Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3142/04.0TBVIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SERRA BAPTISTA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
Data do Acordão: 03/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – 1º J. CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 5º REGULAMENTO 44/2001 DO CONSELHO, DE 22/12/2000
Sumário: Tratando-se de matéria contratual, - estando em causa um contrato de compra e venda de bens, servindo de fundamento à acção a obrigação correspondente ao direito contratual em que se baseia o pedido do demandante – a acção deve ser instaurada no Estado-membro onde os bens foram ou deviam ser entregues.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


A..., SA veio intentar acção com processo ordinário contra B... pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de 31.610,08 euros, acrescida de juros sobre o montante de 24.308,08 euros.
Alegando, para tanto, e em suma:
No exercício da sua actividade de extracção, transformação e comercialização de granitos vendeu á ré certa quantidade de granitos, conforme melhor consta nas facturas juntas, no montante total de 24.308,08 euros, a pagar a pronto;
Entregues as mercadorias ao réu, não pagou o mesmo à autora o preço ajustado;
Que venceu juros, os quais, em 6/12/2004, importavam em 7.302 euros.
Citada o réu, veio o mesma contestar, alegando, também em síntese:
A. e Réu têm domicílio, respectivamente, em Portugal e Alemanha;
As mercadorias em causa eram enviadas para a Alemanha;
Sendo aí cumprida a obrigação em questão, são os tribunais alemães, nos termos do disposto no nº 1, al. a) do art. 5º do Reg. (CE) 44/2001, os competentes;
Sendo, de igual modo, na Alemanha o local do cumprimento do pagamento do preço, que seria pago 60 dias após a data da entrega das mercadorias, são também os tribunais daquele país os competentes para apreciação e julgamento do litígio.
Deve, assim, ser declarada a incompetência internacional do tribunal português.
Replicou a A., pugnando pela competência internacional dos tribunais portugueses.
Tanto mais, diz, que, contrariamente ao pelo Réu alegado, as mercadorias foram-lhe entregues em Viseu (Tondela), tendo a venda das mesmas sido realizadas FCA (Free carrier - Incoterms 2000);
Sendo certo que o pagamento do respectivo preço não se deveria realizar na Alemanha, mas sim através de depósito efectuado na conta bancária da A. junto da CGD, em Portugal.
Foi proferido despacho saneador, no qual, alem do mais, se decidiu pela competência internacional do tribunal português para conhecer da presente acção.
Inconformado, veio o Réu interpor o presente recurso de agravo, formulando, na sua alegação, as seguintes conclusões:
1ª - A fim de minorar o número de situações em que, rela-
tivamente a um contrato de compra e venda intracomunitário, ocorre uma pulverização da competência entre os tribunais dos vários Estados-Membros (aqueles onde deva ter lugar o cumpri-
mento de cada uma das obrigações que integram tal contrato), a al. b) do nº 1 do art. 5º do regulamento44/2001 estabelece a presunção de que o local do cumprimento das demais obrigações contratuais coincide com aquele em que deva ocorrer a entrega do bem (nesta medida, inovando relativamente ao art. 5º da Convenção de Bruxelas);
2ª - Esta presunção é ilidível por convenção em contrário (parágrafo inicial da al. b) do nº 1 do art. 5º);
3ª - Tendo sido acordado que o local do pagamento seja noutro Estado que não aquele em que tem lugar a entrega dos bens, o tribunal internacionalmente competente será, em exclusivo, o do país onde tal pagamento deveria ocorrer (als c) e a) do nº 1 do art. 5º do Regulamento 44/2001);
4ª - Está provado que as mercadorias em causa nos presentes autos tinham como país de destino a Alemanha; que ficou expressamente convencionado "mercadoria a ser paga no destino"; que, para o efeito, o Réu havia aberto uma carta de crédito a favor da A. num banco alemão;
5ª - Há, assim, que concluir que os tribunais alemães detêm, em exclusivo, a competência, internacional para conhecer das acções fundadas no incumprimento desta obrigação de pagamento;
6ª - Pelo que deve ser revogado o despacho recorrido e, consequentemente, o Réu ser absolvido da instância, por os tribunais portugueses serem internacionalmente incompetentes para conhecer da presente lide.
Veio a A. contra-alegar, pugnando pela manutenção do decidido.
Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.

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É sabido que a delimitação objectiva do recurso é feita pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso - arts 664º, 684º, nº 3 e 690º, nºs 1 e 3 do CPC , bem como, entre muitos outros, Acs do STJ de 27/9/94, de 13/3/91, de 25/6/80 e da RP de 25/11/93, CJ S Ano II, T. 3, p. 77, Act. Jur. Ano III, nº 17, p. 3, Bol. 359, p. 522 e CJ Ano XVIII, T. 5, p. 232, respectivamente.

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Tendo em conta o alegado na petição inicial e nos documen-
tos que a suportam, considerando que a excepção dilatória em causa (arts 494º, al. a) e 101º do CPC) se deve aferir, essen-
cialmente, à luz do pedido e da causa de pedir formulados pelo autor em tal articulado (Ac. do STJ de 12/10/2006, processo 06B3288, www.dgsi.pt) e que a mesma se fixa no momento em que a acção se propõe, sendo aferida por determinados elementos (como o objecto ou as partes da acção) tal como eles se apresentam no momento da propositura da acção (art. 22º, nº 1 da LOFTJ e Teixeira de Sousa, A Nova Competência dos Tribunais Civis, p. 22 e 23), pode, desde já, dar-se como assente o seguinte:

A A. é uma empresa portuguesa, com sede em Portugal, que, no exercício da sua actividade comercial de extracção, trans-
formação e comercialização de granitos, vendeu ao Réu determi-
nada quantidade desta matéria, tal como consta das facturas que junta;

O Réu tem domicílio na Alemanha, local indicado nas respectivas facturas de venda (fls 53 e 54 (tradução);

As vendas foram efectuadas a pronto pagamento, a ser efec-
tuado no destino - facturas de fls 53 e 54 (tradução);

Nas aludidas facturas consta como meio de transporte "V/carro";

Mais constando em tais documentos:
"CMR/guia de transporte internacional nº 67525A.
FCA Tondela Viseu/Portugal de acordo com Inconterms 2000".

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Um dos pressupostos mais importantes, relativos ao tribu-
nal, é o da competência.
Pois, para que se possa decidir sobre o mérito ou fundo da causa, é necessário que o tribunal, perante o qual a acção foi proposta, seja competente.
Sendo certo que a primeira repartição do poder de julgar entre os diversos tribunais que importa considerar é a que distingue entre competência internacional e competência interna.
Designando a primeira a fracção do poder jurisdicional atribuída aos tribunais portugueses no seu conjunto, em face dos tribunais estrangeiros, para julgar as acções que tenham algum elemento de conexão com ordens jurídicas estrangeiras.
De facto, as facilidades das deslocações de pessoas, bens e capitais potenciam o surgimento de litígios que apresentam, quer através das partes interessadas, quer através do seu objecto, conexões com várias ordens jurídicas.
Sendo ainda certo que as regras de competência internacio-
nal não são, em si mesmas, normas de competência, não se destinando a aferir qual o tribunal concretamente competente para dirimir o litígio, mas sim a definir os limites de jurisdição do Estado Português - sobre o exposto, M. Andrade, "Noções Elementares de Processo Civil", p. 92, A. Varela, "Manual de processo Civil", p. 185 e ss e Teixeira de Sousa, "Estudos sobre o Novo Processo Civil", p. 93.
Tais normas, que este ultimo autor, apelida de normas de recepção, preenchem, no âmbito processual, uma função paralela àquela que as normas de conflitos realizam no âmbito do direito substantivo: aquelas, aferem se uma relação jurídica pluriloca-
lizada pode ser apreciada pelos tribunais de uma certa ordem jurídica; estas, determinam qual a lei aplicável a essa mesma relação jurídica - se a lei do foro, se uma lei estrangeira - ob. cit. p. 109.

Decidiu o senhor Juiz a quo - cfr., a este propósito, o despacho recorrido - com o acordo das partes a esse respeito, que é aqui aplicável para aferir da competência internacional o Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, substituindo entre os Estados-Membros da União Europeia, com excepção da Dinamarca, a Convenção de Bruxelas de 1968.
Não obstante o conhecimento oficioso, por banda do Tribu-
nal, do direito aplicável, fora excepções que aqui não impor-
tam, não sofrendo, neste contexto a actividade do Juiz de qual-
quer limitação (jura novit curia) - art. 664º do CPC -, razões não há para sindicar tal entendimento, pelo que, sem necessida-
de de mais explanações ou incursões neste plano jurídico, fixe-
mo-nos neste regime legal, que será, também quanto a nós, por preenchidos se encontrarem os seus pressupostos espacio-tempo-
rais e materiais, o aplicável.

Sendo hoje incontestado no nosso ordenamento jurídico que as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na nossa ordem interna após publicação no jornal oficial, assim vinculando internacional-
mente o Estado Português - arts 3º, nº 2 do referido Regulamen-
to e 8º, nº 3 da CRP.
Prevalecendo tais normas - in casu, as do citado Regula-
mento - sobre as também reguladoras da competência internacio-
nal, previstas nos arts 65º, 65º-A, 199º e 1094º a 1102º do CPC.

Ora, por força do disposto no art. 2º, nº 1 do dito Regu-
lamento é estabelecida a regra do domicílio como factor de conexão essencialmente relevante para determinação da competên-
cia internacional do Tribunal, devendo ser demandadas as pesso-
as domiciliadas no território de um Estado-Membro, independen-
temente da sua nacionalidade.
Sendo certo que, nos termos do mesmo regulamento, as sociedades têm domicílio no lugar em que tiverem a sua sede social, a sua administração central ou o seu estabelecimento principal (art. 60º).

Contudo, aquela regra - a do domicílio - não é absoluta, sendo possível, face ao preceituado no art. 5º, ainda do citado Regulamento, a uma pessoa com domicílio num Estado-Membro ser demandada noutro Estado-Membro:
"1. a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;

b) Para efeitos da presente disposição e salvo conven-
ção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em ques-
tão será:

- no caso de venda de bens, o lugar num Estado-Mem-
bro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues,

- no caso de prestação de serviços (...);

c) Se não se aplicar a alínea b), será aplicada a alí-
nea a);"

Assim, não se vislumbrando dos autos convenção em contrá-
rio, tratando-se, sem dúvida, de matéria contratual - estando em causa um contrato de compra e venda de bens, servindo de fundamento á acção a obrigação correspondente ao direito con-
tratual em que se baseia o pedido da demandante (Ac. de 6/10/76, Pº 14/76 do TCE, embora a propósito do art. 5º da substituída Convenção de Bruxelas, mas ainda aqui pertinente) - pode a acção ser instaurada no Estado-Membro onde os bens foram ou deviam ser entregues.
Sendo o critério especial da al. b) atrás transcrito o que se deve utilizar no caso vertente, tratando-se de compra e venda de bens, sendo o comprador e vendedora domiciliados na Alemanha e em Portugal, respectivamente.
Sendo o critério da alínea a) meramente subsidiário em relação a este outro, tendo o regulamento estabelecido um conceito de cumprimento apenas para efeitos de determinação do tribunal internacionalmente competente. E, se este não for operativo, dever-se-á, então, ter em conta o lugar do cumpri-
mento de acordo com as regras de direito internacional privado.
Tendo-se ali estabelecido um conceito autónomo de "lugar de cumprimento" para atenuar "os inconvenientes de recurso às regras de direito internacional privado do Estado do foro". "É uma solução prática que assenta num critério meramente factual" - Ac. do STJ de 11/5/2006, processo 06B756, www.dgsi.pt., citando o Conselheiro Neves Ribeiro.
Sendo tal normativo - o da alínea b) - inspirado pela ideia divulgada pela doutrina nacional e estrangeira de que a prestação característica do contrato de compra e venda é a do vendedor, por assumir natureza não monetária - tal entendimento é também sufragado por Moura Ramos, RLJ Ano 130º, p. 187 - Ac. do STJ de 12/10/2006, antes citado.

Mas, será que se pode depreender dos autos qual o lugar onde os bens foram ou deviam ter sido entregues?
Para, nesse caso, com base no aludido critério estipulado na citada alínea b) - e sem necessidade de mais indagações - aferirmos a competência internacional do tribunal?

Vejamos:
Sabido embora que o comprador está domiciliado na Alema-
nha, o certo é que terá sido acordado entre as partes - e nem o Réu põe em causa a veracidade do a tal respeito afirmado nas próprias facturas - que o transporte das mercadorias para o país de destino seria efectuado ao abrigo da Convenção Relativa ao Transporte de Mercadorias por Estrada (CMR), celebrada em Genebra em 19/5/56 e ratificada em Portugal através do DL 46235, de 18/3/65.
Tendo a venda da mercadoria ao Réu sido realizada com o termo FCA Tondela/Viseu/Portugal de acordo com Incoterms 2000.

Os Incoterms surgiram em 1936 quando a Câmara Internacio-
nal do Comércio (CCI), com sede em Paris, interpretou e conso-
lidou as diversas formas contratuais que vinham sendo utiliza-
das no comércio internacional.
Tendo os mesmos passado por diversas modificações ao longo dos anos, culminando com um novo conjunto de regras, actualmen-
te conhecido como Incoterms 2000.
Definindo o aludido termo de vendas internacional as responsabilidades dos vendedores e compradores o mais claro e preciso possível.
Encontrando-se no grupo - a fim de facilitar o seu enten-
dimento, os Incoterms foram agrupados em 4 categorias - F de Free (Transporte Principal não Pago pelo Exportador - mercado-
ria entregue a um transportador internacional indicado pelo comprador, a cláusula FCA - Free Carrier - livre no transporta-
dor - entregue ao transportador - http://pt.wikipedia.org.

Especificando os Incoterms, alem do mais, o lugar da entrega da carga e quem se responsabiliza, em caso de perda, dano ou demora desta.

Encontrando-se o termo FCA Free Carrier Livre no Transpor-
tador na categoria 2 - entrega na origem com transporte contra-
tado pelo comprador - http://www.aladi.org/.

Cumprindo o vendedor a sua obrigação, no âmbito deste ter-
mo de vendas ora em apreço, quando entrega a mercadoria, pronta para exportação, aos cuidados do transportador, no local desi-
gnado. Cabendo ao comprador contratar frete e seguro interna-
cionais - www.alphabrasil.adv.br.

Sendo o transporte por conta do comprador a partir do local acordado - Ac. do STJ de 16/3/98, processo 98A867, www.dgsi.pt.

Ora, da matéria tida por assente, pode concluir-se que a mercadoria cujo pagamento estará em falta, foi entregue ao comprador em Tondela (Portugal), partindo daí para a Alemanha, seu destino, por meio de transporte contratado pelo Réu compra-
dor.
Tendo, assim, os bens sido entregues em Portugal.
Sendo, pois, o tribunal português internacionalmente com-
petente para conhecer da acção.

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Face a todo o exposto, acorda-se nesta Relação em se negar provimento ao agravo.
Custas pelo agravante.