Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
214/06.0TBFND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: CARGA DO VEÍCULO
DIREITO DE REGRESSO
SEGURADORA
Data do Acordão: 09/22/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DO FUNDÃO – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 19º, AL. D), DO D. L. Nº 522/85, DE 31/12
Sumário: I – É o condutor/comissário o responsável pela verificação da conformidade do acondicionamento da carga transportada com as respectivas regras legais, independentemente de ordens específicas do comitente nesse sentido – artº 135º, nº 3, al. a), do Código da Estrada, que responsabiliza os condutores dos veículos relativamente às infracções que respeitem ao exercício da condução.

II – No âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, uma vez satisfeita a indemnização a seguradora apenas tem direito de regresso nas situações previstas no artº 19º do D. L.nº 522/85, de 31/12 (o qual foi revogado e substituído pelo D. L. nº 291/2007, de 21/08, mas apenas vigente a partir de 20/10/2007).

III – O direito de regresso conferido às seguradoras pela al. d) do citado preceito – contra o responsável civil por danos causados a terceiros em virtude de queda de carga decorrente de deficiência de acondicionamento – não tem por objecto todos e quaisquer danos causados a terceiros, mas apenas os causados em virtude de queda de carga e desde que esta seja decorrente de deficiência de acondicionamento.

IV – A deficiência de acondicionamento apenas consistente no excesso de altura legalmente prevista e que não deu causa a qualquer queda de carga, não configura o apontado direito de regresso.

Decisão Texto Integral:          Acordam na 3ª secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

         A... , intentou acção declarativa, com processo comum e forma sumária, contra B... e C..., pedindo a procedência da acção e “por via dela ser o R. condenado a pagar à A. a quantia de 9.045,78 €, acrescida de juros de mora vincendos desde a data da citação até integral e efectivo pagamento”.

         Para tanto a A. alegou, em síntese, que no dia 29 de Junho de 2004, pelas 17,00 horas, em Soalheira, Fundão, ocorreu um acidente que consistiu em o veículo automóvel de matrícula 45-72-FD e o respectivo semi-reboque, de matrícula C-52683, propriedade da R. B... e conduzido pelo R. C..., motorista daquela, ter derrubado, por excesso de altura da carga, um pórtico e um painel colocados no túnel da Gardunha I, provocando danos que a A., na qualidade de seguradora do veículo e do semi-reboque, suportou; e que, atento o disposto na al. d) do artº 19º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31/12, tem direito de regresso que, com a presente acção, vem exercer.

         A R. B... contestou negando que a carga excedesse a altura máxima legalmente permitida e acrescentando que, a não ser assim, o único responsável é o R. C....

         Este, por sua vez, defendeu na sua contestação, por um lado, que a carga não excedia a altura máxima legal e, por outro, que não foi ele, mas a empresa “D...”, com conhecimento da B..., quem acondicionou a carga e, portanto, quem tem a responsabilidade no caso de vir a provar-se que esta ultrapassava a altura permitida.

         A A. respondeu contrariando a factualidade alegada nas contestações e requerendo a intervenção principal provocada da “D...”.

         Deferido o chamamento, foi pela interveniente apresentada contestação em que negou ter procedido ao acondicionamento da carga, acto que imputou à B....

         Foi proferido despacho saneador e dispensada, nos termos do artº 787º do Código de Processo Civil, a condensação.

Instruída a acção, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, em cujo âmbito foi realizada uma peritagem, tendo ainda, oportunamente, sido proferido o despacho de fls. 482 a 486, indicando a matéria de facto provada.

Foi depois emitida a sentença de fls. 488 a 513 julgando a acção procedente e condenando solidariamente os RR. B... e C... a pagarem à A. a quantia de 9.045,78 €, acrescida de juros de mora vincendos desde a data da citação até integral e efectivo pagamento.

Inconformados, recorreram ambos os RR., sendo que o recurso da R. B... foi, pelo despacho de fls. 565, julgado deserto por falta de alegação.

O recorrente C... encerrou a alegação que apresentou com seguintes conclusões:


[…]

A apelada respondeu, pugnando pela manutenção do julgado.

Colhidos os pertinentes vistos, cumpre apreciar e decidir.


***

         Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foram colocadas as questões seguintes:
         a) Alteração da decisão sobre a matéria de facto;

b) Nulidade da sentença por excesso de pronúncia [artº 668º, nº 1, al. d) do C.P.C.];

         c) Direito de regresso contra o recorrente.


***

         2. FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. De facto

2.1.1. Factualidade considerada provada na 1ª instância


[…]

***


         2.1.2.          Alteração da decisão de facto


[…]

***


         2.2. De direito

         2.2.1. Nulidade da sentença

         O recorrente defende que a sentença é nula, por excesso de pronúncia [artº 668º, nº 1, al. d) do Cód. Proc. Civil].

         Baseia tal entendimento na circunstância de a A., nos artºs 53º a 56º da petição inicial imputar a responsabilidade civil pelas consequências do acidente à R. “B...”, só estendendo tal responsabilidade ao R. C... “caso venha a provar-se que ao acondicionar as máquinas supra descritas no veículo FD, desrespeitou ordens específicas da 1ª R.” (artº 57º da p. i.). Tratar-se-ia, segundo o recorrente, de um pedido subsidiário, a ser atendido unicamente caso viesse a provar-se que, ao acondicionar as máquinas, o 2º R. desrespeitou ordens específicas da 1ª R. E, não se tendo provado tal desrespeito, não podia o recorrente ter sido condenado solidariamente com a “B...”, traduzindo-se a condenação num excesso de pronúncia gerador da nulidade da sentença.

         Diz-se subsidiário o pedido que é apresentado ao tribunal para ser tomado em consideração somente no caso de não proceder um pedido anterior (artº 469º, nº 1, 2ª parte, do Cód. Proc. Civil).

         É claro, a nosso ver, que o pedido de condenação do R. C... não foi formulado apenas para o caso de não proceder o pedido de condenação da R. “B...” e, portanto, que tal pedido não é subsidiário.

         E o tribunal ao apreciá-lo mais não fez do que cumprir o preceituado no artº 660º, nº 2 do Cód. Proc. Civil, segundo o qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação (exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras). E só essas (salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras).

         Se a apreciação feita e a decisão tomada são ou não as mais conformes com o direito é problema diferente, de natureza substancial, que escapa ao domínio das nulidades da sentença e que será abordado de seguida.

         Não se reconhece, pois, razão ao recorrente quanto a esta questão.


***

         2.2.2. Direito de regresso contra o recorrente

          Perante a factualidade provada e o disposto nos artºs 483º, 487º, 493º, 494º, 497º, 500º, 503º e 507º do Cód. Civil e 3º, nº 2, 56º, nºs 2 e 3, al. f), 57º, nº 1, 58º e 135º, nº 3, al. a) do Cód. da Estrada e Portaria nº 387/99, de 26/05, apresenta-se-nos como claro que se verificam todos os requisitos da responsabilidade civil solidária do R. C..., como motorista do veículo automóvel causador dos danos e da R. B..., como comitente.

         O recorrente esgrime com o facto de a recorrida, nos artºs 53º a 56º da petição inicial imputar a responsabilidade civil pelas consequências do acidente à R. “B...”, só lhe estendendo tal responsabilidade “caso venha a provar-se que ao acondicionar as máquinas supra descritas no veículo FD, desrespeitou ordens específicas da 1ª R.” (artº 57º da p. i.).

         Mas não tem razão.

         Com efeito, parece-nos claro que, em primeira linha e independentemente de ordens específicas do comitente nesse sentido, é o condutor/comissário o responsável pela verificação da conformidade do acondicionamento da carga transportada com as respectivas regras legais. Tal resulta, por um lado, da circunstância de, frequentemente, o comitente não estar presente para fazer a verificação e, por outro, por ser o condutor quem deve estar legalmente habilitado para conduzir e, consequentemente, conhecer as regras de trânsito, nomeadamente no que concerne às dimensões dos veículos e às condições de circulação dos mesmos. Ao que acresce que o artº 135º, nº 3, al. a) do Cód. da Estrada responsabiliza os condutores dos veículos relativamente às infracções que respeitem ao exercício da condução.

         A alegação feita pela A. no artº 57º da petição inicial, não vincula o tribunal, como decorre do artº 664º do Cód. Proc. Civil, segundo o qual o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.

         A responsabilidade solidária dos RR., designadamente da “B...”, importa que a A., enquanto seguradora e por força do contrato de seguro, estivesse obrigada a indemnizar a lesada, obrigação que, aliás, cumpriu.

         Contudo, a questão que se coloca – e que o recorrente, ainda que de forma não muito clara, colocou – é a de saber se, “in casu”, à A. assiste direito de regresso.

         É que, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel em que nos situamos, satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso nas situações previstas no artº 19º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31/12[1].

         A A. baseou a sua pretensão na al. d) do mencionado preceito legal, norma que confere à seguradora que satisfaça a indemnização direito de regresso “contra o responsável civil por danos causados a terceiros em virtude de queda de carga decorrente de deficiência de acondicionamento”.

         Estará verificada a previsão de tal norma?

         Com todo o respeito por opinião diferente, parece-nos que não.

         O direito de regresso concedido à seguradora pela norma legal em apreciação não tem por objecto todos e quaisquer danos causados a terceiros. Tem por objecto apenas danos causados a terceiros em virtude de queda de carga. E não de qualquer queda de carga. Só de queda de carga decorrente de deficiência de acondicionamento[2].

         Como foi decidido no Acórdão da Relação do Porto de 01/02/2005[3], à seguradora que pretende exercer o direito de regresso das quantias pagas a terceiro em virtude de acidente de viação ocorrido com o segurado, imputando-lhe o deficiente acondicionamento da carga, compete alegar e provar que a queda desta se ficou a dever ao seu mau acondicionamento.

         No caso dos autos não ocorreu qualquer queda de carga. A retroescavadora (e restantes máquinas transportadas) manteve-se sobre o veículo segurado, cujo condutor prosseguiu viagem mesmo antes da chegada da autoridade policial. E os danos decorrentes do sinistro incidiram apenas sobre o pórtico e painéis derrubados pelo joelho da lança da retroescavadora e sobre o lancil e pavimento onde caíram, não tendo dado origem a qualquer embate de outros veículos que circulassem no Túnel da Gardunha.

         Falta, portanto um dos elementos essenciais do invocado direito de regresso, qual seja, terem os danos sido causados em virtude de queda de carga.

A deficiência de acondicionamento, apenas consistente no excesso de altura legalmente permitida, não deu causa a qualquer queda de carga, sendo, para efeitos do pretendido direito de regresso, irrelevante.

Embora a R. “B...” não tenha recorrido, aproveita-lhe, nos termos do artº 683º, nº 2, al. c) do Cód. Proc. Civil, o recurso interposto pelo R. C....

Ainda que por razões não totalmente coincidentes com as invocadas pelo recorrente, há que julgar procedente o recurso interposto, com a consequente revogação da sentença recorrida.


***

         3. DECISÃO

         Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e em revogar a sentença recorrida, com a consequente absolvição dos RR. do pedido.

         As custas, em ambas as instâncias, são a cargo da A./recorrida.


***

                                               Coimbra,


[1] O Decreto-Lei nº 522/85, de 31/12 foi revogado e substituído pelo Decreto-Lei nº 291/2007, de 21/08. Contudo, face à data do acidente (29/06/2004), é ainda aplicável ao caso em apreciação.
[2] Cfr. Acórdão desta Relação de 19/12/2006 (Proc. 596/03.5TBAND.C1, relatado pelo Ex.mo Desembargador Jorge Arcanjo, em cujo sumário se pode ler que a ratio legis do artº 19º, al. d) do Decreto-Lei nº 522/85, de 31/12, assenta no facto de o risco contratualmente assumido pela seguradora não se compaginar com os comportamentos do segurado tipificados na norma do artigo 19º.
[3] Processo 0520153, relatado pelo Ex.mo Desembargador Cândido de Lemos.