Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
419/07.6TBOHP.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VIRGÍLIO MATEUS
Descritores: REFORMA DA DECISÃO
Data do Acordão: 10/14/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OLIVEIRA DO HOSPITAL
Texto Integral: S
Meio Processual: PEDIDO DE REFORMA
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 669º Nº 2 DO CPC
Sumário: A reforma da sentença é legalmente admissível quando:

a) Tenha ocorrido manifesto lapso do juiz na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;

b) Constem do processo documentos ou quaisquer elementos que, por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida e que o juiz, por lapso manifesto, não haja tomado em consideração.

Decisão Texto Integral: ACORDAM EM CONFERÊNCIA:

A... , invocando a sua qualidade de sócio da sociedade B... , instaurou aos 25-6-2007 o presente processo especial de insolvência, requerendo a declaração de insolvência desta sociedade.

No saneador-sentença foi declarado tabelarmente que as partes são legítimas e, em termos de mérito da causa, foi decidido, além do mais, declarar a insolvência da sociedade, fixar residência aos sócios, nomear administrador da insolvência e declarar aberto o incidente de qualificação com carácter limitado.

Recorreu de apelação a "C... ", para que se revogasse o decretamento da insolvência, com fundamento, entre o mais, na ilegitimidade do requerente. No acórdão de 24-6-2008 a fl. 245-249, foi a apelação julgada procedente com aquele fundamento, em suma porque, visto o disposto no artigo 19º do CIRE, a simples qualidade de sócio não confere ao requerente legitimidade activa para o efeito de instaurar o processo de insolvência da respectiva sociedade.

O mesmo requerente vem a fls. 258 requerer a reforma do acórdão ao abrigo do artigo 669º nº 2 do CPC, para que se julgue que o requerente tinha legitimidade para requerer a insolvência, alegando:

1) No Acórdão é dito, a fls 4, que «O requerente é A... actuando na apresentação da empresa à insolvência, mas ele é apenas sócio da empresa declarada insolvente. Já foi gerente, mas renunciou à gerência em 16/02/2007, portanto antes da instauração da acção». O sublinhado é nosso.

2) No entanto, tal afirmação de que o Requerente já não era gerente aquando da instauração da acção não corresponde à verdade jurídica.

3) Senão vejamos:

4) dos docs. n.ºs 1 e 2, juntos com a P.I., constata-se que, nessa data, TODOS OS 3 GERENTES já haviam, renunciado à gerência.

5) O Sr. D... (doc. n.° 2) ao abrigo do art.' 258 do Código das Sociedades Comerciais.

6) Os outros dois sócios por publicação no Diário da República e subsequente registo no pacto social através de pública forma no Registo Comercial daquela sociedade. Cfr. doc. n.° 1.

7) Ora, ao abrigo do n.° 1 do art.º 253º do Código das Sociedades Comerciais está estipulado que «Se faltarem definitivamente todos os gerentes, todos os sócios assumem por força da lei  os poderes de gerência, até que sejam designados os gerentes». O sublinhado é nosso.

8) Assumindo nós quer o erro de só mencionar a qualidade de sócio quando o Requerente era, por imposição legal, também gerente e de que poderíamos ter esgrimido este preceito legal mais cedo, mas o certo é que o Acórdão não fez justiça.

9) Na realidade, por manifesto lapso de V. Ex.as o Acórdão operou um erro na determinação da norma aplicável dado que não subsumiu os factos à correcta qualificação jurídica.

10) Constam do processo (docs. n.ºs 1 e 2) e do articulado, nomeadamente, no seu art.º 8.° que todos os gerentes já haviam renunciado às suas funções.

11) Consequentemente, sendo à época da entrada em Juízo, o Requerente A..., sócio-gerente da Requerida deve considerar-se que o processo está instruído de documentos que, só por si, implicam necessariamente decisão diversa da proferida.

12) Nestes termos e nos melhores de Direito, doutamente supridos, devem V. Ex.as reformular o Acórdão e julgar que o Requerente possuía legitimidade para requerer a insolvência da Requerida bem como decretar, finalmente, a sua Insolvência.

13) Na verdade, não se deve privilegiar a forma sob a substância.

14) E a verdade é que a Requerida, não possui funcionários, obras em curso, posse efectiva de qualquer utensílio, meio de produção ou imóveis apenas possuindo, tão-só, juridicamente, duas viaturas automóveis e uma grua os quais se encontram arrestados há dois anos, bem como um sem número de credores e acções declarativas de condenação em Tribunal.

15) Dificilmente se encontrará outra pessoa colectiva que cumpra tão precisamente os requisitos do art.º 3.° do CIRE.

16) Por outro lado, ao abrigo do art.º 20 do CIRE, o facto de se ser sócio implica automaticamente a possibilidade de ser considerado legalmente responsável pelas dívidas do devedor.

17) No nosso caso em concreto, o requerente já foi citado em 3 processos de reversão ordenados pelo Serviço de Finanças de Oliveira do Hospital, sob os n.ºs 0809200601012231, 0809200701010948 e 0809200601016016, na qualidade de responsável subsidiário.

18) Somente não se juntam as cópias uma vez que estamos em fase de reforma de Acórdão.

Não houve resposta.

Cumpre apreciar e decidir:

O artigo 669º nº 2 do CPC permite a reforma da sentença quando:

a) Tenha ocorrido manifesto lapso do juiz na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;

b) Constem do processo documentos ou quaisquer elementos que, por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida e que o juiz, por lapso manifesto, não haja tomado em consideração.

Tudo visto e reponderado, verifica-se que inexiste qualquer dos lapsos manifestos a que se refere uma ou outra das referidas alíneas desse nº 2.

O que o requerente questiona é a determinação da norma aplicável na solução encontrada no acórdão acerca da legitimidade do requerente. Defende agora o requerente que o acórdão devia ter considerado o disposto no artigo 253º nº 1 do CSC; e que, pelo artigo 20º do CIRE, o facto de o requerente ser sócio implica automaticamente a possibilidade de ser considerado legalmente responsável pelas dívidas do devedor e daí o ter sido citado em processos fiscais na qualidade de responsável subsidiário.

Vejamos.

Preceitua o n.° 1 do art.º 253º do Código das Sociedades Comerciais que «se faltarem definitivamente todos os gerentes, todos os sócios assumem por força da lei  os poderes de gerência, até que sejam designados os gerentes».

A falta definitiva de todos os gerentes significa a falta de todos gerentes ordinários e de todos os suplentes quando os haja. Nessa situação, os sócios não passam automaticamente a gerentes, antes assumem automaticamente os poderes de gerência.

Quer dizer: eram três sócios, todos gerentes, entre eles o requerente, e todos eles renunciaram à gerência.

Entendia e continua a entender o requerente que detinha, enquanto sócio, legitimidade para, só por si, requerer a declaração da falência.

Erradamente o faz, ao invocar agora o artigo 253º nº 1 do CSC, não tendo de se lastimar por não «ter esgrimido este preceito legal mais cedo» como afirma em 8).

É que, com a renúncia da gerência por todos os sócios-gerentes, todos os sócios assumem os poderes de gerência, devendo cumprir-se as regras de funcionamento da gerência plural constantes do artigo 261º do CSC (cf. Raúl Ventura, Sociedades por Quotas, III, 1991, p. 47).

Pelo nº 1 deste artigo, «quando haja vários gerentes e salvo cláusula do contrato de sociedade que disponha de modo diverso, os respectivos poderes são exercidos conjuntamente, considerando-se válidas as deliberações que reúnam os votos da maioria e a sociedade vinculada pelos negócios jurídicos concluídos pela maioria dos gerentes ou por ela ratificados» ([1]).

De entre as três modalidades ou métodos de funcionamento da gerência plural (disjunta, conjunta e colegial), o nº 1 do dito art. 261º mostra que para a representação activa o legislador comercial adoptou o método conjunto, também dito sistema majoritário. Ou seja: os poderes devem ser exercidos pelo menos por dois dos três sócios com poderes de gerência, ambos ou mais manifestando a mesma vontade (cf. Raúl Ventura, op. cit, III, p. 183 e 189 infra e segs).

Apenas para a representação passiva (que não é o caso de requerimento de declaração da falência) vale o método disjunto, conforme nº 3 do dito art. 261º. Mas a actuação do requerente na instauração do processo de insolvência é caso de representação activa, de modo que pelo nº 1 do art. 261º do CIRE era necessária a maioria dos sócios para a prática do acto jurídico, acto que no caso é o de requerimento de declaração da insolvência ([2]). E a maioria exigível para o efeito consistia na manifestação da vontade concordante de pelo menos dois sócios ([3]).

Ora, no caso concreto temos conhecimento da intervenção de apenas um dos três sócios com poderes de gerência, quando por força da lei deviam ter intervindo pelo menos dois. Consequentemente, o juízo emanado no sentido de que o requerente carece de legitimidade processual não é alterado pela consideração do disposto no artigo 253º nº 1 do CSC, pelo que o acórdão não tinha de curar da questão da aplicação ou não aplicação desse preceito, questão que não fora colocada em sede do recurso de que se conheceu.

Também a invocação do artigo art.º 20 do CIRE pelo requerente da reforma, no sentido de que, pelo aí preceituado, o facto de se ser sócio implica automaticamente a possibilidade de ser considerado legalmente responsável pelas dívidas do devedor, é inútil.

É que o artigo citado não contém o que o requerente entende estar ali preceituado. Nem de perto nem de longe. Sobre a possibilidade de um sócio da sociedade por quotas ser considerado legalmente responsável pelas dívidas sociais, conviria que o requerente tivesse em conta não só o disposto nos art. 20º nº 1 e 6º nº 2 do CIRE, mas também, em termos substantivos, o disposto no art. 198º do CSC em consonância com o contrato de sociedade. A lei fiscal, que terá permitido a sua citação como devedor subsidiário, não tem aplicação neste âmbito meramente civilístico.

Segue-se que o acórdão não contém qualquer lapso manifesto que o requerente lhe imputa. Pelo contrário, é manifesta sim a inexistência do arguido lapso. O pedido de reforma podia facilmente ter sido evitado se, com um mínimo de diligência, o requerente tivesse atentado no regime legal atinente à questão que suscita.

Decisão:

Pelo exposto, vai indeferido o pedido de reforma, com custas pelo requerente, cuja taxa de justiça se fixa em cinco UC.

Coimbra, 2008-10-14

[1] O que aí se prescreve para negócios jurídicos vale também para os simples actos jurídicos (cf. Raúl Ventura, op. cit, III, p. 191).
[2] A representação diz-se activa quando respeita à emissão de vontade em nome da sociedade com efeitos externos, v.g. dirigida a terceiros. Na representação passiva, o conhecimento por um dos gerentes (ou por um dos sócios com poderes de gerência nos termos do art. 253º nº 1 do CSC) reputa-se conhecimento pela sociedade (tal como sucede nas S.A. pelo art. 408º nº 2 do CSC). Em termos de ratio legis, na representação activa prevalece o interesse da sociedade, enquanto na representação passiva prevalece o de terceiros (cf. Raúl Ventura, op. cit, III, p. 191 e 192).
[3] Quando há dois gerentes, devem ambos intervir; quando há três ou mais, intervirá a maioria (cf. Raúl Ventura, op. cit, III, p. 191).