os agentes da administração tributária que no exercício das suas funções tomam conhecimento das infracções tributárias, portanto numa altura em que já existe procedimento tributário;
b) Como exemplo pode apontar-se a abertura de inquérito na sequência da instauração do procedimento tributário de liquidação em que vêm a ser constatadas situações que permitem à administração tributária não ficar vinculada à presunção de veracidade das declarações apresentadas (artigo 75/2 da LGT); ou da conclusão do procedimento tributário de inspecção com a indicação das infracções criminais verificadas (artigo 62/ 3 alínea j) do mesmo diploma).
68/11) Argumento da insuficiência das perícias realizadas, aliado ao de que com a não interpretação do artigo 42º/4 no sentido defendido pelo Despacho recorrido não há lugar à aplicação do artigo 47º «em claro prejuízo das garantias do arguido» (fls. 16.569 a 16.571) -
a) As perícias dos autos foram realizadas por técnicos da administração tributária fiscal nomeados como peritos pelo Ministério Público;
b) Assentaram exclusivamente [como o confirma o JI] em rendimentos reais, em métodos directos de apuramento através de meras operações aritméticas relativas às diferenças entre a contabilidade existente para efeitos fiscais e a contabilidade paralela apreendida;
c) Não foram objecto de nenhum requerimento seja em termos de esclarecimentos seja de realização de nova perícia;
d) As taxas de imposto, concretamente de IVA, foram aplicadas pelo mínimo, tratando todas as receitas realizadas pelas sociedades arguidas como se fossem relativas à prestação de serviços de alimentação e bebidas (cfr. v.g. o relatório respeitante à sociedade arguida «H…, págs. 5, «in fine» e 6);
e) Para efeitos de abertura de instrução nada foi requerido quanto às perícias, salvo quanto ao facto de nelas se terem utilizado métodos indiciários facto que foi rejeitado face à evidência dos relatórios;
f) Os arguidos tiveram, pois, todas as possibilidades de defesa inclusive ao nível da aplicação das normas tributárias de incidência dos respectivos impostos e desta forma também da verdade tributária, sendo que , como salienta o Ac. da RP de 25-10-2006, o facto de estarmos perante matéria fiscal não significa que o seu conhecimento não se faça no âmbito do processo penal tributário, tanto mais que qualquer decisão tem por base os factos apurados face às provas produzidas;
g) Acresce que «todas as garantias de defesa»» significa apenas «todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação», para que ele «se faça ouvir pelo juiz sobre as provas e as razões que apresenta em ordem a defender-se da acusação que lhe é movida» e a possibilidade de defesa da acusação nunca foi negada aos arguidos, razão pela qual, não apenas de um ponto de vista fáctico, mas também jurídico não há, com o mais elevado respeito, o mínimo de fundamento para que o Tribunal Colectivo possa falar de «prejuízo das garantias do arguido.»
68/12) Argumento de que da prática do acto tributário depende a «quantificação da vantagem ilícita relevante para a determinação da medida da pena [art° 13.º do RGIT] e para o funcionamento do art. 14.º do mesmo diploma» (fls. 16.571 (último parágrafo) e s.) -
a) Encarada do ponto de vista do prejuízo causado é indiscutível que a quantificação da vantagem patrimonial surge como importante para efeitos de determinação da medida da pena (artigo 13.º);
b) Só que isto não significa que essa quantificação tenha de resultar necessariamente dum acto de liquidação tributária e não possa ser efectuada por um dos demais meios acima referidos;
c) Por outro lado, não dependendo o crime de fraude fiscal da obtenção de qualquer vantagem patrimonial ilegítima a falta de determinação desta vantagem não impede o tribunal de a determinar para a determinação da medida da pena;
d) O que é aplicável à suspensão da execução da pena, pois o facto de ser importante o montante da prestação está longe de significar que o mesmo montante só possa ser determinado por um acto tributário de liquidação e que o mesmo acto tenha que ser aceite sem mais.
68/13) Argumento de que «a prática do acto tributário de apuramento da situação tributária ou contributiva é ainda essencial a que o arguido possa beneficiar do regime do art. 22.º do RGIT, pois sem procedimento tributário não se vê como possa o agente repor a verdade sobre a situação tributária» (fls. 16.572) -
a) O único procedimento tributário que existe para o apuramento da situação tributária ou contributiva (abstraindo da situação especial do artigo 47º da LGT e do Dec-Lei nº 6/99 de 8 de Janeiro) é o procedimento de inspecção (que não se confunde com aquele), pelo que nada há a acrescentar ao dito nos parágrafos anteriores;
b) Não é através do procedimento tributário de liquidação que se repõe a verdade sobre a situação tributária mas com um acto voluntário do contribuinte (art.º22º/1 e 2);
c) Por isso os arguidos ainda estão a tempo de repor a verdade fiscal bastando que se dirijam a um Serviço de Finanças e forneçam todos os elementos sobre a sua real situação tributária à altura dos factos dos presentes autos;
d) Como se viu, o montante da prestação tributária e demais acréscimos a serem pagos para efeitos de dispensa de pena não têm que resultar do procedimento tributário de liquidação.
68/14) Argumento de que «a prática do acto tributário de apuramento da situação tributária ou contributiva é ainda essencial (…) quanto ao art. 32º/ 2 do RGIT» (fls. 16.572) -
a) A norma nada tem a ver com o Direito Criminal mas com matéria do direito contraordenacional cujas regras são diferentes.
b) Seja como for, sempre se dirá que – 1) reconhece a responsabilidade aquele que assume que praticou a factualidade da infracção; 2) regulariza a situação tributária o que cumpre as obrigações fiscais cuja inobservância está na base da infracção (art.º30º/3) pelo que resultando a infracção, v.g., da omissão duma declaração (art.º116ºdo RGIT) a situação fica regularizada com a entrega da declaração.
c) Haver ou não lugar ao pagamento do imposto é tema que apenas releva enquanto haja imposto a pagar pois pode inexistir.
68/15) Argumento de que «também o n.º 2 do art. 119.º do RGIT pressupõe que esteja determinado se há ou não imposto a liquidar – aqui no sentido de cobrar/pagar – o que, por sua vez, pressupõe que esteja já decidida definitivamente em termos tributários tal questão» (fls. 16.572) -
O que se acabou de dizer vale para o presente argumento, com a nota de que o artigo agora em causa tem um sentido ao contrário ao referido no despacho recorrido, pois como dele se verifica e dos artigos 21/3 e 31/ 2 quando o legislador quer referir-se ao acto (tributário) de liquidação di-lo expressamente, referência que não se encontra no artigo 42/4.
68/16) Argumento de que a interpretação do artigo 45º/ 5 da LGT efectuada pelo JI (mas que aponta como sendo do Ministério Público) é inconstitucional «por violar as garantias dos arguidos, por vedar o acesso dos mesmos à justiça tributária e por violar a distribuição de competências entre tribunais comuns e tribunais tributários…» (fls. 16.574 e s.) -
a) Como afirma o JI não há processo com mais garantias que o processo penal;
b) Dizer-se que a norma é inconstitucional é esquecer que ela nada tem que ver com qualquer distribuição de competência, mas com o estabelecimento duma regra de suspensão do prazo de caducidade como são as do artigo 46º por o processo/crime poder correr sem a intervenção da administração tributária; ou correndo com a intervenção da mesma ela não poder utilizar os respectivos dados para efeitos tributários sob pena de violação do segredo de justiça estando a investigação a ele sujeita (o que aquando da dos presentes autos era sempre obrigatório sob pena da nulidade do artigo 86/1 do CPP então vigente);
c) A afirmação de que o preceito apenas deve valer quando o processo penal «se reportar apenas a infracções não tributárias de cuja prova dependerá a liquidação de impostos (…)» traduz uma interpretação sem apoio literal e lógico pois para essa situação já rege o citado artigo 46º/2 alínea a) da LGT.
68/17) Argumento de que do artigo 55.º do RGIT resulta ser necessário um acto tributário pois «as preocupações que presidem a este regime são as mesmas que estão na base do disposto nos art.ºs 42/2 e 4, 47º e 48º…» (fls. 16.587) -
a) A norma do artigo 55º se tivesse algum valor para a discussão seria para demonstrar que a posição do despacho recorrido não é a mais correcta já que verifica que quando o legislador quer reportar-se ao acto tributário de liquidação di-lo expressamente ( o que não sucede no artigo 42/4);
b) Por outro lado «as preocupações que presidem» ao regime do artigo em causa não são «as mesmas que estão na base do disposto nos art.ºs 42/ 2 e 4, 47º e 48º… »:
Aqui cura-se da suspensão do processo penal tributário em virtude da pendência de procedimento tributário de impugnação judicial ou oposição à execução fiscal, enquanto no artigo 55º o que está em causa é a suspensão do processo de contra-ordenação para que seja liquidado o tributo;
c) A norma que tem as mesmas «preocupações» que « estão na base do disposto nos art.ºs 42/2 e4, 47º e 48º do RGIT» está consagrada no artigo 64º («suspensão do processo e caso julgado das sentenças de impugnação e oposição»), mas dela também não se extrai nenhum argumento a favor da posição do Colectivo.
d) O argumento que se extrai é de sentido contrário, já que não manda observar o artigo 42º/ 4 -, o que não custa compreender e vai de encontro ao exposto pois a administração tributária já não actua aí na sua veste de órgão de polícia criminal mas enquanto com competência para instruir e decidir do processo de contra-ordenação (artigo 72/ 1).
68/18) Que a exigência do acto tributário de liquidação como condição de procedibilidade resulta do próprio Direito brasileiro, nomeadamente da «doutrina e da jurisprudência brasileiras» (…), cada vez com mais adeptos», sendo «legítima» a «convocação» desse direito já que « faz parte da mesma família do Direito português partilhando os mesmos conceitos nomeadamente ao nível do direito penal e processual penal incluindo o direito penal tributário» (fls. 16.579) -
a) O nosso RGIT é bem diferente do regime que vigora no Direito Brasileiro, bem como de um país que se encontra bem mais próximo do nosso (e que não deixa também de pertencer à mesma «família do Direito Português» cuja LGT vai ao ponto de, instaurado processo por infracção criminal tributária, a administração tributária ficar proibida de prosseguir com o procedimento tributário até que a autoridade judicial não profira decisão com força de caso julgado, sendo, por isso, a «cuota defraudada» calculada no próprio processo penal;
b) Daí que não custe compreender que no Brasil se defenda que a perseguição dos crimes tributários dependa dum acto tributário de liquidação, concretamente aqueles que entendem que «é livre de dúvidas que a consumação dos crimes contra a ordem tributária só poderá ser afirmada depois de esgotadas todas as instâncias administrativas de que dispõe o sujeito passivo para discutir a exacção»;
c) No nosso país é entendimento pacífico quer na doutrina quer na jurisprudência que o crime defraude fiscal consuma-se independentemente da provocação de qualquer prejuízo, não relevando para o seu preenchimento qualquer acto de liquidação, seja tributário ou não;
d) De resto no próprio Direito Brasileiro a questão nem sequer é pacífica e ainda que o fosse daqui não se poderia retirar qualquer argumento face à completa diversidade de regimes jurídicos.
69ª. Em resumo, o despacho ao conhecer duma questão que já decidida pelo JI e ao retirar eficácia ao Acórdão de 19 de Maio de 2008 da Relação, pondo em causa o caso julgado deste bem como o daquela decisão e ao ver no artigo 42/4 um acto tributário de liquidação que qualifica como pressuposto processual para separar o processo pelas infracções tributárias, violou os artigos 672º e 677/ 1 do CPC (ex vi» do art.º 4º do CPP), 2º, 119º alínea e), 124º/1, 338º/1 e 368º/ 1 deste Código, 9º do CC , 42º/ 4 e 47º do RGIT.
70ª. Pelo que deve ser revogado para julgamento dos arguidos pela totalidade das infracções imputadas na pronúncia.
3- Ao recurso responderam os arguidos C... e V....
4- Neste tribunal o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto teve vista nos autos e posteriormente estes foram aos vistos legais. Cumpre, agora, apreciar e decidir!
II –
1- Extracto Atenta a extensão do despacho que se alonga por 64 folhas, dele extractamos o que nos parece essencial com vista à resolução do recurso. do despacho recorrido
(…) Poderá o Tribunal Colectivo enquanto Tribunal de julgamento apreciar neste momento questões relativas aos art.ºs 42/ 4 e 47.º do RGIT? (…) parece-nos que não foi ainda proferida decisão nestes autos, transitada em julgado, que tenha apreciado em concreto as questões que agora se colocam atinentes ao regime previsto nos artºs 42.º e 47.º do RGIT de forma que se possa afirmar existir caso julgado quanto às mesmas que vincule este Tribunal Colectivo.(…) Acresce que no despacho de pronúncia não foi concretamente apreciada nenhuma das referidas questões.
Assim quanto ao art. 47.º do RGIT, se é certo que no mesmo se faz uma apreciação sobre o seu regime, porém aquando da sua prolação ainda não pendiam quaisquer impugnações judiciais apresentadas pelos arguidos, mais concretamente as mencionadas pelos arguidos M…, L.da , B… e C.ª, L.da e H…, L.da, A... e V… .
E tanto assim que no despacho de pronúncia se refere que “Por outro lado, uma vez que no caso não se trata da situação prevista no art. 47º do RGIT pela inexistência de impugnação judicial ou oposição à execução não tem aplicação a suspensão obrigatória do processo penal tributário (…)”, pois na realidade à data não pendiam quaisquer processos de impugnação judicial.
Ora neste momento assim já não sucede conforme as certidões juntas relativas a impugnações judiciais apresentadas pelos arguidos e que, segundo a última notícia que consta dos autos, ainda estão pendentes nomeadamente por ter sido interposto recurso da decisão que parte delas já mereceram em 1.ª instância.
Por outro lado, no despacho de pronúncia não é feita qualquer referência ao cumprimento, ou falta dele do disposto no art. 42/4 do RGIT e das consequências que tal norma tem para o presente processo.
(...) Ora as questões atinentes aos art.ºs. 42/4 e 47.º do RGIT são questões que pelos motivos que mais adiante se explicitarão contendem com as garantias de defesa do arguido, pelo que se impõe a sua apreciação/reapreciação por este Tribunal visto poderem determinar uma decisão em favor libertatis / favor inocentiae.
(…) Pese embora a apreciação do regime do art. 42/4 do RGIT preceder logicamente a do regime do art. 47º do mesmo diploma, consideramos que para melhor entender aquele importa antes de mais tecer algumas considerações sobre este.
Dispõe o art. 47º do RGIT que «1. Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Processo e Procedimento Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças.
2. Se o processo penal tributário for suspenso, nos termos do número anterior, o processo que deu causa à suspensão tem prioridade sobre todos os outros da mesma espécie».
Por sua vez, em consonância, dispõe o art. 48.º do RGIT que «A sentença proferida em processo de impugnação judicial e a que tenha decidido da oposição de executado, nos termos do Código de Processo e Procedimento Tributário, uma vez transitadas, constituem caso julgado para o processo penal tributário apenas relativamente às questões nelas decididas e nos precisos termos em que o foram».
O que é que se retira destas duas normas logo à partida? Que, pelo menos a partir de determinado momento, mas sempre antes da decisão definitiva de mérito do processo penal tributário, já há de ter sido praticado acto susceptível de impugnação judicial, ou de dar origem a execução fiscal à qual possa ser deduzida oposição, por forma a que o regime do art. 47.º possa funcionar.
(…) Atento o quadro legal agora em apreço, não nos restam dúvidas que a suspensão prevista no art. 47.º do RGIT é obrigatória, sendo o art. 47.º uma norma especial em face ao art. 7.º do Código de Processo Penal. Não vale neste domínio o princípio da suficiência da acção penal, ao ponto de o legislador especificar que a suspensão do processo penal fiscal prolonga-se até ao trânsito em julgado das decisões da impugnação judicial ou da oposição à execução. Em consonância, o prazo de prescrição do procedimento criminal também fica suspenso – art. 21/ 1 do RGIT.
Daqui se infere que vigora uma opção legislativa no sentido da prevalência da jurisdição fiscal para a apreciação de questões tributárias, em conformidade com a sua natureza especializada. Neste sentido o art. 212/3 da nossa Lei Fundamental onde é atribuída competência para o conhecimento dessas questões a uma jurisdição especializada, distinta da comum onde se integram os tribunais criminais. Destarte, quando a questão fiscal constituir factor prévio para aferir da existência de infracção criminal, reconhece-se à jurisdição fiscal a competência exclusiva para a respectiva decisão.
E assim o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 3/2007 publicado no DR Série I-A de 21/2/2007 o qual, pese embora proferido com referência ao RJIFNA veio estabelecer uma jurisprudência cuja fundamentação contém substrato semelhante que justifica a sua aplicação ao agora vigente art. 47º do RGIT. Nesta decisão fixou-se a seguinte jurisprudência «Na vigência do art. 50.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção do Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, a impugnação judicial tributária determinava, independentemente de despacho, a suspensão do processo penal fiscal e, enquanto esta suspensão se mantivesse, a suspensão da prescrição do procedimento criminal por crime fiscal».
(…) Alongámo-nos na citação das decisões e textos acima transcritos para vincar que resulta claramente espelhada no sistema legal português a preocupação do legislador que o processo penal tributário seja dirigido à procura da verdade material mas de forma que a mesma esteja em consonância com a verdade obtida no procedimento e processo tributários. É neste ponto particularmente expressiva a fundamentação do Acórdão para Fixação de Jurisprudência n.º 3/2007 (…).
Mas também e ainda que a jurisdição chamada a decidir as questões tributárias, mesmo que ligadas a questões criminais, seja a jurisdição tributária. Só assim se explica a suspensão obrigatória do processo penal tributário prevista no art. 47º do RGIT, em clara excepção do princípio da suficiência do processo penal previsto no art. 7.º do Código de Processo Penal.
Há ainda que reconhecer que este regime tem garantia constitucional pois consagra na Lei Ordinária – a) garantias dos arguidos, nomeadamente a garantia de defesa em processo criminal e de acesso dos mesmos à Justiça Tributária; b) a distribuição de competências entre Tribunais Comuns e Tribunais Tributários –, cfr. artºs. 20/1, 32/1 e 9 e 212/ 3 da Constituição da República Portuguesa.
Mas se assim é, verificamos ainda que o legislador dotou o processo penal tributário dum mecanismo específico que permite desencadear a aplicação do regime previsto nos artºs. 47.º e 48.º do RGIT. Na realidade, partindo-se do pressuposto que para que tal aplicação tenha lugar, é necessária a existência de um acto tributário (…), encontramos então no art. 42/4 do RGIT o mecanismo necessário a que tal prática ocorra a tempo de, nomeadamente prosseguindo os autos de processo penal tributário para julgamento, o arguido poder exercer a garantia de defesa que lhe é reconhecida por aquele art. 47.º do RGIT.
Dispõe o art. 42/4 do RGIT que “Não serão concluídas as investigações enquanto não for apurada a situação tributária ou contributiva da qual dependa a qualificação criminal dos factos, cujo procedimento tem prioridade sobre outros da mesma natureza”.
Considerando que esta norma refere o termo «procedimento», julgamos ser claro que tal procedimento é o tributário levado a cabo pela Administração Tributária de apuramento da matéria colectável e de liquidação do imposto em falta.
E falamos aqui de liquidação no seu sentido amplo enquanto “conjunto de actos complexos que passam pela incidência subjectiva e objectiva e o apuramento da matéria tributável, os quais antecedem a determinação do valor da colecta com a aplicação da taxa à matéria tributável”, tal como é definida por Carlos Paiva em «Da Tributação à Revisão dos Actos Tributários» (Coimbra, Livraria Almedina, 2005, pag. 94) mas também por José Casalta Nabais em «Direito Fiscal» (Coimbra, Livraria Almedina, 2001, pag. 253).
Tal norma – do art. 42/4 do RGIT – está intimamente ligada ao art. 47º, conforme salientam João Ricardo Catarino e Nuno Victorino (Regime Geral de Infracções Tributárias Anotado, Vislis Editores, 2004, pag. 298): “As consequências lógicas dos números 2 e 4 do preceito em anotação, resultantes da preocupação do legislador em apurar a verdade material tributária no seu local próprio (ou seja, no órgão jurisdicional ou técnico especializado), resultam na atribuição do efeito suspensivo ao processo penal tributário até ao trânsito em julgado das sentenças proferidas nos processos de impugnação judicial ou oposição à execução que lhe deram causa, devendo estes ser tramitados prioritariamente em relação a outros da mesma espécie (artigo 47.º do RGIT) e na consagração do caso julgado no processo penal, das sentenças proferidas nos processos de impugnação judicial ou oposição à execução”. Acrescentam os mesmos Autores, em anotação ao art. 47.º (obra citada, pag. 305) que a razão de ser do regime do art. 47.º “radica na necessidade de, para efeitos de apuramento da responsabilidade criminal, ser necessário conhecer os termos da relação substantiva. Ora, esta, só se torna definitivamente conhecida com o trânsito em julgado da sentença em processo de impugnação judicial ou da decisão em oposição à execução fiscal. Só assim se compreende que os factos e o direito nelas fixado constitua caso julgado no processo-crime, tal como resulta do art. 48.º deste RGIT (…)”.
Ou seja, o art. 47.º do RGIT, cujo carácter fundamental quer para a decisão do processo penal tributário de acordo com a verdade material/tributária, quer para a defesa dos direitos do arguido, demanda, para que possa ser aplicado, que oportunamente tenha sido dado cumprimento ao disposto no art. 42/ 4 do RGIT.
Poder-se-á questionar se o preceito em análise será um comando dirigido apenas à Administração Fiscal, não sendo aplicável quando o Ministério Público avocou os actos de inquérito que se presumem delegados noutras entidades nos termos do art. 41.º do RGIT? (…) Com o todo o respeito por entendimento diverso julgamos que não.
Nos termos do art. 40.º do RGIT, a direcção do inquérito penal tributário compete ao Ministério Público. Porém, aos órgãos de administração tributária e aos da administração da segurança social cabem, durante o inquérito, os poderes e as funções que o Código de Processo Penal atribui aos órgãos de polícia criminal, presumindo-se-lhes delegada a prática de actos que o Ministério Público pode atribuir àqueles órgãos.
O art. 41.º do RGIT indica quais as entidades nas quais se presume delegada a competência para os actos de inquérito a que se refere o n.º 2 do art. 40.º, sem prejuízo de a todo o tempo o processo poder ser avocado pelo Ministério Público.
Se bem equacionamos a questão, o inquérito penal tributário há-de compreender, em abstracto, a prática dos mesmos actos quer sejam praticados pelas entidades em que se presume delegada a competência, quer sejam praticados pelo Ministério Público na sequência da avocação do processo.
Ou seja, a delegação de competência ou a avocação do processo apenas interfere com quem pratica os actos de inquérito, e não com quais os actos de inquérito a praticar.
Não existem dois inquéritos penais tributários diferentes, em termos objectivos, consoante os actos neles a praticar sejam da competência de uma das entidades delegadas ou da competência do Ministério Público.
Efectivamente, a competência originária para a prática de todos os actos de inquérito é do Ministério Público – salvo, evidentemente, os reservados, nos termos da lei processual, ao Juiz de Instrução –, sendo que porém, nos termos da lei, tal competência para a prática desses mesmos actos (com as excepções previstas nos artºs. 53.º, n.º 2 e 270.º, n.º 2 do Código de Processo Penal e dos actos previstos nos artºs. 277.º a 283.º do Código de Processo Penal) se presume delegada noutras entidades.
Mas, conforme referem João Ricardo Catarino e Nuno Victorino (obra citada, pag. 276), “O regime da avocação deve seguir o regime geral da avocação de competências delegadas, relevando embora a natureza legal da delegação. Entende-se genericamente que avocar é chamar a si a resolução de um caso ou processo entregue a um delegado ou subdelegado (…). O poder de avocar, quando se trate de relação de hierarquia administrativa, é a emanação do poder de superintendência ou supervisão. Trata-se assim, de um processo inverso ao da delegação (…). A avocação esgota-se, em princípio, em cada caso concreto. A competência cujo exercício foi conferido ao delegado passa assim a ser exercida pelo órgão delegante, em exclusivo”.
Ou seja, com a avocação apenas muda a entidade competente para a prática dos actos, estes mantêm-se os mesmos.
Aquela presunção de delegação é que explica a estruturação, nos termos em que está feita, dos artºs. 41.º e 42.º do RGIT, mas não determina que haja distinção de inquéritos, ou de actos a praticar no inquérito, em razão da entidade competente (por delegação ou por avocação) para a sua realização.
A leitura dos artºs. 41.º e 42.º do RGIT não convida a outra interpretação. Aliás, é expressiva a referência, no art. 42/2 - “não será encerrado o inquérito”, quando o certo é que a decisão de encerramento do inquérito é da competência exclusiva do Ministério Público (cfr. art. 276.º do Código de Processo Penal e art. 43.º, n.º 1 do RGIT), o mesmo se dizendo quanto à menção, na epígrafe do art. 42.º, a “encerramento” do inquérito.
Mas se dúvidas houvesse a esse respeito, então pensamos que as mesmas são afastadas pela análise do regime previsto no DL 93/2003 de 30/4.
Na realidade, conforme João Ricardo Catarino e Nuno Victorino, agora em anotação ao art. 42.º do RGIT (ob. cit., pag. 298): “Nos casos em que a investigação criminal compete à Polícia Judiciária, torna-se necessário que o funcionário designado pela Administração Tributária, em função do tipo de crime em causa e que assiste àquela Polícia no âmbito da investigação em curso (artigo 1.º do DL n.º 304/2002, de 13 de Dezembro, que altera o artigo 5.º do DL 275-A/2000, de 9 de Novembro, adicionando-lhe um n.º 5) proceda rapidamente ao apuramento e liquidação da prestação tributária em dívida de forma a obviar à caducidade do direito à liquidação dos tributos. Compete hoje à Polícia Judiciária a investigação criminal dos crimes tributários de valor superior a € 500.000, quando assumam especial complexidade, forma organizada ou carácter transnacional, nos termos do disposto no DL n.º 93/2003, de 30 de Abril. Porque as necessidades da realização do Estado de direito não se confinam à punição dos infractores, mas com igual intensidade, à prossecução dos superiores fins constitucionais de tributação da riqueza em vista à sua justa repartição, estabelece-se, no n.º 3 do seu artigo 3.º, a obrigatoriedade de o Ministério Público assegurar o cumprimento do disposto no n.º 4 do artigo 42.º deste RGIT, isto é, de comunicar, até ao encerramento do inquérito, nos crimes de competência reservada da Polícia Judiciária, os elementos necessários ao apuramento da situação tributária ou contributiva dos infractores, sem o que as investigações não podem ser concluídas” .
Ou seja, no art. 3º/3 deste diploma legal veio deixar ainda mais claro que o comando previsto no art. 42/4 do RGIT é também dirigido ao Ministério Público. Outra interpretação criaria uma assimetria indesejável ao sistema considerado no seu todo.
Em última análise, o cumprimento obrigatório do art. 42/4 do RGIT pelo Ministério Público sempre teria cobertura no n.º 2 do art. 43.º do RGIT.
A não ser assim estava encontrada a forma de nunca se poder suscitar a aplicação do regime do art. 47.º do RGIT, em claro prejuízo das garantias do arguido; bastava para tanto que o Ministério Público avocasse sempre o processo penal tributário.
Do que já se expôs resulta ainda que não basta qualquer acto para que se conclua que o art. 42/4 do RGIT (…) foi cumprido.
Atenta a sua relação indissociável com o regime dos artºs. 47.º e 48.º do RGIT, o apuramento da situação tributária a que se refere o art. 42/4 só se pode considerar realizado com a prática de acto tributário, maxime a liquidação, que permita ao interessado deduzir impugnação judicial contra o mesmo ou oposição à execução.
Aliás, outro não pode ser o sentido, em nosso entender, e sempre sem quebra da devida vénia por entendimento diverso, a dar à expressão “procedimento” constante da parte final do n.º 4 do art. 42.º, expressão essa típica do procedimento administrativo ou tributário.
Tudo para dizer que a perícia realizada nos autos não é, de facto, acto que consubstancie o cumprimento da norma em apreço.
Se é certo que num primeiro momento (…) propendíamos a aceitar que tal pudesse ser, as decisões entretanto proferidas em sede de três das impugnações judiciais interpostas por alguns dos aqui arguidos vieram demonstrar que assim não pode ser.
De facto, analisados os elementos juntos a fls. 15.647-15.652, 16-221-16-226 e 16-304-16.308, verifica-se que em três dos processos de impugnação judicial pendentes nos Tribunais Tributários, propostos por alguns dos arguidos (…) foi decidido, em geral, não conhecer do mérito das referidas impugnações por inexistência de acto tributário, não se considerando como tal e para o efeito actos praticados no decurso deste processo, nomeadamente os relatórios periciais realizados no inquérito.
Até aí propendíamos para considerar que caso os Tribunais Tributários competentes aceitassem tais perícias como acto suficiente para fundamentar a dedução de impugnação tributária e, nessa sequência, conhecessem do mérito da mesma, então tal bastaria para alcançar o desiderato do regime previsto nos artºs. 47.º e 48.º do RGIT – qual seja, que a questão da definição da relação tributária fosse definitivamente resolvida pela jurisdição competente para o efeito, fazendo caso julgado material nestes autos.
Não correspondendo tal ao procedimento tal qual está previsto no RGIT, porém, no final, chegar-se-ia a alcançar o objectivo pretendido pelo Legislador e assim sempre se poderia salvar, na maior medida possível, os actos já praticados neste processo.
Porém, como se disse, nos processos supra referidos, pese embora as decisões não tenham, tanto quanto se sabe, transitado em julgado, entendeu-se que os actos praticados no inquérito deste processo não constituíam objecto suficiente para a impugnação judicial, que exige acto tributário, pelo que se abstiveram de conhecer do mérito das mesmas.
Tal entendimento veio pôr a nu, pois, a impossibilidade de considerar cumprido o art. 42.º, n.º 4 do RGIT nomeadamente através da perícia realizada em sede de inquérito, já que a mesma é insusceptível de ser qualificada como o acto tributário de apuramento previsto naquela norma e, consequentemente, de desencadear a aplicação do art. 47.º do mesmo diploma legal.
No mais, e conforme é referido pelo Ministério Público na resposta apresentada na sessão de julgamento de 8 Outubro de 2007, o(s) acto(s) tributário(s) – por nós entendidos necessários – não foram ainda praticados.
De todo o exposto, concluímos, pois e em resumo, que o cumprimento do art. 42/4 do RGIT compete também ao Ministério Público quando tenha avocado o inquérito penal tributário; que tal cumprimento é obrigatório; e que exige a prática de acto tributário de apuramento da situação tributária ou contributiva da qual dependa a qualificação criminal dos factos.
No caso vertente, tal acto tributário não foi praticado, sendo que do mesmo dependia a qualificação criminal dos factos, bem como outras consequências relevantes a nível de qualificação e sancionamento dos mesmos. Na realidade:
- da quantificação da vantagem ilícita que se pretende obter com a fraude fiscal depende, desde logo, a sua qualificação como crime ou como contra-ordenação – cfr. art. 103.º, n.º 2 do RGIT, bem como os artºs. 118.º e 119.º do mesmo diploma legal;
- tal quantificação é também relevante para a determinação da medida da pena – cfr. art. 13.º do RGIT – e para o funcionamento do disposto no art. 14.º do mesmo diploma legal;
- a prática do acto tributário de apuramento da situação tributária ou contributiva é ainda essencial a que o arguido possa beneficiar do regime do art. 22.º do RGIT, pois sem procedimento tributário não se vê como possa o agente repor a verdade sobre a situação tributária;
- o mesmo se diga, mutatis mutandis, quanto ao art. 32.º, n.º 2 do RGIT;
- também o n.º 2 do art. 119.º do RGIT pressupõe que esteja determinado se há, ou não, imposto a liquidar – aqui, no sentido de cobrar/pagar – o que, por sua vez, pressupõe que esteja já decidida definitivamente, em termos tributários, tal questão.
Por todas estas normas se vê, pois, que o sistema penal tributário gizado pelo Legislador e consagrado no RGIT assenta no pressuposto que, até à decisão final do processo penal tributário que conheça do mérito, a situação tributária já estará definitivamente fixada – ou porque foi praticado acto tributário não impugnado/posto em crise pelo arguido, formando-se assim caso julgado administrativo-tributário; ou porque, tendo havido tal impugnação/oposição à execução, a mesma foi definitivamente decidida pela jurisdição tributária, aguardando o processo penal tributário por tal decisão nos termos dos artºs. 47.º e 48.º do RGIT.
O que não nos parece sustentável, sempre ressalvado melhor entendimento, e conforme já o dissemos anteriormente, é que se chegue à seguinte solução: porque não foi dado, oportunamente, cumprimento ao disposto no art. 42.º, n.º 4 do RGIT, a Administração Tributária não liquidou os impostos devidos, não praticando assim o acto tributário de liquidação; e agora os arguidos não podem deduzir qualquer impugnação com vista a que a jurisdição tributária verifique se e em que medida são devidos os impostos, quando o certo é que o sistema legal, no seu todo, dá preferência, nos termos acima expostos, à jurisdição tributária sobre a jurisdição comum no que respeita à apreciação dessa questão.
Acresce que a interpretação que é feita a fls. 12.328-12.336 do art. 45.º, n.º 5 da Lei Geral Tributária (na redacção que lhe foi dada pelo n.º 1 do art. 57.º da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro: “Sempre que o direito à liquidação respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, o prazo a que se refere o n.º 1 é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano”) levaria ao resultado, também a nosso ver insustentável, de apenas após a eventual condenação, com trânsito em julgado, de arguidos por crimes tributários, serem estes admitidos a impugnar as liquidações que subsequentemente fossem feitas e até ver serem julgados procedentes todos ou parte dos argumentos que sustentavam tais impugnações, sendo a decisão proferida pelo Tribunal Tributário contraditória com a do Tribunal Criminal – contrariando assim frontalmente o art. 48.º do RGIT –, e quiçá levando à conclusão de, atento o valor da vantagem patrimonial ilegítima agora apurado, o facto não consubstanciar afinal um crime atento o disposto no art. 103.º, n.º 2 do RGIT.
Voltando a citar o artigo de Ley Garcia acima referido: “Na decorrência do que acaba de enunciar-se, e a contrario sensu, deve entender-se então que não se justifica a suspensão do processo tributário de impugnação judicial ou de oposição à execução fiscal até ser proferida decisão no processo criminal – tal constituiria uma clara inversão da ratio subjacente” – argumento que se tem que considerar, pois, na interpretação que deve ser dada ao art. 45.º, n.º 5 da Lei Geral.
Não nos parece, por todo o exposto, que a interpretação a dar ao art. 45.º, n.º 5 da Lei Geral Tributária seja a defendida a fls. 12.328-12.336, sob pena até de tal interpretação ser inconstitucional por violar as garantias dos arguidos, por vedar o acesso dos mesmos à Justiça Tributária, e por violar a distribuição de competências entre Tribunais Comuns e Tribunais Tributários – violando dessa forma os artºs. 20.º, n.º 1, 32.º, n.º 1 e n.º 9, e 212.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa.
Assim, a interpretação que deve ser, a nosso ver, dada ao n.º 5 do art. 45.º da LGT, por forma a não violar a Constituição da República Portuguesa e estar em harmonia com o RGIT, é a de a extensão do prazo de caducidade da liquidação até ao termo do ano subsequente ao trânsito em julgado da sentença, prevista nesse n.º 5, se reportar apenas a infracções não tributárias, mas de cuja prova dependerá a liquidação de impostos. Pois, quanto às infracções tributárias, regem os artºs. 42.º, n.º 4, 47.º e 48.º do RGIT, enquanto normas especiais que não foram revogadas por esta nova redacção do n.º 5 do art. 45.º da LGT.
E, mais concretamente, quanto às infracções tributárias, a lei não permite que se espere, para a realização da liquidação, até à sentença transitada em julgado do processo penal tributário respectivo, pois o n.º 4 do art. 42.º do Regime Geral das Infracções Tributárias impõe que tal liquidação (em sentido lato, nos termos acima expostos) seja feita antes da conclusão das investigações, ou seja, antes da fase de prolação do despacho de encerramento da fase de inquérito.
Concluindo-se, como se concluiu, que o art. 42.º, n.º 4 do RGIT não foi cumprido nestes autos, e era de cumprimento obrigatório antes de concluídas as investigações – e mais concretamente, antes da prolação do despacho de encerramento do inquérito (acusação) –, qual a consequência que deve ser associada a esse incumprimento?
Atenta a estreita ligação deste preceito não só com o disposto nos artºs. 47.º e 48.º do RGIT, mas ainda e também com o disposto nas outras normas indicadas no § X desta decisão, entendemos que tal omissão não se pode reconduzir a uma mera invalidade processual sanável, consubstanciando antes uma verdadeira condição de procedibilidade (ou pressuposto processual) na parte respeitante às infracções tributárias aqui imputadas aos arguidos.
Importa antes de mais referir, em traços gerais, o que são condições de procedibilidade em processo penal.
Passamos, para o efeito, a citar o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28 de Março de 2007 (processo n.º 59/05.4IDCTB.C1, na Internet em www.dgsi.pt): «A propósito da distinção entre condição objectiva de punibilidade ou de procedibilidade, socorrendo-se também dos apontamentos do Prof. Claus Roxin, apontam-se os seguintes elementos distintivos: …para ensaiar uma delimitação entre condições objectivas de punibilidade e condições objectivas de procedibilidade, vem escrito na op. loc. cit., pág. 984 a 988: «[...] a atribuição de um elemento ou outro (as condições objectivas de punibilidade ou as condições objectivas de procedibilidade) a um ramo ou outro do Direito (Direito material ou Direito Processual, respectivamente) repercute-se sobretudo num diferente tratamento no processo penal. Se falta um pressuposto jurídico-material de punibilidade, procede a absolvição; enquanto que a falta de um pressuposto de procedibilidade dá lugar à suspensão ou arquivamento do processo. […] A constatação dos pressupostos de procedibilidade está submetida às regras de prova livre, enquanto que a comprovação das circunstâncias de direito material o está às de prova estrita. […]. Tomando como base esta concepção e trasladando-a para as causas de exclusão de punibilidade resulta que, p. ex., a garantia da reciprocidade (§ 104 a) ou a abertura do procedimento de reunião de credores (§ 283 VI) são condições objectivas de punibilidade, e que a impunidade (§ 36) é uma causa de exclusão da punibilidade, porque todas essas circunstâncias pertencem ao complexo do facto e ao seu “enjuiciamiento” do ponto de vista jurídico-legal. Pelo contrário, a participação, prescrição, amnistia, indulto, etc. são pressupostos de procedibilidade, já que se trata de situações totalmente fora do que sucede no facto” ».
Já no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Abril de 2008 (processo n.º 07P4080, na Internet no mesmo sítio) se refere, a este respeito, o seguinte: “Importa, assim, caracterizar em termos dogmáticos a alteração produzida, o que entronca directamente com a da distinção entre condição objectiva de punibilidade e pressuposto processual. Revisitando o que a propósito do tema oportunamente se escreveu e como referem Zipf e Maurach, o poder punitivo do Estado é fundamentalmente desencadeado pela realização do tipo imputável ao autor. Não obstante, em determinados casos, para que entre em acção o efeito sancionador requer-se a verificação de outros elementos para além daqueles que integram o ilícito que configura o tipo. Por vezes essas inserções ocasionais da lei, entre a comissão do ilícito e a sanção concreta, inscrevem-se no direito material – hipótese em que se fala de condições objectivas ou externas de punibilidade –, noutros casos constituem parte do direito processual e denominam-se pressupostos processuais. As condições objectivas de punibilidade são aqueles elementos da norma, situados fora do tipo de ilícito e tipo de culpa, cuja presença constitui um pressuposto para que a acção anti-jurídica tenha consequências penais. Apesar de integrarem uma componente global do acontecer, e da situação em que a acção incide, não são, não obstante, parte desta acção. Por seu turno, os pressupostos processuais são regras do procedimento cuja existência se fundamenta na possibilidade de desenvolver um procedimento penal e ditar uma sentença de fundo. Como os pressupostos processuais pertencem exclusivamente ao direito processual não afectam nem o conteúdo do ilícito, nem a punibilidade do facto, limitando-se exclusivamente a condicionar a prossecução da acção penal. Refira-se que, para alguns – como é o caso de Roxin –, é elegível uma solução intermédia na destrinça. Assim, entende-se ser preferível considerar que a consagração de um elemento ao Direito material e, consequentemente, a sua eleição como condição de punibilidade não depende do facto de estar desligado do processo, nem sequer de qualquer uma conexão com a culpabilidade, mas sim da sua vinculação ao acontecer do facto (solução proposta, essencialmente, por Gallas e Schmidhauser). Sustenta-se, nesse seguimento, que as circunstâncias independentes da culpa podem ser consideradas condições objectivas de punibilidade se estão em conexão com o facto, ou seja, se pertencem ao complexo de facto no seu conjunto e onde se inserem também reflexões de economia penal. Nesta lógica, os pressupostos processuais são as circunstâncias alheias ao complexo do facto” (sublinhado nosso).
Continuando a citar esta decisão, agora com referência à sua nota (28): “Por seu turno, as condições de procedibilidade ou pressupostos processuais, diferentemente do que acontece com as condições de punibilidade, não propõem qualquer vinculação com o facto ilícito fundamentando-se em considerações jurídico criminais de variada procedência a sua verificação e não se relacionando com qualquer contraditoriedade à ordem jurídica pois que a sua ratio se fundamenta em razões utilitárias que tornam conveniente a perseguição processual de uma conduta delitiva. Como refere Erika Mendes de Carvalho (Revista Electrónica de Ciência penal e Criminologia 07-10-2005) não é tarefa fácil distinguir entre as condições objectivas de punibilidade e condições de procedibilidade. No que respeita a estas últimas pode-se dizer que condicionam unicamente o início do procedimento e que entre elas se encontra, por exemplo, a denúncia e querela. Por seu turno, as condições objectivas de punibilidade são factos objectivos que condicionam a punibilidade do delito com base em considerações político criminais. No que concerne às consequências, os pressupostos de natureza processual impedem que se dite uma sentença sobre o fundo da causa de modo a que a resolução judicial que declara a sua inexistência não se vê afectada pelo caso julgado material. Por seu turno a ausência de uma condição objectiva de punibilidade determina um pronunciamento sobre o fundo, absolutório, que se vê afectado pelo caso julgado material. Stratenwerth (Derecho Penal, pag. 73) refere, ainda, que as condições objectivas de punibilidade, as causas pessoais que excluem a punibilidade e as causas que deixam sem efeito a punibilidade, pertencem, em conjunção com a adequação típica, a ilicitude e a culpa, aos pressupostos materiais de punibilidade, ou seja àqueles pressupostos que condicionam a imposição de uma pena. Destes distinguem-se os pressupostos formais de punibilidade que condicionam a perseguibilidade penal e que somente se referem á possibilidade de existência do processo penal. Para Dalitala, o que denomina condições de perseguibilidade estão integradas por verdadeiros actos jurídicos destinados ao procedimento penal, enquanto que as condições de punibilidade não são actos, mas factos jurídicos que não respeitam ao processo (Il fatto pag 106)” (sublinhado nosso).
Ainda neste campo, se pronunciou o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24 de Outubro de 2007 (processo n.º 0713760, na Internet no mesmo sítio), passando-se a transcrever parte da sua fundamentação: “Delas devem distinguir-se as condições objectivas de procedibilidade que condicionam, não a existência do crime, mas a sua perseguição penal, ou seja, a abertura de um processo penal. Trata-se, aqui, de pressupostos processuais, de obstáculos processuais. A propósito da distinção, refere Jeschceck que a falta de uma condição objectiva de punibilidade, no momento do julgamento implica a absolvição, quando falta um pressuposto o processo “detém-se”. Também Roxin, salientando as dificuldades de delimitação entre direito material e direito processual a partir das suas consequências práticas, reconhece que, não obstante, estas são distintas. Assim, a atribuição de um elemento a um ou outro sector do direito repercute-se, sobretudo, num diferente tratamento no processo penal. A falta um pressuposto jurídico-material da punibilidade, dá lugar à absolvição; enquanto que a falta de um pressuposto de procedibilidade determina a suspensão ou o arquivamento”. (…)
Analisados os termos em que está previsto o regime consagrado no art. 42/4 do RGIT, conjugado com o regime dos artºs. 47.º e 48.º do mesmo diploma (mas também, e desde logo com o regime do art. 22.º do RGIT), consideramos que o apuramento da situação tributária ou contributiva ali previsto é uma condição de procedibilidade do processo penal tributário, de prosseguimento do mesmo para a fase seguinte (decisão de encerramento do inquérito).
Sem a sua verificação, o processo penal tributário não pode prosseguir (“Não serão concluídas as investigações enquanto…”), devendo suspender-se automaticamente até que tal condição suspensiva esteja satisfeita.
Estamos assim perante um pressuposto (obstáculo) processual de cuja verificação depende o prosseguimento do processo penal tributário.
Para tal conclusão concorre não só a definição do conceito de condição de procedibilidade (ou pressuposto processual) acima exposto, mas também o entendimento que parte da Doutrina e da Jurisprudência Brasileiras têm adoptado, cada vez com mais adeptos.
Tal convocação parece-nos legítima pois o Direito Brasileiro faz parte da mesma família do Direito Português (romano/germânica), partilhando os mesmos conceitos nomeadamente ao nível do Direito Penal e Processual Penal, incluindo o Direito Penal Tributário.
Invoca-se a este respeito entre outros o estudo “O término do processo administrativo /fiscal como condição da ação penal nos crimes tributários”, de Fábio Machado de Almeida Delmanto (Revista Brasileira de Ciências Criminais n.º 22, pags. 63 a 79). Em síntese ali se expõe que:
- “A questão referente à necessidade ou não do prévio esgotamento da via administrativa para o início da ação penal, nos crimes contra a ordem tributária, tem sido objeto de grande divergência na doutrina e jurisprudência”;
- “Pode-se dizer que existem basicamente duas correntes sobre a questão. A primeira, que ainda predomina na jurisprudência, entende que o prévio exaurimento da via administrativa não constitui condição de procedibilidade ou pressuposto de punibilidade. Já a segunda corrente, que se fortalece na jurisprudência e encontra amparo na doutrina, é diametralmente oposta àquela, pois defende que o prévio esgotamento da via administrativa faz-se necessário à ação penal”;
- “Ao lembrar a garantia constitucional da ampla defesa no processo administrativo, Hugo de Brito Machado, citando dois julgados da 1ª Turma do TRF da 5ª Região, dos quais foi relator, escreveu: "Impõe-se que o início da ação penal, nos crimes contra a ordem tributária, seja condicionado à regular apuração, pelas autoridades administrativas competentes, da ocorrência do ilícito tributário", até porque, "admitir-se o início da ação penal antes da manifestação definitiva da autoridade administrativa sobre a ocorrência da supressão, ou redução do tributo, resultado que integra o tipo definido no art. 1º da Lei nº 8.137/90, implica maus-tratos à garantia constitucional da ampla defesa no processo administrativo" (art. cit., p. 238); esse autor salienta que a 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, embora com fundamentação diversa, também já decidiu pelo trancamento de ação penal iniciada antes do exaurimento da via administrativa”;
- o mesmo juízo deve ser feito relativamente aos crimes tributários formais: “Aliás, Hugo de Brito Machado já enfrentou a questão, dizendo: "É certo que a Lei nº 8.137/90 define também crime formal, ou de mera conduta. Mesmo neste, porém, é imprescindível a existência de um tributo devido, sem o qual o dolo específico não é possível". Em nota de rodapé, o autor acima conclui: "Mesmo em relação ao crime de mera conduta, é razoável admitir-se que é imprescindível a prévia decisão administrativa sobre o tributo devido, desde que o dolo específico, o propósito de suprimir ou reduzir tributo, é essencial para a configuração do crime" (Ação penal nos crimes contra a ordem tributária - Prévio esgotamento da via administrativa, in RJ 234 - abr/97, Ed. Síntese, Porto Alegre, p. 34).
Por sua vez, Hugo Brito Machado refere expressamente que “Tem entendido a jurisprudência que a conclusão do procedimento administrativo não constitui condição de procedibilidade para a ação penal nos denominados crimes fiscais. Em outras palavras, a propositura da ação penal seria independente da conclusão do processo administrativo de apuração e exigência do crédito tributário. Ou processo de lançamento do tributo. É possível, assim, que em certos casos alguém seja condenado pelo cometimento do crime de sonegação fiscal, embora a autoridade da Administração Tributária, a única competente para dizer se ocorreu fato gerador de obrigação tributária, chegue depois à conclusão de que não há tributo devido. O equívoco é evidente. A solução coerente é, sem dúvida, a de se considerar que a propositura da ação penal deve ficar condicionada ao julgamento definitivo da ação fiscal, na esfera administrativa. Somente depois que a Administração tiver certeza da ocorrência da sonegação do tributo, vale dizer, tiver certeza de que a ação do contribuinte teve por escopo evitar o pagamento de tributo devido, é que se justifica a propositura da ação penal”, qualificando a situação como “condição de procedibilidade”.
Veja-se ainda, com interesse: “A sonegação fiscal e a questão da prejudicialidade da ação penal” de Felipe Luiz Machado Barros e “Ação penal nos crimes contra a ordem tributária e o procedimento administrativo tributário” de Lara Gomides de Souza(…).
Todos estes estudos ajudam a entender que a questão da conclusão do procedimento tributário como condição de início, no caso do Direito Brasileiro, ou prosseguimento para a fase de encerramento do inquérito, no caso do Direito Português, consubstancia um verdadeiro pressuposto processual ou condição de procedibilidade.
A sua falta é, como ocorre com todos os pressupostos processuais/condições de procedibilidade, de conhecimento oficioso, podendo ser conhecida até ao momento previsto no art. 368.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
E qual a consequência da não verificação deste específico pressuposto processual? Visto que estamos já em fase de julgamento, e que a omissão desta condição de procedibilidade apenas afecta as infracções tributárias imputadas nestes autos aos arguidos – mas quer os crimes, quer as contra-ordenações visto que, quanto a estas, são aplicáveis as regras do processo penal tributário, por força do disposto no art. 51.º do RGIT, ex vi dos artºs. 38.º e 39.º do DL 433/82, de 27 de Outubro) –, e não já as restantes infracções, entendemos que a decisão apenas deverá afectar aquelas infracções tributárias e, consequentemente, o pedido civil deduzido com base nas mesmas.
Por apelo à figura dos pressupostos processuais/excepções dilatórias do processo civil, por remissão do art. 4.º do Código de Processo Penal, e mais concretamente à figura da absolvição da instância, julgamos que a consequência a assacar à omissão verificada é a de absolver os arguidos que vêm pronunciados da prática de infracções tributárias da instância de julgamento respectiva.
Tal não obsta, como é próprio das absolvições da instância, que o Ministério Público, com base nomeadamente em certidão extraída destes autos, faça prosseguir o processo penal tributário, abrangendo não só os crimes mas também as contra-ordenações aqui imputados aos arguidos, nos termos previstos no art. 42.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, regressando-se à fase de inquérito para esse efeito.
Consequentemente, deverão também os demandados cíveis ser absolvidos da instância cível, porque dependente da instância relativa às infracções tributárias.
Mesmo que assim não se entenda, julgando-se que o problema deve ser tratado no domínio das invalidades processuais previstas no Código de Processo Penal, não podemos então deixar de apelar para o que os Ex.mos Juízes Conselheiros Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos referem a propósito do regime do art. 55.º do RGIT, raciocínio que, por identidade de razões, entendemos ser extensível ao disposto no art. 42.º, n.º 4 do RGIT (cfr. Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, 2.ª edição, 2003, Áreas Editora, pp. 375 e sgs). Dispõe o art. 55.º do RGIT –
«1) Sempre que uma contra-ordenação tributária implique a existência de facto pelo qual seja devido tributo ainda não liquidado, o processo de contra-ordenação será suspenso depois de instaurado ou finda a instrução, quando necessária, e até que ocorra uma das seguintes circunstâncias: a) Ser o tributo pago no prazo previsto na lei ou no prazo fixado administrativamente; b) Haver decorrido o referido prazo sem que o tributo tenha sido pago nem reclamada ou impugnada a liquidação; c) Verificar-se o trânsito em julgado da decisão proferida em processo de impugnação ou o fim do processo de reclamação.
2) Dar-se-á prioridade ao processo de impugnação sempre que dele dependa o andamento do de contra-ordenação.
3) O processo de impugnação será, depois de findo, apensado ao processo de contra-ordenação.
4) Se durante o processo de contra-ordenação for deduzida oposição de executado em processo de execução fiscal de tributo de cuja existência dependa a graduação da coima, o processo de contra-ordenação tributário suspende-se até que a oposição seja decidida”.
Como claramente se observa, as preocupações que presidem a este regime são as mesmas que estão na base do disposto nos artºs. 42.º, n.º 2 e n.º 4, 47.º e 48.º do RGIT. E ambos os artºs. 42/4 e 55.º prevêem causas de suspensão do processo até que os actos ali referidos sejam praticados.
Dizem a dado passo os referidos Autores: “No n.º 1 prevê-se a suspensão quando pelo facto que integra a contra-ordenação seja devido tributo ainda não liquidado. Trata-se de um facto susceptível de gerar uma dívida tributária de qualquer natureza. É o que sucede, por exemplo, com a contra-ordenação de omissão relativa à situação tributária praticada em declaração, prevista no n.º 1 do art. 119.º, nos casos em que a omissão é relativa a um facto que é pressuposto de uma dívida tributária, como é o caso de um rendimento não declarado, para efeitos de I.R.S. ou I.R.C.. As razões de ser da suspensão e da fixação dos momentos em que ela cessa, que é a efectuada nas várias alíneas do n.º 1, valem não só quando o imposto ainda não foi liquidado, mas também nos casos em que já ocorreu a liquidação, mas ela ainda é susceptível de impugnação administrativa contenciosa ou foi impugnada. Também aqui, o processo contraordenacional terá de aguardar que se verifique a situação de estabilidade relativa à definição do facto tributário, devendo suspender-se aquele até que ocorra o facto previsto nas alíneas do n.º 1, conforme o caso, que justifica que se considere definitiva a existência ou inexistência do facto tributário que integra a infracção”. Mais à frente, acrescentam (pag. 381): “Sendo obrigatória a suspensão do processo de contra-ordenação, a sua falta constituirá uma irregularidade processual. Em processo de contra-ordenação tributária, apenas se prevêem como nulidades insanáveis as que constam do art. 63.º, entre as quais não se inclui a omissão de suspensão aqui prevista. Não prevendo o R.G.I.T. a regulamentação das nulidades secundárias, terá de se recorrer ao regime do C.P.P. por força do disposto no art. 3.º, al. b), deste diploma e 41.º do R.G.C.O.. À face do C.P.P., pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado (n.º 2 do art. 123.º deste diploma). A omissão da suspensão aqui prevista pode afectar o valor da decisão condenatória, pelo que, se ela se verificar, deve declarar-se tal irregularidade, anulando-se os actos que dela dependem. A reparação das irregularidades que possam afectar o acto do valor praticado é de conhecimento oficioso (art. 123.º, n.º 2 do C.P.P.) pelo que pode ser decidida mesmo pelo tribunal de recurso)”.
Assim, e porque o raciocínio feito relativamente ao art. 55.º do RGIT pode ser transposto para a suspensão prevista no n.º 4 do art. 42.º do mesmo diploma legal, caso se entendesse que a esta última norma não consagra uma condição de procedibilidade nos termos acima expostos, sempre ter-se-ia que entender que o seu não cumprimento configura uma irregularidade de conhecimento oficioso e cognoscível a todo o tempo, pelas razões invocadas pelos Autores agora acabados de citar.
O que, na prática, teria à mesma as consequências acima expostas, visto apenas afectar parte dos factos descritos no despacho de pronúncia.
Destarte, tudo visto e considerado, decide-se:
- julgar não verificada a condição de procedibilidade prevista no art. 42/4 do RGIT e consequentemente absolver os arguidos V..., A..., R..., J..., C..., C..., H…L.da, M…, L.da, B... & Cª, L.da e S... – Hotelaria, L.da da instância de julgamento relativa às infracções tributárias que lhes são imputadas nestes autos;
- sem prejuízo de o Ministério Público, nomeadamente com base em certidão extraída destes autos, e regressando à fase de inquérito para esse efeito, fazer prosseguir o processo penal tributário por tais infracções, abrangendo também as contra-ordenações aqui imputadas aos arguidos, nos termos previstos no art. 42/4 do Código de Processo Penal;
- consequentemente, absolvem-se os demandados cíveis da instância cível decorrente do pedido cível deduzido nestes autos pelo Estado Português, porque dependente da instância relativa às infracções tributárias. Sem custas (…)
2- Apreciação –
Na dilucidação do tema do recurso diga-se que a única questão a apreciar é a de saber da correcção da decisão de absolvição da instância dalguns dos arguidos no que tange às infracções fiscais de que estão pronunciados, bem como da sua consequente absolvição da instância quanto ao pedido cível do Estado.
2.1- A regularidade da instância quanto às referidas infracções de natureza fiscal já tinha sido apreciada pelo M.mo Juiz de Instrução no despacho de pronúncia. Face às objecções suscitadas por alguns arguidos o M.mo Juiz de Instrução pronunciou-se nos seguintes termos –
- Sustenta o arguido V... que não existem nos autos quaisquer elementos indiciários que apontem no sentido de que o mesmo tenha praticado qualquer crime de fraude fiscal, sendo que nem sequer foi feita a liquidação de qualquer imposto em dívida pelo arguido, sendo nesta matéria insuficiente os relatórios elaborados pelos peritos.
Os montantes apurados relativos ao rendimento real sujeito a tributação do arguido V... em nome individual de IRS e enquanto legal representante das sociedades de que era sócio gerente em IVA e em IRC, tiveram por base a realização de perícias fiscais, que se encontram em apenso aos autos.
Foi o arguido notificado da realização das referidas perícias em conformidade com o disposto no CPP, bem como do resultado das mesmas e não impugnou o meio de prova em causa nem o seu resultado. Verifica-se que tais perícias -, designadamente o relatório pericial relativo ao arguido V... na qualidade de sujeito passivo de IRS [apenso 65], o relatório pericial relativo à sociedade B… & C [apenso 63], o relatório pericial relativo à Sociedade M…, Ldª" [apenso 62], o relatório pericial relativo à Sociedade «H..., Lda.» [apenso 61] -, foram realizadas tendo por base concretos elementos de prova não impugnados pelo arguido e que se reportam essencialmente a elementos de natureza contabilística e financeira apreendidos nas instalações das firmas e/ou nos escritórios centrais do «grupo» , de que se destaca a contabilidade paralela - com diversos livros de registo manual [apenso 61, p. 3]; ainda os documentos referidos no apenso 62 . p. 4 e 5 ; apenso 63, p. 3 e 4; e apenso 65 , p. 10.
A conjugação de tais elementos de prova confirma a existência de delitos de fraude fiscal relativa à não declaração de receitas obtidas e susceptíveis de tributação.
Em relação ao alegado pelo arguido de que não existe um acto de liquidação formal por parte da administração fiscal e como tal não é devido qualquer imposto neste momento, inexistindo desse modo um dos pressupostos formais do crime de fraude fiscal, cumpre referir que o mesmo não tem razão essencialmente por dois fundamentos concretos:
As relações tributárias têm, em primeira linha, as relações de imposto e de taxa - art.° 3 da Lei Geral Tributária - , sendo que em princípio do lado activo das relações jurídico/tributárias está a Administração Tributária agindo como tal, a qual pratica actos de natureza tributaria como sejam o lançamento e a liquidação de impostos e obrigações acessórias , enquanto do lado passivo estão as pessoas singulares e colectivas, os patrimónios ou as organizações de facto ou de direito -art.° 18/ 3 e 65 da LGT , pelo que em princípio só a administração tributaria tem competência para proceder à liquidação dos tributos devidos à Fazenda Nacional nos termos do n.º3 do art.° 1° da LGT aprovada pelo DL n." 398/98/ de 17 de Dezembro.
Porém, quando estão em causa factos integradores dos elementos objectivos e subjectivos de crimes, como o crime de fraude fiscal, há que trazer à colação o princípio da suficiência do processo penal estabelecido no art.° 7° do CPP que estabelece que o processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa. Porém, quando para se conhecer da existência dum crime for necessário julgar qualquer questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal, pode o tribunal suspender o processo para que se decida esta questão no tribunal competente.
Verifica-se assim que a resolução de questão prejudicial não penal - como no caso no âmbito da relação jurídico fiscal subjacente aos crimes de fraude fiscal - comporta duas vias possíveis. A primeira através do próprio processo penal quando o tribunal criminal usando dos poderes que lhe são atribuídos pelo art.° 7/1 do CPP reconhece que dispõe de meios para resolver as questões suscitadas no âmbito do processo. A segunda via é o tribunal criminal reconhecer que só através do foro próprio poderão ser dirimidas tais questões.
No caso concreto o MP procedeu à liquidação dos valores correspondentes aos rendimentos reais do arguido, quer corno pessoa singular, quer corno legal representante das sociedades em que figura como sócio gerente e sobre os quais deveriam ter sido apurados os correspondentes montantes de impostos em sede de IRS , de IV A e de IRC , através de perícias tributarias que não simples prova documental ou testemunhal.
Tal meio de prova foi realizado por peritos tributários, por natureza com conhecimentos específicos na matéria e integrados na Administração Fiscal.
Verifica-se que os arguidos - incluindo o arguido V... - quando notificados para o efeito não deduziram qualquer oposição ao meio de apuramento do rendimento , sendo que tal oposição só passou a existir quando os resultados das perícias não foram os melhores na perspectiva dos arguidos.
Acresce que não foi impugnada a documentação que esteve na base da realização da perícia tributária, nem mesmo do seu resultado aquando da notificação do relatório pericial.
E nem se diga que sendo o acto de «liquidação «levado a cabo no âmbito do processo penal, o arguido se vê prejudicado nos seus direitos, liberdade e garantias já que é no âmbito do Processo Penal que existem as maiores garantias relacionadas com os direitos mais valiosos de qualquer indivíduo, inclusive o direito de liberdade.
Por outro lado, uma vez que no caso não se trata da situação prevista no art.º 47º do RGIT pela inexistência de impugnação judicial ou oposição à execução não tem aplicação a suspensão obrigatória do processo penal tributário [Lopes de Sousa e Simas Santos / Regime Geral das Infracções Tributarias, Anotado 2003 / p. 360.
Por fim, no sentido de que as questões fiscais podem ser conhecidas no âmbito do processo penal, como no caso concreto dos autos, vai ainda o art.º 57/1 da Lei n.º 60-A12005 de 30 de Dezembro, ao estabelecer na nova redacção do art." 45º da Lei Geral Tributaria que sempre que o direito à liquidação respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, o prazo de caducidade relativo ao direito de liquidar os tributos é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, acrescida de um ano.
Mais refere o n." 2 do art.° 57 da Lei n.º 60 -A/200S que o disposto no n.º5 do art.° 45 da lei geral tributária é aplicável aos prazos de caducidade em curso à data da entrada em vigor da referida lei.
Por outro lado, como vem sendo entendimento praticamente uniforme da doutrina - [entre outros, Casalta Nabais, Direito Fiscal, p. 312 e Braz Teixeira, Princípios de Direito Fiscal, Vol.1 , p. 249] - a natureza do acto tributário analisa-se numa eficácia meramente declarativa pois, e citando este último jurista, «Porque a origem e o conteúdo da obrigação fiscal se encontram na lei, sua única fonte , esta reveste a natureza de obrigação «ex-lege» de direito público ,a qual, em vista dos interesses em jogo e do plano jurídico em que se insere, apresenta certas características diferenciadoras que não justificam a afirmação de que a obrigação e a dívida são realidades distintas ou possuem vida independente ou de que é o acto tributário que dá origem à obrigação tributaria.
Com efeito, o processo gracioso e o acto administrativo definitivo e executório com que este se concluiu não têm outra eficácia que não seja a de tomar líquida e certa obrigação nascida com a verificação da hipótese normativa, pelo que a sua função especifica é a de tomar certa a dívida, de dar a conhecer uma realidade pré - existente, é uma função de simples reconhecimento e qualificação dos pressupostos de facto» , pelo que conclui-se que não se toma necessário para a verificação do acto de liquidação do imposto um acto administrativo da administração tributária , pois o mesmo não tem natureza constitutiva mas tão só declarativa da obrigação tributária. Pelo exposto, improcede a argumentação do arguido Trindade.
- Em relação aos crimes de fraude fiscal imputados ao arguido [A...] os mesmos têm por fundamento o resultado dos relatórios periciais realizados com base em documentos contabilísticos e financeiros apreendidos e nos termos já expostos em relação ao arguido V..., cujas considerações de facto e de direito aqui se dão por reproduzidas acrescentado a referência ao resultado da perícia fiscal constante do apenso 68.
Acresce que sintomático da atitude de fuga ao fisco por parte do arguido A...destaca-se a sessão telefónica 1123 do alvo 1G01S / em que na sequencia de uma acção inspectiva das finanças foram feitas cópias dos ficheiros que se encontravam em computador / e que tinham a receita real do rendimento do estabelecimento, diversa da declarada, comentando o arguido A...que era necessário falar com a contabilista a arguida C..., a ver o que se podia fazer com vista a contornar o problema a manter as despesas no «normal» a baixar as comissões das bailarinas pois no Agosto «mexeu-se».
- (…) Refere o arguido J... que os crimes de fraude fiscal que lhe são imputados em co-autoria com o arguido P..., devem ser imputados apenas à sociedade, pois o arguido é um simples funcionário desta que se limita a receber o seu salário mensal, não tendo qualquer interferência na contabilidade , limitando-se a pagar às bailarinas o seu trabalho e a liquidar despesas.
Apesar do declarado pelas testemunhas D... e O... ouvidas em sede de instrução, que se assumiram corno amigos do arguido J..., cujos depoimentos encontram-se a fls. 10300 e ss , o que é certo é que elementos de prova comprovam o facto de o arguido J... desempenhar de facto as funções de gerente.
Na verdade, o arguido é sócio da sociedade «S...» figurando o seu pai corno sócio gerente, o arguido P..., o que lhe dá, por si só, certos poderes no interior da empresa, e do resultado das sessões telefónicas do alvo 1F045 de que se destaca, o poder de contratação das bailarinas para trabalharem no estabelecimento, sessões de apenso l l. p. 26; contacto com as entidades bancárias em nome da sociedade em virtude de problemas com cheques sem provisão - sessão de apenso 11, p. 21; contacto directo com a contabilista da empresa, L…, em virtude problemas relacionados com documentação contabilística de facturação – cfr.sessão do apenso II, p. 118 ss;
Comprova-se, pois que o arguido age voluntariamente corno membro de um órgão e como representante de facto da sociedade, pelo que em face do art.° 6º do RGIT é responsável penalmente pelos imputados crimes de fraude fiscal.
Cfr- Ac.RP de 26-6-2002, relatado pelo Juiz desembargador Clemente Lima, in www.dgsi.pt «A expressão «gerência» usada por referência à figuração de uma situação de domínio do facto concernente ao governo da empresa e da gíria comercial e societária é um conceito de direito assimilado corno facto».
Através do relatório pericial constante no apenso 64, e com base na documentação apreendida de natureza financeira e contabilística procedeu-se à determinação dos rendimentos reais da « Satates » e ao apuramento dos impostos devidos ao Estado em sede de IVA e IRC; - da documentação analisada fazem parte os extractos da conta bancária de que é titular a «S... » de 2002 a 2005; ficheiros informáticos elaborados em folha de cálculo do Excell referentes às receitas do estabelecimento de 1-01-2002 a 31/07/2005 - apenso 56 CD , com excepção dos meses de Agosto de 2002, Outubro a Dezembro de 2002 e Março de 2003 ; apenso 34­relativo às receitas e encargos do estabelecimento, no período de 1-1-2005 a 31-12- 2005; diversas pastas com documentos relativos a receitas e encargos do estabelecimento referentes a Janeiro de 2004 , Agosto de 2003 , Agosto, Setembro e Outubro de 2005 - Apenso 34 – A.
Com base em tais documentos, não impugnados, obteve-se o resultado pericial em valores, igualmente não impugnado pelo arguido, em que se fundamenta a seguinte factualidade da acusação, que aqui se reproduz: (…)
Pelo exposto (…) improcede a argumentação do arguido J... também quanto aos imputados crimes de fraude fiscal de que se encontra acusado.
- (…) As arguidas [M...e H...] vieram ainda alegar em relação aos crimes de fraude fiscal de que se encontram acusadas que entregaram sempre as declarações fiscais relativas ao IVA e ao IRC, pretendendo a acusação vir a alterar em sede penal os valores aceites pela DGCI em face de resultados periciais, sucedendo que as declarações apresentadas pelos contribuintes se presumem verdadeiras em conformidade com a Lei Geral Tributária, só não o sendo nos casos excepcionais previstos na lei - art." 75/2 da LGT - , em que tais presunções deixam de valer, ficando a prova dos factos sujeito às regras de repartição do ónus da prova estabelecidas no art.º 74 da referida lei, mas tal repartição do ónus da prova dá-se apenas entre as duas partes da relação tributária -, a Administração e o contribuinte e se aquela não demonstrar a falta de correspondência entre o teor das declarações e a realidade o seu conteúdo terá de se considerar verdadeiro.
Mais alegam que a Administração tributária quando pretende verificar o cumprimento das obrigações tributárias e a prevenção das infracções tributárias terá de adoptar procedimentos vinculados; no caso concreto o procedimento a adoptar teria de ser o da inspecção tributária previsto na LGT que tem como finalidade controlar se os factos geradores de imposto deram origem às liquidações tributárias que são devidas.
No caso não se verifica que as arguidas tenham sido notificadas de qualquer liquidação adicional de imposto, seja de IV A ou de IRS , para além dos actos de liquidação levados a cabo e que estiveram na base das declarações de IV A e de IRC, limitando-se a acusação a sustentar a existência dum conjunto de dívidas fiscais baseadas em relatório levado a cabo por dois peritos, sendo que só há imposto a pagar no âmbito dos procedimentos vinculados de determinação de imposto previsto nas Leis Fiscais - art.° 54° da LGI - e nunca no âmbito de um processo penal.
Acresce que a acusação assenta toda a sua tese da existência de fraude fiscal num relatório pericial onde se procedeu à determinação de IRC com recurso a métodos indirectos e, em consequência, à correcção de IVA, sem o procedimento de revisão da matéria colectável conforme a lei, com preterição de formalidades como o direito à audição.
Cumpre apreciar e decidir:
Os montantes apurados relativos ao rendimento real sujeito a tributação das sociedades arguidas em IV A e em IRC tiveram por base a realização de perícias fiscais, que se encontram em apenso aos autos.
Foram as arguidas notificadas da realização das referidas perícias em conformidade com o disposto no Código de Processo Penal, sendo notificados do resultado das mesmas não as Impugnaram. Verifica-se que tais perícias [relatório pericial relativamente à sociedade B…& C _ apenso 63; relatório pericial relativo à Sociedade M…, Lda." - apenso 62; relatório pericial relativamente à Sociedade «H..., Lda.» ­apenso 61] foram realizadas tendo por base elementos concretos de prova não impugnados pelas arguidas e que se reportam ,essencialmente, a elementos de natureza contabilística e financeira apreendidos nas instalações das firmas e/ou nos escritórios centrais do «grupo» de que se destaca a contabilidade paralela - de que se destacam diversos livros de registo manual apenso 61, p. 3, os documentos referidos no apenso 62 . p. 4 e 5 ; apenso 63 , p. 3 e 4; e apenso 65 , p. 10.
Em relação ao alegado pelas arguidas de que existe a violação de procedimentos vinculados da administração fiscal , não existindo actos de inspecção tributária , afastamento da presunção de verdade das declarações apresentadas, ausência de acto de liquidação formal de imposto por parte da administração fiscal, e como tal não é devido qualquer imposto neste momento, e inexistindo desse modo qualquer crime de fraude fiscal, cumpre referir, e nos termos já expostos, que as mesmas não tem razão por dois fundamentos concretos.
Conforme já referido, na questão suscitada pelo requerimento do arguido V..., como no caso estão em causa factos integradores dos elementos objectivos e subjectivos de um crime fiscal, como o crime de fraude fiscal tem aplicação o princípio da suficiência do processo penal estabelecido no art.° 7° do CPP que estabelece que o processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa.
Em consequência o MP procedeu à liquidação dos valores correspondentes aos rendimentos reais das arguidas ,sobre os quais deveriam ter sido apurados os correspondentes montantes de impostos em sede de IVA e de IRC , através de perícias tributarias, sendo que quando as arguidas foram notificadas para o efeito; através dos seus legais representantes tomaram conhecimento do seu teor e não deduziram oposição exercendo o direito de reclamação quer quanto ao meio de calcular o rendimento real quer ao resultado final.
Por outro lado, cumpre referir que no caso não se trata da situação prevista no art.° 47° do RGIT pela inexistência de impugnação judicial ou oposição à execução não tem aplicação a suspensão obrigatória do processo penal.
Também há que trazer à colação o art.° 57/1 da Lei n.º 60-A/2005 de 30 de Dezembro, que veio estabelecer na nova redacção do art.° 45° da Lei Geral Tributaria, ao preceituar que “sempre que o direito à liquidação respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal o prazo de caducidade relativo ao direito de liquidar os tributos é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença acrescido de um ano”, dando deste modo a entender que os direitos dos arguidos não ficam prejudicados, pois sempre a Administração Fiscal pode após o trânsito de processo crime proceder aos actos de liquidação e aí exercendo os contribuintes os respectivos direitos.
Por outro lado, a natureza do acto tributário analisa-se numa eficácia meramente declarativa, pelo que conclui-se que não se toma necessário para a verificação do acto de liquidação do imposto um acto administrativo da administração tributaria pois o mesmo não tem natureza constitutiva mas tão só tributária.
E é nesta perspectiva de questão prejudicial no âmbito de um concreto processo crime e em face do princípio da suficiência do processo penal que se analisa a competência do MP para proceder ao cálculo do rendimento real para efeitos de liquidação de IVA e IRC, omitido pelas arguidas e como tal integrador da tipicidade dos crimes de fraude fiscal, sendo irrelevante o disposto na Lei Geral Tributaria quer quanto a formalidades quer quanto à concreta competência da administração fiscal.
E nem se diga que as arguidas saem prejudicadas em face da restrição dos seus direitos de audiência, de reclamação, pois é consabido que é no âmbito do processo penal que por natureza estão factos que contendem com direitos e liberdades mais intensos, que existe uma estrutura do processo que se analisa em mecanismos especialmente orientados para a sua salvaguarda, como a possibilidade de apresentar provas, contraditar, em nome da verdade material.
Mais alegam que a determinação da matéria colectável através do recurso a métodos indirectos é apenas possível nos casos e condições expressamente previstos na Lei Fiscal, designadamente quando seja impossível a determinação directa por haver recusa da exibição da contabilidade e demais documentos legalmente exigidos, bem como a sua ocultação, destruição, inutilização, falsificação ou viciação.
Alegam ainda que desconhecem a existência de qualquer fundamentação com o recurso a métodos indirectos, sendo que além de tais resultados assentarem em meras presunções de rendimentos é sempre um resultado provisório, sendo que de tal resultado pode o contribuinte pedir a revisão da matéria colectável, sendo que tal pedido tem efeito suspensivo da liquidação do tributo.
Salvo o devido respeito, não é isso que resulta dos autos. Sempre que a escrita do sujeito passivo não permite um correcto apuramento do montante do imposto devido em face da verificação de determinadas circunstâncias como seja erros, omissões ou falsidades existentes naquela e não seja possível através de elementos objectivos recolhidos pela Administração Tributaria o seu apuramento, a Lei Geral Tributária permite que tal apuramento se faça através do recurso a métodos indiciários que hoje se denominam de indirectos.
Na verdade, o art.º 85 da LGT veio estabelecer uma preferência absoluta pela utilização de métodos de avaliação directa para a fixação da matéria tributável, o que se compreende por serem maiores as garantias de rigor que este método fornece.
Assim só se poderá recorrer à avaliação indirecta para fixação da matéria tributável quando não for possível proceder a tal fixação através de avaliação directa e, mesmo nestes casos utilizar-se-ão na avaliação indirecta , na medida do possível , as regras da avaliação directa - Diogo Leite de Campos, Lei Geral Tributaria, Comentada e Anotada, 2ª edição,20000, p. 360 . Também neste sentido Ac.sTCA Sul de 21-10-2004 e 16/03/2005 .
Ora os valores apurados e descritos na acusação pública basearam-se em concretos elementos apreendidos nas instalações das arguidas e elaborados pelas mesmas, permitindo concluir que se trata de dados da empresa devido à existência de contabilidade paralela, mais concretamente livros, ficheiros de computador , extractos bancários conforme resulta dos respectivos relatórios perícias, apensos , 61, 62 e 63.
As correcções de rendimento apurado em relação às três sociedades basearam­-se em métodos directos de apuramento.
Acresce que as arguidas requerentes, conforme já referido não Impugnaram tais documentos que estiveram na base da rectificação de rendimentos, nem o resultado da perícia, nem em sede de instrução juntaram elementos de prova que ponham em causa a quantificação realizada pelo MP através das referidas perícias.
Por fim sustentam as arguidas que também não praticaram quaisquer contra-ordenações fiscais nos termos imputados pela acusação.
Também aqui as arguidas não têm razão, pois e na sequencia do resultado das perícias tributarias, quando o montante devido ao Fisco é inferior a 15 000 euros em sede de fraude fiscal, tal conduta passa a ter a natureza de contra-ordenação, em conformidade com o disposto no art.º 119/1 do RGIT e ainda em conformidade com o disposto no art.ºs 7/1 e 26/ 1 do referido diploma, sendo em relação à arguida «H...» em relação ao IVA do 4° trimestre de 2005, art.° 1911 b) da acusação; em relação à arguida «M…» as contra-ordenações reportam-se ao IVA de 1°, 2° 3° trimestres de 2002 ; 1° trimestre de 2004 e 3° e 4° trimestre de 2005; sendo que em relação à arguida « B... &, C" Ldª » os factos estão descritos no art.° 1998 da acusação.
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A nosso ver face ao transcrito pronunciamento estava vedado ao Colectivo do julgamento voltar a pronunciar-se sobre a suficiência do inquérito ou sobre os pressupostos processuais já expressamente apreciados pelo Juiz de Instrução com vista ao prosseguimento do processo para julgamento. Quanto a eles formara-se caso julgado. Nesta parte as decisões do JI relativas aos pressupostos processuais não foram meramente tabelares.
Quanto aos «actos introdutórios» da audiência de julgamento, o art.º 338º do Código de Processo Penal veda ao juiz o conhecimento de nulidades ou de outras questões prévias ou incidentais sobre as quais já tenha havido decisão expressa, ou seja, que já tenham sido objecto de pronúncia em despacho fundamentado.
Efectivamente o artigo impõe ao juiz que conheça e decida sobre as nulidades ou outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa “acerca das quais não tenha ainda havido decisão”.
O mesmo se passa na fase da sentença, dispondo o art.º 368º/1 do mesmo Código que o tribunal começa por decidir separadamente as questões prévias ou incidentais “sobre as quais ainda não tiver recaído decisão”.
Por estes preceitos se vê que quanto às questões processuais especificamente abordadas e judicialmente decididas com possibilidade de recurso imediato, fica vedado ao tribunal pronunciar-se de novo sobre as mesmas, salvo a superveniência de novas ocorrências que com elas interfira.
É claro que estão sempre ressalvadas situações bem delimitadas pela doutrina sobre as quais não pode falar-se em «caso julgado formal». Estão neste grupo a imputabilidade do arguido, a prescrição do procedimento criminal, a amnistia. São, nas palavras do Professor Germano Marques da Silva [Curso de Processo Penal, III, pp. 188], situações de natureza estritamente processual no momento da decisão instrutória mas que são de natureza substantiva no momento da decisão de mérito. Serão situações que não conduzem à absolvição da instância, mas à absolvição do pedido de condenação [penal ou cível].
Refere o Professor que deve entender-se que a decisão instrutória sobre os pressupostos processuais ou condições de validade é definitiva em relação às questões concretas que tenham sido decididas, ressalvada a superveniência de factos que nela se repercutam e a inadmissibilidade de recurso.
A decisão instrutória de pronúncia tem como efeito a submissão do caso a julgamento e a delimitação do objecto quanto à decisão de mérito.
Em síntese, as questões que tenham já sido expressamente abordadas sobre a regularidade da relação processual ficam definitivamente resolvidas no processo, só restando ao tribunal do julgamento liberdade no plano da culpabilidade do arguido.
O referido está de acordo com a natureza meramente processual da decisão instrutória, pois ela não resolve a questão de saber se o acusado deve ou não ser punido mas tão só que se verificam os pressupostos indispensáveis para a sua sujeição a julgamento pelos factos da pronúncia.
O despacho de pronúncia é de 5/4/2007. Ou seja, à data era susceptível de recurso [com subida imediata] quanto às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais nele expressamente abordadas e decididas [cfr. art.º308º/3 do CPP na redacção então vigente e Acórdão Uniformizador de 2/10/04/ n.º7/2004/ STJ/DR I-A de 2/12/2004].
2.2- Por outra via, o despacho recorrido não é de manter enquanto afirma que o art.º42º/4 do RGIT consagra uma condição de procedibilidade consubstanciada na prévia «liquidação dos impostos». O artigo 42º do RGIT apenas versa sobre a duração do inquérito e seu encerramento nos seguintes termos
1- Os actos de inquérito delegados nos órgãos da administração tributária, da segurança social ou nos órgãos de polícia criminal devem estar concluídos no prazo máximo de oito meses contados da data em que foi adquirida a notícia do crime.
2- No caso de ser intentado procedimento, contestação técnica aduaneira ou processo tributário em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos, não será encerrado o inquérito enquanto não for praticado acto definitivo ou proferida decisão final sobre a referida situação tributária, suspendendo-se, entretanto, o prazo a que se refere o número anterior.
3- Concluídas as investigações relativas ao inquérito, o órgão da administração tributária, da segurança social ou de polícia criminal competente emite parecer fundamentado que remete ao Ministério Público juntamente com o auto de inquérito.
4- Não serão concluídas as investigações enquanto não for apurada a situação tributária ou contributiva da qual dependa a qualificação criminal dos factos, cujo procedimento tem prioridade sobre outros da mesma natureza.
Como se vê do transcrito [cujos sublinhados e negritos são nossos] o artigo refere-se tão só ao inquérito e concretamente à sua duração e encerramento. Sabe-se que no caso destes autos todas as infracções constantes da pronúncia foram objecto duma investigação conjunta no mesmo inquérito e com a coadjuvação de peritos tributários.
A direcção do inquérito pertence ao Ministério Público que na investigação com vista à dedução duma acusação ou ao arquivamento dos autos é coadjuvado pelos órgãos de polícia criminal e pelos órgãos da administração tributária, actuando estes sob a sua directa orientação e na sua dependência funcional (art.º 56º e 263º do CPP).
O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência do crime, determinar os seus agentes e respectivas responsabilidades, bem como recolher todas as provas indispensáveis àquela decisão (art.º 262º/1 do CPP).
E nos casos em que o mesmo facto constitui crime tributário e crime comum, pode o Ministério Público determinar a constituição de equipas também integradas por elementos a designar por outros órgãos de polícia criminal para procederem aos actos de inquérito (art.º41º/3 do RGIT).
O n.º4 do art.º42º do RGIT estatui que «Não serão concluídas as investigações enquanto não for apurada a situação tributária ou contributiva da qual dependa a qualificação criminal dos factos, cujo procedimento tem prioridade sobre outros da mesma natureza».
Essa situação tributária foi apurada no inquérito, tanto que com base nela foi deduzida a acusação do Ministério Público confirmada pelo JI na pronúncia.
O n.º4 do referido artigo não fala em «liquidação tributária» ou dos tributos. Fala em “situação tributária da qual dependa a qualificação criminal dos factos”, o que a nosso ver traduz uma realidade mais abrangente do que a liquidação do imposto devido e poderá até prescindir dela como acto próprio da Administração Fiscal.
Note-se que no crime de fraude fiscal o valor da vantagem patrimonial obtida nem sequer é fundamento autónomo para a qualificação do tipo (cfr. art.º 104º do RGIT). O crime pode consistir na mera ocultação de factos tributáveis.
O que o preceito imporá é o conhecimento da situação factual fiscal, imprescindível ao enquadramento típico dos factos enquanto crimes tributários imputáveis ao arguido. No caso de fraude fiscal desde que a vantagem patrimonial ilegítima perseguida seja superior aos €15.000.
Não vemos que a expressão «situação tributária» constante dos n.ºs 2 e 4 do artigo 42º do RGIT seja sinónimo de «liquidação do imposto» pela Administração Fiscal enquanto acto susceptível de reclamação graciosa ou de impugnação judicial.
Os montantes dos impostos em dívida foram objecto de apuramento no inquérito, apuramento efectuado por peritos da Administração Fiscal, sabendo-se do valor reforçado que o art.º 163º do CPP confere à prova pericial.
Que a estatuição do art.º 42º/4 do RGIT não consagra a «liquidação» [enquanto acto da administração fiscal susceptível de imediata reclamação graciosa ou de impugnação judicial nos tribunais fiscais] como condição de procedibilidade, pelo menos para todos os casos de prossecução por crimes tributários, demonstra-o o art.º 45º/5 do Lei Geral Tributária (Lei 15/2001 de 5/6) segundo o qual «Sempre que o direito à liquidação respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, o prazo a que se refere o n.º1 é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano». O prazo a que se reporta o n.º1 do artigo é precisamente o da caducidade do direito à «liquidação».
Se no processo/crime os arguidos são acusados de terem ocultado factos com relevo tributário [típico no crime de fraude fiscal] é compreensível que a Administração Fiscal aguarde que se clarifique no processo criminal essa imputação de ocultação para que proceda a liquidação adicional dos tributos.
Daí que o art.º50º/2 do RGIT imponha a comunicação à Administração Tributária das respectivas decisões finais. Esta comunicação tem em vista propiciar o pronto conhecimento do que for decidido, em ordem a acautelar os específicos interesses da Administração Fiscal, nomeadamente em matéria de liquidação e cobrança de tributos.
Até por aqui se vê também que a expressão «situação tributária» referida no art.º 42º/2 e 4 do RGIT nem sempre é sinónimo de «liquidação tributária». E nem sempre aquela é cognoscível em todos os seus precisos contornos antes da decisão criminal, como pode acontecer no crime de fraude fiscal.
Como pode a Administração Fiscal ter por certa uma «ocultação» com relevo tributário se carece duma decisão judicial que a confirme?
Daqui que, a nosso modesto ver, o art.º 42º/4 do RGIT não consagre uma condição de procedibilidade.
O que nos parece é que o preceito impõe uma intervenção técnica com a finalidade de no momento do encerramento do inquérito se puder efectuar um correcto enquadramento legal dos factos. Só assim o Ministério Público pode proceder à acusação nos termos do art.º 283º/3 alíneas b) e c) do CPP, tanto que o artigo comina com nulidade a acusação em que falte a indicação das disposições legais aplicáveis.
Desde que indiciado valor superior a €15.000, o crime de fraude fiscal prescinde do exacto «quantum» da vantagem patrimonial ilegítima obtida ou que se quis obter. Embora releve como circunstância geral no doseamento da pena, o exacto valor da vantagem nem sequer é elemento do tipo qualificado como se vê do art.º 104º do RGIT.
Será elemento de averiguação importante no inquérito. Mas não configura uma condição de procedibilidade pois isso não se retira da letra da lei. É até contrariado na previsão do art.º 45º/5 da LGT.
A sua falta nos casos em que seja imposta, configura ainda a nosso ver omissão de acto processual na fase do inquérito para a qual o Código de Processo Penal comina a nulidade prevista no art.º 120º/2 alínea d). Nulidade cujo conhecimento depende de arguição pelos interessados até ao encerramento do debate instrutório (cfr. alínea c) do n.º2).
A prova dos factos que integram o tipo pertence ao Ministério Público. A falta desta prova conduzirá à absolvição dos arguidos. Pelo que o Ministério Público pode em qualquer fase do processo [portanto também na do julgamento] fazer-se assistir tecnicamente por perito tributário com integral acesso ao processo (art.º 50º do RGIT). E desta faculdade também goza o tribunal.
A arguição da falta do acto administrativo de liquidação foi feita pelo modo como se expressaram os arguidos V..., A..., «B... & Cª L.da» e «H…, L.da», o que foi conhecido, apreciado e decidido no despacho de pronúncia.
III –
Decisão –
Termos em que se revoga nesta parte o despacho recorrido, ou seja, enquanto procedeu à absolvição da instância dos referidos arguidos quer quanto às infracções tributárias quer quanto ao pedido cível.
Sem custas
Coimbra,