Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
504/10.7TBGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
CASO JULGADO MATERIAL
QUANTO À DOMINIALIDADE
ACÇÃO DE DEMARCAÇÃO
Data do Acordão: 07/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 1311º, Nº 1 DO CC
Sumário: I – A afirmação judicial positiva, no quadro de uma acção de reivindicação, de que determinada parcela de terreno, espacialmente delimitada (integrante de um logradouro de um prédio), pertence a determinada pessoa e não a outra (ambas partes nessa acção e proprietárias confinantes), forma, após trânsito da sentença contendo esta afirmação, caso julgado material quanto à dominialidade desse espaço.

II – Esta incidência impede – no sentido de comportar o preenchimento da excepção de caso julgado – uma posterior acção, travada entre as mesmas partes, visando a demarcação desse mesmo espaço de confinância entre os dois prédios, quando a segunda acção comporte a possibilidade de alteração da dominialidade afirmada na primeira acção, designadamente através da aplicação da “solução salomónica” prevista no trecho final do nº 2 do artigo 1354º do CC.

III – O resultado desta demarcação sempre estaria excluído, por prejudicialidade, pela afirmação na anterior acção da pertença de todo o espaço que agora se pretende demarcar a um dos proprietários confinantes e não ao outro.

IV – Constitui pressuposto da adjectivação do direito de demarcação plasmado nos artigos 1353º e 1354º do CC a existência de estremas incertas e duvidosas entre os dois prédios confinantes envolvidos, situação que é excluída pela afirmação de quais as estremas entre esses dois prédios numa acção anterior definitivamente decidida.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. Em 15/04/2010[1], J… e mulher, A… (AA. e neste recurso Apelantes) demandaram M… e mulher, N… (RR. e aqui Apelados), invocando a propriedade, por eles (AA.) e pelos RR., respectivamente, de dois prédios confinantes (o dos AA. designado como “lote 2” e o dos RR. designado como “lote 1”), ambos resultantes, na sua individualidade e natureza, de uma operação de loteamento ocorrida em 1983[2], realizada por José … (pai do A. marido e da R. mulher), sendo que este, por escrituras paralelas de 26/04/1983, doou a cada um dos seus filhos partes nesta acção um dos referidos lotes – esta é, pois, a origem dos dois direitos de propriedade aqui invocados.

            Imputando os AA. aos RR. a ocupação de uma área excedente do lote que efectivamente lhes corresponde, em detrimento de determinado espaço pertencente ao lote deles (AA.) e afirmando pretenderem exercer, através da presente acção, o que apelidam de direito de demarcação plasmado nos artigos 1353º e 1354º do Código Civil (CC)[3], formulam os AA. os seguintes pedidos cumulativos:
“[…]
[D]eve a presente acção de condenação ser julgada procedente por provada, e, em consequência:
1. Serem os RR. condenados a:
1.1. Concorrer com os AA. na demarcação das extremas na parte confinante entre os seus prédios, procedendo-se, com a intervenção do Perito nomeado pelo Tribunal, à definição da linha divisória dos terrenos, colocação de marcos ou divisória fixa, tudo em respeito do disposto no artigo 1353º do Código Civil.
1.2. Deslocar a vedação metálica por si levantada e repô-la nos limites do seu prédio.
1.3. Desocupar e a entregar a parcela de terreno, pertença dos AA. e que actualmente ocupam.
[…]”

[transcrição de fls. 7/8; o sublinhado foi aqui acrescentado e destaca os elementos do pedido que temos por determinantes para a decisão deste recurso]


            1.1. Confrontados com esta pretensão, apresentaram os RR. a contestação de fls. 70/77, excepcionando, desde logo, como obstáculo a essa pretensão dos AA. – e restringimos o presente relato ao que apresentará relevância neste recurso –, a projecção nesta causa da eficácia do caso julgado material formado no anterior processo referido na petição inicial (a acção sumária nº 450/2001, do 3º Juízo do Tribunal Judicial da Guarda[4]), através do trânsito em julgado da decisão aí proferida.

            1.2. Findos os articulados, proferiu a Exma. Juíza titular do processo o Saneador-Sentença de fls. 115/132 – este consubstancia a decisão objecto do presente recurso de apelação –, julgando verificada a referida excepção de caso julgado, absolvendo os RR. da instância e condenando os AA. como litigantes de má fé na multa de 5 UC e, subsequentemente, em complemento da primeira decisão[5], após o cumprimento do nº 2 do artigo 457º do Código de Processo Civil (CPC), na indemnização em favor dos RR. de €3.859,00 (v. fls. 167/169).

            1.3. Inconformados interpuseram os AA. o presente recurso, motivando-o a fls. 134/150, aí formulando as conclusões que aqui se transcrevem:
“[…]

            1.3.1. A este recurso responderam os RR./Apelados a fls. 161/166, pugnando pela confirmação da decisão apelada.


II – Fundamentação

            2. Apreciando o recurso, relatado que está o desenvolvimento do processo que a ele conduziu, sublinha-se, preambularmente, que a delimitação temática desta impugnação decorre do teor das conclusões antes transcritas, como resulta dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 ambos do CPC.

            Assim, apreciando essas conclusões, verificamos que constitui fundamento preponderante do recurso – e corresponde à ratio decidendi do Saneador-Sentença impugnado, quanto à absolvição dos RR. da instância – (a) a verificação da excepção de caso julgado, assente na relacionação entre este processo, que é apresentado pelos AA. como uma “acção de demarcação”[6], e uma causa anterior objecto de decisão transitada em julgado e que correspondeu, fundamentalmente, a uma acção de reivindicação (artigo 1311º, nº 1 do CC), dirigida esta à afirmação do direito de propriedade dos aqui RR. (AA. nessa anterior acção de reivindicação) sobre um determinado espaço territorial, definido este como parte integrante do respectivo prédio. Foi sobre a dominialidade deste espaço – atribuindo-o aos aqui RR. – que incidiu o pronunciamento decisório dessa primeira acção, referindo-se a esse resultado – isto é: à atribuição dessa dominialidade sobre esse espaço aos aqui RR., com exclusão dos aqui AA. –, referindo-se a este resultado, dizíamos, a cobertura própria do caso julgado material afirmado como excepção neste processo.

            Existe, todavia, um outro fundamento do recurso (um segundo fundamento), passível de autonomização mas logicamente dependente do primeiro (ou seja, da verificação da excepção de caso julgado), (b) respeitante à qualificação do comportamento dos AA., que se expressou na propositura da presente acção contra a autoridade de um caso julgado, como litigância de má fé.

            Ainda no quadro preambular da delimitação temática do recurso, excluindo desde já, por se tratar de argumento notoriamente insustentável, a afirmação da decisão recorrida como nula, por suposta integração dos desvalores assinalados nas alíneas b) e d) do nº 1 do artigo 668º do CPC, diremos que as nulidades da sentença se reconduzem a erros de actividade ou de construção e não se confundem com o erro de julgamento (seja este um erro de facto ou de direito), sendo disso que se trata – de um suposto erro de julgamento – com as críticas dirigidas pelos Apelantes à opção do Tribunal a quo pela verificação da excepção do caso julgado.

           

2.1. Para apreciação dos dois fundamentos da apelação – particularmente quanto à verificação da excepção dilatória de caso julgado – interessam-nos os mesmos pressupostos fácticos indicados na decisão apelada, que aqui se transcrevem do texto do Saneador-Sentença:


“[…]

            Sublinha-se, relativamente a este elenco, estar em causa uma descrição correctamente sistematizada das diversas incidências processuais, todas elas com correspondência em elementos documentalmente comprovados nestes autos, sendo através da ponderação dessas incidências que se compreende o sentido desta acção, no seu relacionamento com o anterior processo já definitivamente julgado, e se determina a existência, relativamente a este último, da excepção de caso julgado, enquanto verdadeiro obstáculo existencial à presente acção[7].

            Importa, pois, apreciar os indicados dois fundamentos do recurso, adiantando-se desde já que a decisão apelada é correcta, tanto na questão do caso julgado como na da litigância de má fé, e se encontra devidamente fundamentada, justificando-se amplamente o carácter sucinto das subsequentes considerações, sendo por demais evidente que com esta acção pretenderam os AA. tornear, com um uso notoriamente despropositado do conceito de demarcação, o caso julgado consabidamente existente quanto aos limites dos prédios dos AA. e dos RR., no elemento traduzido na afirmação de que determinada parcela de terreno pertence a estes e não àqueles. Basta, com efeito, para atingirmos tal conclusão, compararmos o pronunciamento decisório e o objecto da anterior acção com o que assumidamente aqui pretendem os AA. alcançar sob a roupagem de uma pretensa demarcação respeitante a extremas incertas de dois prédios[8].  

            2.2. (a) Se as coisas em Direito – e assim entramos directamente na apreciação do primeiro fundamento do recurso – só valessem pelo nome que se lhes dá e não pela realidade que verdadeiramente expressam, se a linguagem em Direito fosse um instrumento de uso arbitrário, poderíamos até dizer estar em causa, como pretendem os Apelantes, uma questão de demarcação, enquanto problema respeitante ao exercício do chamado direito de demarcação, e não a repetição de uma pretensão reivindicatória, já definitivamente julgada em sentido contrário ao aqui pretendido, que, por isso mesmo (por já ter sido julgada), foi aqui disfarçada, no (indisfarçável) propósito de conduzir a uma afirmação de determinado conteúdo espacial e quantitativo de um concreto direito de propriedade, em contradição com um anterior caso julgado. Sucede, todavia, que a linguagem jurídica expressa conceitos (conceitos jurídicos), refere-se àquilo que a mente concebe ou entende, corresponde a uma ideia ou noção, enquanto representação geral e abstracta de uma realidade e, nesse sentido, para que o uso de uma determinada expressão jurídica seja adequado e conduza ao resultado que lhe corresponde, mostra-se necessário que ao nome que se dá à realidade pretendida abarcar se junte o preenchimento do correspondente conceito.

            Interessa-nos aqui, pois, não o qualificativo “demarcação” que os AA. atribuem à respectiva pretensão, mas o conceito de demarcação, referido ao seu elemento estruturante: a existência de uma efectiva incerteza quanto ao exacto local onde devem ser estabelecidos (colocados) os limites de um determinado prédio, na confinância com um outro prédio colindante, correspondendo isto (a incerteza quanto aos limites de um prédio no confronto com outro prédio) ao contrário da afirmação de serem uns (e só esses) os limites desse prédio.

            É neste sentido que podemos caracterizar nestas acções – nas acções referidas ao exercício do direito de demarcação plasmado nos artigos 1353º a 1355º do CC – aquilo que já qualificámos no Acórdão desta Relação de 16/09/2008[9] como correspondendo a “dois momentos” processuais sequenciais de adjectivação do direito do proprietário a demarcar um prédio.

O que chamamos “primeiro momento” – e seguimos aqui de perto as considerações a propósito tecidas nesse anterior aresto –, “[…] cujos elementos de referência estruturam a causa de pedir, corresponde aos factos necessários à individualização da situação jurídica alegada pelo autor e configura-se por referência ao facto complexo (que corresponde à causa de pedir) da existência de prédios confinantes, pertencentes a proprietários distintos, cujas estremas são incertas e duvidosas” (sublinhado acrescentado)[10]. É referindo-se a este elemento expresso na incerteza ou ambiguidade da fixação dos limites, que define o tal “primeiro momento” da acção de demarcação, que o ilustre colega António Carvalho Martins afirma que “[o] direito de demarcação supõe a incerteza ou dúvida sobre a linha divisória entre dois prédios contíguos, por falta de marcos ou outros sinais exteriores que indiquem as estremas de cada prédio”[11].

Quanto ao que consideramos ser o “segundo momento” da acção de demarcação, pressupõe ele a presença, nos termos apontados, dos elementos que referimos à causa de pedir (prédios confinantes, proprietários distintos e incerteza quanto às estremas), actuando já no plano “[…] da efectivação da delimitação dos prédios [operando esse “segundo momento”] em torno da aplicação dos critérios de demarcação indicados nos três números do artigo 1354º do CC […]”[12].

Ambos estes “momentos” convergem no percurso da acção de demarcação (hoje em dia do processo comum visando a demarcação), mas adquirem nesse iter total individualidade, sendo que a passagem do chamado “primeiro momento” ao “segundo momento” assenta na prévia definição dos elementos atinentes à causa de pedir expressos no indicado “primeiro momento”. Tais elementos têm de ser provados, previamente ao início das operações de demarcação propriamente ditas (que expressam o “segundo momento” e se materializam na aplicação sucessiva dos critérios indicados no artigo 1354º do CC), mas, como passo condicionante dessa prova, têm, esses elementos atinentes à causa de pedir, de ser consistentemente alegados pelo pretendente da demarcação, o que abrange a necessidade de um mínimo de verosimilhança na invocação inicial da incerteza ou ambiguidade dos limites dos prédios, enquanto pressuposto do direito de demarcação.

Aliás, justificando a pressuposição deste elemento de incerteza, enquanto ponto de partida, no quadro de referência do direito de demarcação, temos a sucessão de “incertezas” referidas a cada um dos critérios de demarcação, enquanto factor que desencadeia, como critério de decisão para superação dessa incerteza, a passagem à realização da demarcação pelo critério seguinte, dentro da lógica sequencial de funcionamento dos vários números (critérios) do artigo 1354º do CC, até se alcançar, na falta de outra, a “solução salomónica” traduzida na distribuição do terreno em litígio, em partes iguais, pelos proprietários vizinhos (trecho final do nº 2 do artigo 1354º do CC)[13]

Valem estas considerações pela afirmação da total inconsistência da pressuposição de existência de uma situação de incerteza quanto aos limites de dois prédios, quando está em causa – e é o que aqui sucede – uma operação de delimitação incidente sobre um espaço que já foi delimitado, porque já foi definido no seu conteúdo espacial – já foi judicialmente definido com a cobertura do caso julgado material – como pertencente a um só dos proprietários envolvidos nessa (descabida) operação de delimitação.

É que, como já indicámos, a passagem ao chamado “segundo momento” da acção de demarcação comporta a possibilidade de se proceder a uma distribuição “salomónica” do objecto do litígio, repartindo o espaço de incerteza em partes iguais pelos dois proprietários colindantes. Ora, se a efectivação do direito de demarcação sempre comporta este resultado como possível, é absolutamente contraditório, por razões de prejudicialidade e incompatibilidade lógica, que se desencadeie esta possibilidade de “corte ao meio” relativamente a um espaço que já foi anteriormente definido como pertencente (todo ele pertencente) a um dos vizinhos e como não pertencente ao outro. Demarcar seria aqui fazer tudo voltar atrás e, no caso da cobertura do caso julgado material, abrir um processo que comportaria a possibilidade de conduzir à contradição, por um novo pronunciamento judicial, da anterior decisão transitada, preenchendo-se o desvalor pretendido afastar pela excepção do caso julgado: evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (artigo 497º, nº 2 do CPC).

É a este respeito que se fala, a propósito da eficácia preclusiva do caso julgado e da sua extensão – logo da afirmação da presença da excepção dilatória prevista no artigo 494º, alínea i) do CPC –, em “relações de prejudicialidade”, no quadro de uma autonomização dos fundamentos da decisão transitada, como refere J. P. Remédio Marques:


“[…]
Autonomizam-se, desde logo, os fundamentos de facto que criam uma relação de prejudicialidade entre a decisão transitada e o objecto da acção posterior, ou seja, quando o fundamento da decisão transitada condiciona a apreciação do objecto de uma acção posterior, por ser tida como situação localizada dentro do objecto da primeira acção […].
[…]”[14]

            Ou, como refere Miguel Teixeira de Sousa, também caracterizando relações de prejudicialidade no quadro da cobertura do caso julgado material:


“[…]
A relação de prejudicialidade entre objectos processuais verifica-se quando a apreciação de um objecto (que é prejudicial) constitui um pressuposto ou condição do julgamento de um outro objecto (que é o dependente). Também nesta situação tem relevância o caso julgado: a decisão proferida sobre o objecto prejudicial vale como autoridade de caso julgado na acção em que é apreciado o objecto dependente.
[…]”[15]

            Sendo que a relação de dependência vale neste caso – face a uma pretensão de demarcação incidente sobre um espaço todo ele anteriormente atribuído, em sede reivindicatória, a um dos proprietários vizinhos – como preclusão da possibilidade de intentar uma acção de demarcação (a acção posterior à de reivindicação) da qual poderá resultar a exclusão do exacto conteúdo espacial do direito de propriedade definido pelo caso julgado formado na reivindicação. Demarcar sempre corresponderia aqui, mesmo que, por hipótese, se alcançasse o mesmo resultado da reivindicação, a repetir a indagação dos limites da propriedade dos Apelantes e dos Apelados e essa questão, como se viu, já foi decidida anteriormente com a cobertura do caso julgado material.

            Foi, pois, correcta – absolutamente correcta, diga-se – a apreciação positiva da excepção dilatória de caso julgado decorrente do Saneador-Sentença ora apelado.

            Haverá, assim, que o confirmar.

            2.3. (b) E o mesmo sucede com a condenação dos Apelantes/AA. como litigantes de má fé, desta feita por evidente preenchimento da facti species da alínea d) do nº 2 do artigo 456º do CPC (a decisão apelada refere-se às alíneas a) e b) deste nº 2, mas trata-se de um problema de enquadramento jurídico da postura dos AA.), verificando-se aqui, porventura cumulativamente com os desvalores previstos nessas alíneas a) e b) do nº 2 do artigo 456º, um uso manifestamente reprovável deste processo, expresso na tentativa ostensiva de, através dele, violar o caso julgado formado pela anterior Sentença transitada e que aqui é pretendida inviabilizar no seu sentido.

            Recorda-se a este respeito, como pode ser constatado lendo a anterior decisão que formou o caso julgado cuja violação os Apelantes aqui pretenderam obter, que estes (os ora Apelantes) já aí foram confrontados com uma questão de litigância de má fé (cfr. fls. 61/62), esgotando aí, em certo sentido, a margem de tolerância que com a plausibilidade do seu entendimento quanto aos limites de cada prédio era possível sustentar junto de um Tribunal, sendo que agora, actuando os Apelantes ostensivamente contra um caso julgado, procurando, aliás, obter a sua violação, não poderemos deixar de qualificar negativamente o seu comportamento, que só evidencia desrespeito por uma decisão de um Tribunal, e, em função desta incidência, reafirmar aqui, por inteiramente justa, a condenação dos AA. como litigantes de má fé.

            Também nesta específica dimensão haverá que confirmar a decisão recorrida.

            2.4. Valem as antecedentes considerações como confirmação integral do Saneador-Sentença apelado. Resta-nos, pois, deixar aqui sumariados os pontos centrais da antecedente exposição, como impõe o artigo 713º, nº 7 do CPC:


I – A afirmação judicial positiva, no quadro de uma acção de reivindicação, de que determinada parcela de terreno, espacialmente delimitada (integrante de um logradouro de um prédio), pertence a determinada pessoa e não a outra (ambas partes nessa acção e proprietárias confinantes), forma, após trânsito da sentença contendo esta afirmação, caso julgado material quanto à dominialidade desse espaço;
II – Esta incidência impede – no sentido de comportar o preenchimento da excepção de caso julgado – uma posterior acção, travada entre as mesmas partes, visando a demarcação desse mesmo espaço de confinância entre os dois prédios, quando a segunda acção comporte a possibilidade de alteração da dominialidade afirmada na primeira acção, designadamente através da aplicação da “solução salomónica” prevista no trecho final do nº 2 do artigo 1354º do CC;
III – O resultado desta demarcação sempre estaria excluído, por prejudicialidade, pela afirmação na anterior acção da pertença de todo o espaço que agora se pretende demarcar a um dos proprietários confinantes e não ao outro;
IV – Constitui pressuposto da adjectivação do direito de demarcação plasmado nos artigos 1353º e 1354º do CC a existência de estremas incertas e duvidosas entre os dois prédios confinantes envolvidos, situação que é excluída pela afirmação de quais as estremas entre esses dois prédios numa acção anterior definitivamente decidida.  


III – Decisão

            3. Assim, na total improcedência da apelação, decide-se confirmar integralmente a decisão recorrida.

            Custas do recurso a cargo dos Apelantes.


Tribunal da Relação de Coimbra, recurso julgado em audiência na sessão desta 3ª Secção Cível realizada no dia 12-07-2011

(J. A. Teles Pereira)
(Manuel Capelo)
(Jacinto Meca)





[1] Aplica-se aqui o regime de recursos resultante da reforma consubstanciada no Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Pela mesma razão, qualquer disposição do Código de Processo Civil adiante referida neste Acórdão, cujo texto tenha sido alterado pelo DL nº 303/2007, sê-lo-á na versão resultante deste Diploma.
[2] Referida a um prédio rústico sito em Manteigas, da qual resultaram esses dois lotes (lote 1 com 550 m2; lote 2 com 545 m2)
[3] Dizem os AA. em determinado trecho do seu articulado inicial – que aqui se transcreve por propiciar a exacta compreensão da real pretensão destes:
“[…]


Acontece porém que, na realidade, os prédios dos autos não foram implantados respeitando as áreas que os compõem, e de acordo com o loteamento.

Efectivamente,


10º

ocupa actualmente o Lote 1 (parcela B – prédio dos RR.) a área de 600,38 m2 e o Lote 2 (parcela A) a área de 451,70 m2, conforme levantamento topográfico que se junta (Doc. 10).

11º

Pois os RR. ocupam área que não lhes pertencem e os AA., para alargamento da via pública, cederam à Câmara Municipal 93,3 m2, área a desanexar do logradouro do seu prédio.

12º

Por sentença prolatada pelo Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, 3º Juízo, Processo n.º 450/01, Acção Sumária, sentença confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, os aqui AA., na referida acção como RR., foram condenados a reconhecer a propriedade dos aqui RR. sobre o terreno n.º 1 sito no lugar do …, freguesia de Santa Maria, em Manteigas, com a área de 550 m2, tudo em confirmação do Alvará de Loteamento (Doc. 11).

13º

Assim sendo, e atenta a deficiente implantação referida supra, em 10º, os RR. vêm possuindo, de má fé, uma parcela de terreno (parte do logradouro) que é pertença dos AA.

14º

Os AA. “podem obrigar os donos dos prédios confinantes a concorrer para a demarcação das extremas entre o seu prédio e os deles”, de acordo com os títulos de propriedade de cada um (artigo 1353º e 1354º do Código Civil).

15º

Assim, para obviar aos entraves à entrega judicial do terreno pertencente aos AA., e que os RR. ilegitimamente vêm ocupando, pretendem os aqui AA. obter uma planta topográfica, à escala que o Senhor Perito achar conveniente, do terreno identificado como Lote 1, juntando, no entanto, e desde já, planta topográfica em seu poder (Doc. 10).

16º

Confere, portanto, a lei aos AA. o direito de obter decisão judicial que obrigue os RR. a concorrerem para a definição da linha de divisão de ambos os prédios, na parte que entre si confinam, fixando-se tal divisão por determinação das suas extremas.

17º

Pretendem assim os AA. que seja proferida sentença declarativa que determine que o prédio dos RR., prédio já identificado nos autos e com a área de 550 m2, coincida com a planta topográfica já requerida, e de acordo com a mesma sejam implantados os marcos que dividem os prédios dos AA. e RR. e delimitem o direito de propriedade de AA. e RR. sobre os referidos prédios.
[…]”
                [transcrição de fls. 6/7]
[4] A Sentença em causa nessa acção consta de fls. 38/63 e o Acórdão desta Relação que a confirmou de fls. 94/102. 
[5] Foi o seguinte o pronunciamento decisório do Saneador-Sentença ora recorrido:
“[…]

a) Julgar procedente a excepção de caso julgado arguida pelos réus M. e N… e, em consequência, absolvo-os da instância.

b) Condenar os autores J… e A…, a título de litigância de má fé, no pagamento de uma multa processual que se fixa em 5 UC, correspondente a € 510,00 (quinhentos e dez euros);

c) Condenar os autores a pagarem uma indemnização aos réus, em montante a fixar após o cumprimento do disposto no artigo 457º, n.º 2, do Código de Processo Civil;
[…]”
                [transcrição de fls. 168/169]
[6]  Trata-se, como veremos, de um estratagema argumentativo dos AA. destinado a esconder a verdadeira natureza desta acção no seu relacionamento com uma anterior acção, fugindo ao alcance preclusivo do caso julgado aí formado. Tenha-se presente quanto à presente acção, todavia, nos termos em que esta é apresentada (como demarcação), que a abolição da acção de demarcação como processo especial, decorrente da revogação pelo artigo 3º do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro do artigo 1058º do CPC, acabou com a demarcação como processo especial, remetendo a adjectivação do direito correspondente (do direito de demarcação) para o domínio declarativo comum (v. Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 4ª ed., 3ª reimpressão, Lisboa, 2006, p. 220). Trata-se aqui, pois, de uma acção declarativa de condenação cujo pedido é apresentado – para sermos rigorosos até diremos: é pretendido apresentar – como visando o exercício do direito de demarcação plasmado nos artigos 1353º a 1355º do CC.
[7] “O caso julgado traduz-se na insusceptibilidade de substituição ou modificação da decisão por qualquer outro tribunal (incluindo aquele que a proferiu) em consequência da insusceptibilidade da sua impugnação por reclamação ou recurso ordinário. O caso julgado torna indiscutível o resultado da aplicação do direito ao caso concreto que é realizada pelo tribunal, ou seja, o conteúdo da decisão deste órgão” (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., Lisboa, 1997, p. 567).

[8] Que é, chamando-lhe os AA., arbitrariamente, demarcação, condenar os aqui RR. a:

“[…]

1.2. Deslocar a vedação metálica por si [pelos RR.] levantada e repô-la nos limites do seu prédio.

1.3. Desocupar e a entregar a parcela de terreno, pertença dos AA. e que actualmente ocupam.

[…]” (transcrição de parte do pedido).

Claro que, é fácil perceber, que os ditos “limites do seu prédio” e a suposta “parcela de terreno […] que actualmente ocupam” (sic) mais não são do que aquilo que no processo nº 450/2001, do mesmo 3º Juízo do Tribunal Judicial da Guarda, foi afirmado, com a cobertura do caso julgado material, integrar o prédio dos aí AA. aqui RR., sendo que isso mesmo corresponde àquilo que os aqui AA. aí RR. foram condenados a reconhecer.

[9] Proferido pelo ora relator no Proc. nº 139/05.6TBVZL.C1, disponível na base do ITIJ nestes campos, e nos descritores “acção de demarcação” e “processo”,  e, directamente, no seguinte endereço: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/ed7add8b3b42684f802574da0046b4cf.
[10] A citação refere-se ao Acórdão indicado na nota antecedente. Nele utilizámos, por corresponder a um entendimento jurisprudencial muito comum quanto à caracterização da causa de pedir numa acção de demarcação, a formulação constante do Acórdão desta Relação de 11/12/2007 (Hélder Roque), proferido no processo nº 1832/05.9TBCVL.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/ac3513815ae562a3802573c900560538  [no mesmo sentido, v. o Acórdão de 14/02/2006 (Ferreira de Barros), proferido no processo nº 4315/05, e o Acórdão de 10/02/2009 (Isabel Fonseca), proferido no processo nº 554/06.8TBAND.C1, respectivamente, sempre no mesmo sítio, directamente, nestes dois endereços: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/85d794fd18ed7aac80257169004cf458; http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/63c607067b477ee580257582004e0c ].
[11] Demarcação, 2ª ed., Coimbra, 1999, p. 32.
[12] A citação continua a referir-se ao Acórdão desta Relação indicado na nota 10, supra.
[13] V. Pedro Ferreira Múrias, Por Uma Distribuição Fundamentada do Ónus da Prova, Lisboa, 2000, pp. 99/100 e nota 267:
“[…]

O preceito [o artigo 1354º, nº 2] deve ser usado para ilustrar o carácter inaceitável de uma (não) solução a que a «teoria das normas» conduziria. Pressupõe-se, na lei, que a demarcação não possa «ser resolvida pela posse ou por outro meio de prova», ou seja, prevê-se um non liquet que escapa às presunções dos artigos 1268º/1 e 1252º/2 [do CC]. Os postulados rosenberguianos implicariam que quem pedisse a demarcação provasse a constituição da propriedade sobre aquela fracção de terreno e que, não podendo fazê-lo, a sua pretensão fosse desatendida. A outra parte teria de fazer prova simétrica, não conseguindo demarcação favorável na sua falta. Note-se que não estamos perante «contranormas», mas sim «normas autónomas incompatíveis», que se distinguem por o preenchimento de uma impedir o preenchimento da outra, daí resultando que, num confronto de «normas incompatíveis», a incerteza incida sempre simultaneamente sobre a verificação de ambas as facti species. O resultado seria uma decisão de «improcedência», o que, no caso da demarcação, é claramente inadequado, pois não se pede a declaração de certo direito, mas sim a dos limites do seu objecto, pelo que «improcedência» seria sinónimo de «não decisão», i.e., conservação da incerteza anterior ao processo. […]. Quer dizer: a «manutenção do estado actual» (a pura indeterminação, mesmo em termos «fácticos») não merece tutela jurídica. Não intervindo outro princípio de distribuição do ónus da prova (pense-se, p. ex., no artigo 344º/2 [do CC]), o único meio disponível é uma atribuição material segundo a ideia de igualdade.
Encontramos, então, uma dificuldade acrescida da «teoria das normas», as «normas incompatíveis». Como mostra o artigo 1354º [do CC], uma distribuição contrária à verificação em concreto das previsões constitutivas é inaceitável sempre que o status quo não mereça tutela jurídica.
[…]
[14] A Acção Declarativa À Luz do Código Revisto, 3ª ed., Coimbra, 2011, p. 689.
[15] Estudos Sobre o Novo Processo Civil, cit., p. 575.