Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2239/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITO LABORAL
HIPOTECA
PENHOR MERCANTIL
Data do Acordão: 10/11/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE FERREIRA DO ZÊZERE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTº 21º DA LEI Nº 99/2003, DE 27/08, QUE APROVOU O ACTUAL CÓDIGO DO TRABALHO . ARTº 377º DO C. TRAB. DE 2003 . ARTºS666º, 686º, 735º, Nº 3, E 751º DO C. CIV..
Sumário: I – A Lei nº 99/2003, de 27/08, que aprovou o Código do Trabalho, em vigor desde 1/12/2003, estipula no seu artº 21º, nº 1, que com a entrada em vigor do dito Código são revogados os diplomas respeitantes às matérias nele reguladas, aludindo expressamente, nº 2, al. e) desse preceito, à revogação da Lei nº 17/86, de 14/06 .
II - No artº 377º do actual C. Trab. é regulada a matéria das garantias dos créditos dos trabalhadores, nomeadamente os privilégios creditórios de que gozam, onde se preceitua que os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade .

III – E nos termos do nº 2 desse artº 377º a graduação desses créditos é feita pela seguinte ordem : o crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes dos créditos referidos no nº 1 do artº 747º do C. Civ. ; o crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes dos créditos referidos no artº 748º do C. Civ. e ainda dos créditos de contribuições devidas à segurança social .

IV – Por força do artº 12º, nº 2, 2ª parte, do C. Civ., o disposto no artº 377º do C. Trab. aplica-se a todos os créditos dos trabalhadores emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, mesmo que constituídos anteriormente à entrada em vigor do dito Código .

V – No quadro legislativo actual os créditos dos trabalhadores emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação gozam de privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade, sendo graduados antes dos créditos referidos no artº 748º do C. Civ. e dos créditos de contribuições devidas à segurança social ; mas no que respeita ao produto da venda dos bens móveis empenhados, no artº 666º do C. Civ. estabelece-se uma prioridade absoluta ( preferência sobre os demais credores, sem qualquer reserva ), o que, conjugado com o disposto no artº 749º, nº 1, do C. Civ., conduz à conclusão de que a preferência deve ser dada ao penhor .

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


1. RELATÓRIO
Nos autos de reclamação de créditos apensos ao processo de falência em que é requerida “A...”, além de outros que para o presente recurso não relevam, foram reclamados, julgados verificados e reconhecidos os seguintes créditos Os quais, na enumeração feita na decisão sob recurso têm o número de ordem que infra, entre parêntesis, se refere.:
- (4) Por B..., respeitante a retribuições, férias e subsídios de Natal, acrescido de juros legais, a quantia de € 8.094,47;
- (5) Por C..., decorrente de acordo homologado por sentença do Tribunal de Trabalho de Tomar, e respectivos juros, a quantia de € 10.917,68;
- (6) Por D..., decorrente de acordo homologado por sentença do Tribunal de Trabalho de Tomar, e respectivos juros, a quantia de € 35.349,47;
- (7) Por E..., requerente da falência decorrente de acordo homologado por sentença do Tribunal Trabalho de Tomar, e respectivos juros, a quantia de € 17.758,20;
- (8) Por F..., decorrente de acordo homologado por sentença do Tribunal de Trabalho de Tomar, e respectivos juros, a quantia de € 10.917,68;
- (10) Por G..., decorrente de acordo homologado por sentença do Tribunal de Trabalho de Tomar, e respectivos juros, a quantia de € 5.083,24;
- (11) Por H..., decorrente de acordo homologado por sentença do Tribunal de Trabalho de Tomar, e respectivos juros, a quantia de € 7.013,03;
- (12) Por I..., decorrente de acordo homologado por sentença do Tribunal de Trabalho de Tomar, e respectivos juros, a quantia de € 7.668,94;
- (13) Por J..., decorrente de acordo homologado por sentença do Tribunal de Trabalho de Tomar, e respectivos juros, a quantia de € 6.793,10;
- (14) Por K..., decorrente de acordo homologado por sentença do Tribunal de Trabalho de Tomar, e respectivos juros, a quantia de € 5.945,14 Embora tenha sido reclamada a quantia de € 6.793,10, foi julgada verificada e reconhecida apenas a quantia de € 5.945,14. Para tanto, escreveu-se na decisão sob recurso:
Crédito referido sob o nº 14:
Assiste de facto razão à Srª Liquidatária, uma vez que o valor reclamado resulta de um erróneo somatório do valor da sentença e dos juros devidos. Assim, considero verificado o crédito pelo valor de € 5.945,14”;
- (15) Por L..., decorrente de acordo homologado por sentença do Tribunal de Trabalho de Tomar, e respectivos juros, a quantia de € 10.375,64;
- (16) Por M..., decorrente de acordo homologado por sentença do Tribunal de Trabalho de Tomar, e respectivos juros, a quantia de € 14.051,96;
- (20) Pelo N..., proveniente de penhor mercantil, a quantia de € 449.731,87 Relativamente ao crédito reclamado pelo Banco Comercial Português escreveu-se na decisão recorrida:
“Crédito reclamado sob o n° 20:
Dos documentos juntos aos autos, verifica-se que o valor inicialmente reclamado pelo Banco era no valor de € 673.722,16, tendo agora vindo a reclamar um valor inferior, isto é de, € 449.731,87, alegando pagamentos efectuados e dações em cumprimento. Ora, se assim é, não assiste razão à Sra Liquidatária, pois, tendo o banco até reduzido o seu crédito e não tendo ninguém reclamado, há que considerar verificado o valor reclamado pelo N... no valor de € 449.731,87, aliás, valor esse igual ao da justificação de créditos. — .
No tocante à respectiva graduação, foi entendido que prevalece “o crédito emergente de contrato de trabalho sobre a hipoteca, mesmo que esta garantia seja anterior, cfr. artº 686º, 1, do Código Civil e sobre o penhor, cfr. 666º, 1, do mesmo Código”.
E, consequentemente, foi a graduação feita nos termos seguintes:
“Do produto da liquidação dos bens apreendidos sairão precípuas as custas e as despesas com a liquidação do activo, começando-se pelas verbas despendidas com a remuneração da Sra. Liquidatária nomeada (arts. 208º, 249º, 2, e 34º, 4, do Decreto - Lei nº 132/93, na redacção dada pelo Decreto - Lei nº 315/98, de 20 de Outubro e 5º do Decreto - Lei nº 254/93, de 15 de Julho.
Do remanescente dar-se-á pagamento aos credores com créditos verificados pela seguinte forma:
Em primeiro lugar os créditos emergentes de contrato de trabalho e sua cessação, que correspondem aos nºs 4, 5, 6, 7, 8, 10, 11, 12, 13, 14,15 e 16 (...).
Em segundo lugar o crédito garantido com a hipoteca e com o penhor do N..., sendo que esta última garantia apenas incide sobre a grua florestal de marca “Ferrari CF 50 T” e sobre a descascadeira de marca “Ferritima, modelo F 630 E”.
Em terceiro lugar os restantes créditos comuns.”
Inconformado, o N... interpôs recurso e, na alegação apresentada, formulou as conclusões seguintes:
1) A Lei nº 17/86 de 14 de Junho não regula o regime jurídico do privilégio imobiliário geral de que gozam os créditos dos trabalhadores, em confronto com os créditos garantidos por hipoteca.
2) O regime de tal privilégio, sendo geral, deve ser o constante do artº 749º do Código Civil, daí resultando, nos termos artº 686º, nº 1 do mesmo código, que tais créditos devem ser graduados depois dos créditos do apelante garantidos com hipoteca.
3) A interpretação do artº 12º nº 1 alínea b) da Lei nº 17/86 de 14 de Junho, perfilhada na sentença recorrida, de que o privilégio imobiliário geral ali previsto prevalece sobre a hipoteca anteriormente registada, é materialmente inconstitucional, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artº 2º da Constituição.
4) Com esse fundamento, foram objecto de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, os correspondentes preceitos constantes do artº 104º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto - Lei nº 442-A/88 de 30 de Novembro, do artº 11º do Decreto - Lei nº 103/80 de 9 de Maio e do artº 2º do Decreto - Lei nº 512/76 de 3 de Julho, pelos Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 362/2002 e 363/2002 de 17.09.2002, publicados no Diário da República, I Série, de 16.10.2002.
5) Tal fundamento é aplicável aos demais casos em que se verifique a prevalência do privilégio imobiliário geral sobre a hipoteca.
6) Os créditos dos trabalhadores que gozam de privilégio mobiliário geral, nos termos do artº 12º nº 1 alínea a) da Lei nº 17/86 de 14 de Junho, devem ser graduados com preferência relativamente apenas aos credores comuns, nos termos do artº 749º do Código Civil.
7) No confronto com os créditos garantidos com penhor, os créditos emergentes de contrato de trabalho devem ser graduados depois daqueles créditos, nos termos do artº 666º nº 1 do Código Civil.
8) A douta sentença recorrida violou o disposto nos artºs 666º nº 1, 686º nº 1 e 749º nº 1 do Código Civil e no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que gradue os créditos hipotecários e pignoratícios do apelante, antes dos créditos emergentes de contrato de trabalho e da sua cessação.
Os reclamantes E... e G... responderam defendendo a manutenção da sentença recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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2. QUESTÕES A SOLUCIONAR
Tendo em consideração que, de acordo com os artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foram colocadas as questões seguintes:
a) Prevalência ou não, na graduação relativa ao produto da venda do bem imóvel, dos créditos emergentes de contrato de trabalho e sua cessação sobre o crédito garantido por hipoteca;
b) Prevalência ou não, na graduação relativa ao produto da venda dos bens móveis objecto de penhor, dos créditos emergentes de contrato de trabalho e sua cessação sobre o crédito beneficiado por aquela garantia;
c) Inconstitucionalidade do artº 12º, nº 1, al. b) da Lei nº 17/86, de 14/06, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário ali previsto prevalece sobre a hipoteca anteriormente registada.
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3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. De facto
A factualidade relevante para a decisão é a que resulta do antecedente relatório e ainda a seguinte:
a) Nos autos de falência de que a presente reclamação de créditos é apenso foram apreendidos para a massa falida um bem imóvel – prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de Ferreira do Zêzere sob o nº 00070/211085 da freguesia de Águas Belas e inscrito sob os artigos 1018 e 817, quanto à parte urbana, e sob o artº 70, secção N, quanto à parte rústica – e vários bens móveis, entre eles uma grua florestal de marca “Ferrari CF 50 T” e uma descascadeira de marca “Ferritima, modelo F 630 E”.
b) Os créditos julgados verificados e reconhecidos, indicados na decisão recorrida sob os nºs 4 a 8 e 10 a 16 emergem de contratos de trabalho que ligaram os credores reclamantes à falida ou da sua violação;
c) O crédito julgado verificado e reconhecido, indicado na decisão recorrida sob o nº 20 está garantido por hipotecas, devidamente registadas, sobre o único bem imóvel da falida apreendido e por penhor sobre a grua florestal de marca “Ferrari CF 50 T” e a descascadeira de marca “Ferritima, modelo F 630 E”, igualmente apreendidas.
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3.2. De direito
A Lei nº 99/2003, de 27 de Agosto, que aprovou o Código do Trabalho, em vigor desde 01/12/2003 (cfr. artº 3º, nº 1 da Lei), estipula no artº 21º, nº 1 que com a entrada em vigor do dito Código são revogados os diplomas respeitantes às matérias nele reguladas, aludindo mesmo expressamente, no nº 2, al. e), à revogação da Lei nº 17/86, de 14/06.
Ora, o Código do Trabalho regula a matéria das garantias dos créditos dos trabalhadores, nomeadamente os privilégios creditórios de que gozam, no artº 377º, onde se preceitua que:
1- Os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios creditórios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade.
2- A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte:
a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes dos créditos referidos no nº 1 do artigo 747.° do Código Civil;
b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes dos créditos referidos no artigo 748º do Código Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à segurança social.

P. de Lima e A. Varela Código Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, pág. 61. ensinam que “a lei que regula em novos termos a garantia patrimonial de determinados créditos, criando, por exemplo, a seu favor, um privilégio creditório, deve aplicar-se retroactivamente”. E referem, nesse sentido, o Ac. do STJ de 29/05/80 BMJ, nº 297, págs. 278 e seguintes., em cujo texto, embora tendo em mente o privilégio estabelecido no artº 2º do Dec. Lei nº 512/76, de 03/07, a favor dos créditos por contribuições do regime geral da previdência e respectivos juros, se escreve: “trata-se de um preceito que, dispondo directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas (...), abstrai dos factos que lhes deram origem, limitando-se a regular a garantia patrimonial de tais créditos, pelo que está abrangido pela 2ª parte do nº 2 do artº 12º do Código Civil”.
No mesmo sentido foi decidido no Ac. da Rel. de Évora de 12/07/79 CJ, IV, 4, 1323., no Ac. do STJ de 05/06/96 CJ(STJ), IV, II, 112. e no Ac. da Rel. de Lisboa de 28/01/98 CJ, XXIV, I, 95., podendo ler-se, no texto deste último aresto, o seguinte: “Segundo João Batista Machado, nessa obra brilhante do chamado direito transitório que são os seus estudos «sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil», as leis relativas aos privilégios creditórios, quer estabeleçam novos privilégios, quer suprimam os anteriormente existentes, são sempre de aplicação imediata”.
Concordando com o entendimento referido, afigura-se-nos que, por força do artº 12º, nº 2, 2ª parte, do Cód. Civil, o disposto no artº 377º do Cód. do Trabalho aplica-se a todos os créditos dos trabalhadores emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, mesmo que constituídos anteriormente à entrada em vigor do dito Código.
O que significa que se aplica no caso dos autos.
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3.2.1. Graduação sobre o produto da venda do imóvel
Na decisão recorrida afirmou-se o seguinte:
“Quanto aos créditos reclamados pelos trabalhadores, importa assinalar que gozam do priviléqio creditório (imobiliário e mobiliário), instituído pelo artº 12º da Lei 17/86 (Lei dos “salários em atraso”), o qual acresce ao previsto pelo artº 737º, nº 1, d), Código Civil (“Esta última é uma norma geral, no sentido de que mune do privilégio não apenas os créditos de natureza salarial, mas, mais latamente, os créditos emergentes do contrato de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato, pertencentes ao trabalhador. Diferentemente, o art. 12º, nº 1 preceitua que a respectiva estatuição se aplica, tão só, aos créditos emergentes de contrato individual de trabalho regulados pela presente lei - ora, como logo esclarece o nº 1 do seu art. 1º, “a presente lei rege os efeitos jurídicos especiais produzidos pelo não pagamento pontual da retribuição devida aos trabalhadores por conta de outrem”. Quer isto dizer, em suma, que o legislador do trabalho, perante o dramatismo assumido pelas situações de salários em atraso julgou conveniente disciplinar ele mesmo a matéria dos privilégios creditórios do direito à retribuição, naturalmente com intenção de dotar este crédito de melhores e mais consistentes garantias” - João Leal Amado, A Protecção do Salário, Coimbra, 1993, pág. 151.
Nestes termos, possuem os créditos emergentes de contrato individual de trabalho, com carácter retributivo, um privilégio imobiliário e mobiliário geral, cfr. art. 12º, da citada Lei 17/86.
Não há dúvida de que, no quadro legislativo anterior ao Código do Trabalho, ou seja, na vigência do artº 12º, nº 1 da Lei nº 17/86 e do artº 4º, nº 1 da Lei nº 96/2001, de 20/08, os créditos reclamados pelos trabalhadores da falida, emergentes de contrato individual de trabalho ou da sua violação, gozavam de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário geral.

No pressuposto da permanência desse quadro, perante a concorrência de tais créditos com um crédito garantido por hipoteca incidindo sobre o único imóvel que integra a massa falida, foi na decisão sob recurso entendido que aqueles tinham preferência sobre este no pagamento com o produto da venda do imóvel.
O apelante, raciocinando no mesmo quadro, discorda, sustentando que a preferência é do crédito garantido pela hipoteca e não dos créditos que gozam daquele privilégio imobiliário geral.
E, salvo sempre o devido respeito por opinião adversa, não fora a alteração da lei com a entrada em vigor do Código do Trabalho, afigura-se-nos que teria razão.
De acordo com o nº 3 do artº 12º da Lei nº 17/86 e com o nº 4 do artº 4º da Lei nº 96/2001, os créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação, quanto ao privilégio imobiliário geral, graduavam-se antes dos créditos referidos no artº 748º do Código Civil e ainda dos créditos devidos à segurança social.
A legislação especial mencionada não estabelecia o regime do privilégio imobiliário geral conferido aos créditos dos trabalhadores perante a hipoteca. Isto é, não previa qual o lugar de cada uma dessas garantias das obrigações em caso de concorrência entre elas.
Nos termos do artº 686º do Cód. Civil, a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo. Donde se conclui que enquanto o privilégio especial prefere à hipoteca, o mesmo não sucede relativamente ao privilégio geral.
Contudo, apesar da qualificação de «geral» expressamente dada pelas leis nºs 17/86 e 96/2001 ao privilégio imobiliário com que beneficiaram os créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação, esbarrava-se com o artº 735º, nº 3 do Cód. Civil que afirmava categoricamente que os privilégios imobiliários são sempre especiais.
Daí que a doutrina e a jurisprudência se tenham dividido, havendo quem, considerando aquele privilégio como geral, entendesse aplicável o artº 749º do Cód. Civil e, consequentemente, que a hipoteca prevalecia sobre ele; e quem, entendendo que o mesmo privilégio, sendo imobiliário, não poderia deixar de ser especial, considerasse aplicável o artº 851º do Cód. Civil e, por isso, que ele prevalecia sobre a hipoteca.
O Dec. Lei nº 38/2003, de 08/03, alterou o artº 735º, nº 3 do Cód. Civil, substituindo a frase «os privilégios imobiliários são sempre especiais» pela proposição «os privilégios imobiliários estabelecidos neste Código são sempre especiais». O que, deixa subentendido que em legislação estranha ao Código Civil existem – ou podem existir – privilégios imobiliários gerais.
O mesmo Dec. Lei nº 38/2003 modificou também o artº 751º do Cód. Civil, em termos de onde se dizia que «os privilégios imobiliários são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores», passar a dizer que «os privilégios imobiliários especiais Sublinhado nosso. são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores». O que permite a conclusão de que os privilégios imobiliários gerais não têm as mesmas virtualidades, nomeadamente, não preferem à hipoteca.

O Dec. Lei nº 38/2003 entrou em vigor em 15/09/2003 (cfr. artº 23º) e as normas transitórias constantes do artº 21º, não afastam a aplicação das alterações feitas ao Código Civil aos processos pendentes.
Embora no caso dos autos a falência tenha sido requerida em 25/03/2003, as reclamações de créditos e a decisão sob recurso são posteriores à data de entrada em vigor daquele diploma legal.
Assim, atento o disposto no artº 12º, nº 2 do Cód. Civil e o notório carácter interpretativo das indicadas alterações à lei civil, são “in casu” as mesmas aplicáveis.

O que implica, como decorre de todo o exposto, que o privilégio imobiliário geral de que, no anterior quadro legislativo, gozavam os créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação não prevalecesse sobre a hipoteca (artº 749º do Cód. Civil).

Contudo, no quadro legislativo actual que, como se disse, tem aplicação “in casu”, os créditos dos trabalhadores emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação gozam de privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade, sendo graduados antes dos créditos referidos no artigo 748º do Código Civil e dos créditos de contribuições devidas à segurança social (artº 377º do Cód. do Trabalgo).
Tendo sido apreendido para a massa falida um único imóvel, conclui-se, por presunção, que era nele que os trabalhadores prestavam a sua actividade e, portanto, que os seus créditos gozam de privilégio imobiliário especial sobre ele. Na ausência de solução expressa da lei, tal privilégio, porque especial, prevalece, como decorre de quanto atrás foi dito, sobre a hipoteca.
O que conduz à conclusão de que, embora com fundamentos diferentes dos que dela constam, é de manter, nesta parte, a decisão recorrida.
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3.2.2. Graduação sobre o produto da venda dos bens móveis empenhados
Como foi já atrás dito, para além do privilégio imobiliário geral, os créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação gozavam – e continuam a gozar (artº 377º, nº 1, al. a) do Cód. do Trabalho) – também de privilégio mobiliário geral.
A questão que se coloca é a de saber se, concorrendo sobre o produto da venda de determinados bens móveis esses créditos e créditos garantidos por penhor, devem ser pagos preferentemente os primeiros ou os segundos.
Privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros – artº 733º do Cód. Civil.
O penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro – artº 666º do Cód. Civil.
De acordo com o nº 3, al. a) do artº 12º da Lei nº 17/86 e com o nº 4, al. a) do artº 4º da Lei nº 96/2001, os créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação, quanto ao privilégio mobiliário geral, graduavam-se antes dos créditos referidos no nº 1 do artº 747º do Código Civil, mas pela ordem dos créditos enunciados no artigo 737º do mesmo Código. E, segundo o artº 377º, nº 2, al. a) do Cód. do Trabalho, o crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes dos créditos referidos no nº 1 do artigo 747º do Código Civil.
Também neste caso se não estabelece se o privilégio mobiliário geral daqueles créditos prefere ou não ao penhor.
Como se refere no Ac. do STJ de 17/01/1995 CJ(STJ), III, I, 22/25., no artº 666º do Cód. Civil estabelece-se uma prioridade absoluta (preferência sobre os demais credores, sem qualquer reserva), o que, conjugado com o disposto no artº 749º, nº 1, segundo o qual o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente, conduz á conclusão de que a preferência deve ser dada ao penhor.

Nesta parte procede a apelação.
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3.2.3. Inconstitucionalidade do artº 12º, nº 1, al. b) da Lei nº 17/86
A questão da inconstitucionalidade do artº 12º, nº 1, al. b) da Lei nº 17/86, se interpretado no sentido de que o privilégio imobiliário geral ali previsto prevalece sobre a hipoteca anteriormente registada, suscitada nas conclusões 3ª a 5ª da alegação de recurso, encontra-se prejudicada (cfr. artº 660º, nº 1 do Cód. Proc. Civil).
Apenas se dirá, remetendo para o Acórdão nº 498/2003/T. Const. – Processo nº 317/2002, de 02/10/2003 D.R., II Série, nº 2, de 03/01/2004., que sendo incontestável a semelhança entre a norma do artº 12º, nº 1, al. b) da lei nº 17/86 e as que nos Acórdãos nºs 362/2002 e 363/2002, referidos pelo apelante, foram declaradas inconstitucionais, com força obrigatória geral, é também incontestável a existência de diferenças susceptíveis de conduzir a solução diversa.
Porque exemplarmente esclarecedor, reproduz-se, com a devida vénia, um excerto do mencionado Acórdão do Tribunal Constitucional:
“O caso dos autos coloca-nos assim perante uma situação de conflito entre um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, o direito dos trabalhadores à retribuição do trabalho, e o princípio geral da segurança jurídica e da confiança no direito.
Muito embora o modo como a norma impugnada solucionou o conflito, fazendo prevalecer o direito à retribuição, não pareça poder ser avaliado, directamente, à luz do disposto no artigo 18º da Constituição, isso não significa que não deva ser analisado do ponto de vista de um critério de proporcionalidade.
Na verdade, as exigências do princípio da proporcionalidade decorrem não só especificamente do artigo 18º, nº 2, da Constituição mas também, justamente, do princípio geral do Estado de direito, consignado no artigo 2º (cf., neste sentido, o Acórdão nº 491/2002, publicado no Diário da República, 2ª série, de 22 de Janeiro de 2003).
Assim, e em primeiro lugar, há que observar que parece manifesto que a limitação à confiança resultante do registo é um meio adequado e necessário à salvaguarda do direito dos trabalhadores à retribuição; na verdade, será, eventualmente, o único e derradeiro meio, numa situação de falência da entidade empregadora, de assegurar a efectivação de um direito fundamental dos trabalhadores que visa a respectiva «sobrevivência condigna».
Muito embora a falência da entidade empregadora seja também a falência da entidade devedora, é precisamente este último aspecto, ou seja, a retribuição como forma de assegurar a sobrevivência condigna dos trabalhadores, que permitiria justificar em face da Constituição a solução da norma impugnada, na interpretação aludida.
Mas esta consideração carece de ser confrontada com outros aspectos, em particular, com o âmbito da tutela constitucional da retribuição [artigo 59º, nº 1, alínea a), da Constituição], para saber se incide apenas sobre o direito ao salário ou abrange também, de modo mais geral, os créditos indemnizatórios emergentes do despedimento.
Ora, a verdade é que não se descortinam quaisquer razões que justifiquem uma interpretação do direito constitucional à retribuição dos trabalhadores no sentido de vedar ao legislador ordinário a equiparação, para o efeito agora em análise, da tutela conferida a ambos os créditos.
No fundo, é manifesto que o crédito à indemnização desempenha uma evidente função de substituição do direito ao salário perdido.
Acresce ainda que a inclusão, repita-se, para o efeito agora em causa, do direito ao salário e do direito à indemnização por despedimento no âmbito da tutela constitucional do direito à retribuição é a que mais se ajusta à referência constitucional a uma «existência condigna», exprimindo o que João Leal Amado (ob. cit., p. 22) designa por carácter alimentar e não meramente patrimonial do crédito salarial, neste sentido (ou seja, no confronto com os créditos dos titulares de direitos reais de garantia levados ao registo).
Nesta conformidade, deve entender-se que a restrição do princípio da confiança operada pela norma impugnada não encontra obstáculo constitucional.”
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4. DECISÃO
Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente em parte e, consequentemente, em, mantendo-a em tudo o mais, revogar parcialmente a decisão recorrida, em termos de o crédito do N... (20), garantido com penhor sobre a grua florestal de marca “Ferrari CF 50 T” e sobre a descascadeira de marca “Ferritima, modelo F 630 E”, apreendidos para a massa falida, prevalecer sobre os créditos emergentes de contrato de trabalho e da sua violação ou cessação – (4) a (8) e (10) a (16) – no pagamento com o produto da venda de tais bens.
As custas são a cargo de apelante e apelados, na proporção de 2/3 para o primeiro e 1/3 para os segundos.
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Coimbra,