Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5159/03.2TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: FIANÇA
FORMA DE DECLARAÇÃO NEGOCIAL
EXTINÇÃO
ACORDO
Data do Acordão: 09/29/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3.º J. CÍVEL LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 219.º E N.º 1 DO ARTIGO 628.º) DO CC, ARTIGO 7.º, N.º 1, DO RAU, N.º 2 DO ARTIGO 655 DO RAU
Sumário: 1) Na prestação de fiança relativa a obrigação dependente de determinada forma, só a declaração do fiador tem de revestir essa mesma forma;

2) A declaração do outro contraente (credor ou devedor) não necessita de ser escrita e nem sequer expressa, podendo ser tácita.

3) A extinção da fiança por mútuo acordo é válida independentemente de quaisquer formalidades.

4) Ao tribunal de recurso é vedado apreciar questões que não tenham sido suscitadas perante o tribunal recorrido.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Relatório:

            A.....mulher, B...., residentes em 1...., intentaram acção de condenação, com forma de processo sumário, contra C.... , residente na ...., e contra D...., residente na ...., alegando, em síntese, que:

São donos de uma casa de rés-do-chão, sita na ...., que deram de arrendamento ao réu C..., para sua habitação, pelo período de 5 anos, sucessivamente renovável por períodos de um ano, com inicio no dia 4 de Julho de 1996 e mediante a retribuição mensal de 30.000$00, a pagar no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que dissesse respeito.

Devido às actualizações legais, a renda passou, a partir de Janeiro de 2002, para € 171,60 e, a partir de Janeiro de 2003, para € 177,78.

            O réu D.... assinou uma fiança, pela qual se responsabilizava pelo pagamento da renda e de todas as despesas relacionados com o contrato de arrendamento, tendo renunciado expressamente ao benefício da excussão prévia.

            O réu C.... não pagou a retribuição relativa ao mês de Dezembro de 2002 nem qualquer das subsequentes, assim como não pagou a penalização referente ao atraso no pagamento da renda do mês de Novembro daquele ano, que lhe foi exigida.

Concluíram pela resolução do contrato de arrendamento e pela condenação dos réus na entrega da casa, livre e devoluta de pessoas e bens e no estado de conservação em que se encontrava aquando do início do contrato, bem como no pagamento, em regime de solidariedade, da quantia de € 85,80, correspondente à penalidade relativa ao atraso no pagamento da renda de Novembro de 2002, das rendas vencidas desde 01.12.2002 até 31.08.2003, no montante de € 1.593,84, das rendas vincendas até à desocupação e entrega do locado, da importância de € 796,92, referente às penalidades, nos termos do artigo 1041° do Código Civil, dos juros de mora, à taxa legal, sobre as quantias em dívida, vencidos e vincendos, até efectivo e integral pagamento e dos honorários de advogado que tiveram que suportar com a presente acção, a liquidar em execução de sentença.

O réu C..., citado editalmente, por ser desconhecido o seu paradeiro, não contestou, mas compareceu em juízo em momento posterior.

O réu D...., pessoalmente citado, contestou, tendo afirmado, em resumo, que:

Não dispõe de legitimidade para a acção, por não ter dado garantia de fiança aos autores, relativamente ao contrato de arrendamento junto à petição inicial.

De resto, no documento intitulado “Garantia de Fiança” não se identifica o contrato de arrendamento a que a esta diz respeito, pelo que o mesmo não tem valor algum, dada a confusão e possibilidade de poder servir de suporte de fiança a uma multiplicidade de contratos, desde que nestes lhes fosse aposta a data de 04/07/1996.

Acresce que há já mais de um ano que o réu C... não pernoita, não recebe os amigos, não toma refeições e não guarda as suas roupas e demais haveres pessoais no locado, que deixou em Outubro de 2002, tendo informado o senhorio dessa saída, não sendo impedimento, neste contexto, para entrega do locado a entrega das chaves nessa data, no caso de não lhe terem sido entregues antes.

Requereu, ainda, a intervenção principal provocada de F... , por figurar no contrato de arrendamento junto aos autos como fiador.

Admitida a intervenção, apresentou o chamado contestação, na qual alegou, em suma, ter acordado com os autores e com o réu C... a extinção da fiança, por haver deixado de ter qualquer contacto com este último, tendo, aliás, sido constituído novo fiador, do que lhe foi dado conhecimento pelos autores.

Na resposta à contestação, os autores consideraram ter recebido as chaves do locado em 31.10.2003 e requereram a alteração do pedido e causa de pedir, que não foram admitidos, sem prejuízo, no entanto, do ulterior atendimento da entrega, para efeitos de inutilidade superveniente da lide, quanto ao pedido de despejo.

No despacho saneador, foi julgada improcedente a arguida excepção de ilegitimidade e afirmada, no mais, a validade e a regularidade da lide.

A selecção da matéria de facto, limitada à base instrutória, não foi objecto de reclamação.

Realizada a audiência de discussão e julgamento e fixados, sem reparo, os factos relevantes para a decisão da causa, foi proferida sentença, que julgou extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, quanto aos pedidos de resolução do contrato de arrendamento e de entrega do locado, condenou os réus C.. e D..., aquele a título principal e este a título subsidiário, a pagar aos autores a quantia de € 1.927,44, relativa às rendas do período compreendido entre Dezembro de 2002 e 31.10.2003, à razão de € 149,64, no que respeita à renda de Dezembro de 2002, e de € 177,78, no que se refere às rendas após 01.10.2003, tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal, até efectivo pagamento, absolveu os mesmos réus de tudo o mais que lhes foi peticionado e absolveu o chamado F... de todo o pedido.

Inconformado com o decidido, o réu D... interpôs recurso, alegou e formulou vinte conclusões, que, muito facilmente, se podem resumir em, apenas, seis:

1) A extinção da fiança só é válida se tiver sido sujeita à forma exigida para a obrigação principal;

2) O chamado F... obrigou-se como fiador através de documento escrito, assinado por ele, pelos senhorios e pelo arrendatário, pelo que a extinção só poderia ter lugar através de documento idêntico, assinado pelas mesmas pessoas, o que não sucedeu;

3) O chamado mantém-se, pois, como fiador, solidariamente responsável pelo pagamento das rendas, por ter renunciado ao benefício da excussão.

4) O recorrente não garantiu o pagamento das rendas, pois que nenhuma declaração sua existe nesse sentido, em que tenham intervindo, também, os senhorios e o arrendatário.

5) De resto, a intitulada “Garantia de Fiança” não refere, sequer, o objecto do negócio, o que acarreta a sua nulidade.  

6) Em qualquer caso, a haver fiança prestada por si, a mesma estaria extinta, por se não ter limitado o número de pedidos de renovação do contrato de arrendamento e por o senhorio ter procedido à alteração das rendas em 11.11.2002.

O chamado respondeu à alegação, afirmando, por um lado, que a cessação ou revogação da fiança pode ser meramente verbal e, por outro, que o documento intitulado “Garantia de Fiança” contém todos os elementos necessários à prestação válida de fiança por parte do recorrente.

Os autores quedaram-se inertes.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Em rigor, são três as questões a requerer solução, a saber: a) se a fiança prestada pelo chamado se extinguiu; b) se o recorrente prestou validamente fiança; c) na afirmativa, se a mesma se extinguiu.

II. Na sentença apelada foram dados por provados os seguintes factos:

1) Por escrito intitulado “Contrato de Arrendamento de Duração Limitada”, com o n.º de processo 652.1, celebrado entre o autor, como primeiro outorgante e senhorio, representado por E.. e o réu C.., como segundo outorgante e inquilino, foi ajustado quanto à casa de habitação com dois quartos, sala, cozinha e casa de banho, para habitação, situada na ..., nº 1, lado direito, ..., parte inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 220°, descrita na Conservatória do Registo Predial de ....... sob o nº 710, o seguinte:

“1.° – O contrato de arrendamento é de duração limitada nos termos do art. 98º, e tem o seu início no dia 4 de Julho de 1996, e terminará no dia 31 de Julho de 2001, sendo o prazo de 5 anos, supondo-se sucessivamente renovado, por períodos de um ano se nenhuma das partes o denunciar, nos termos do artigo 100°, ambos do RAU, aprovado pelo decreto-lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro.

2.° – O presente arrendamento é feito segundo o regime de renda livre previsto nos artigos 77.º e 78.º do RAU.

3.° – A renda mensal é de 30.000$00 (trinta mil escudos) – € 149,64 –, que será paga na Agência G..., de E.., ......., no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que disser respeito, e fica sujeito aos aumentos legais previstos na alínea a) do nº 1 do artigo 31.º do RAU.

4.° – O local arrendado destina-se à habitação do inquilino (...).

8.° – Ambas as partes acordaram que o aumento da renda será feito por aviso no respectivo recibo de renda, com dois meses de antecedência (...).

9.° – O inquilino denominou como fiador o senhor F..., casado, natural da freguesia de ......., concelho de Pombal, residente no lugar e freguesia de ......., concelho de ......., que se responsabiliza pelo pagamento da renda, bem como os seus aumentos e suas prorrogações, assim como água e luz e todas as despesas mencionadas neste contrato, caso o inquilino não as pague e enquanto estiver a ocupar o local arrendado.

10.° – O fiador renuncia expressamente ao direito de excussão.

11.° – A rescisão deste contrato será feita única e exclusivamente por carta registada a enviar para o senhorio ou seu representante com um pré-aviso de 3 (três) meses.

12.° – A segunda outorgante e fiador disseram que aceitam o presente contrato de arrendamento e fiança, de duração limitada, nos termos exarados. (...)”.

2) A Agência .G... de E.. remeteu ao réu C...., em 11/11/2002, uma carta registada, para a ......., ......., declarando que a renda que se venceria em l de Janeiro de 2003, bem como as que se venceriam posteriormente, deveriam ser pagas no montante de € 177,78, até nova actualização legal.

3) Desde a data referida em 1), o Réu C... teve as chaves do imóvel ali mencionado.

4) O Réu C... não pagou qualquer quantia aos Autores em virtude do atraso no pagamento do mês de Novembro de 2002.

5) O Réu C...não pagou a renda de Dezembro de 2002 nem qualquer outra depois dessa.

6) Os Autores enviaram um escrito ao Réu C..., datado de 06/11/2002, solicitando o pagamento de rendas em atraso até Dezembro de 2002.

7) Os Autores enviaram um escrito ao Réu D..., datado de 07/11/2002, solicitando o pagamento de rendas em atraso até Dezembro de 2002, referente ao escrito mencionado em 1).

8) No escrito intitulado “Garantia de Fiança”, com o n.º de processo 652.1, consta:

“Eu, D..., casado, contribuinte nº 112075290, portador do BI n.º 8033173, residente em ......., ......., ......., declaro pela presente que me responsabilizo pelo pagamento da renda, bem como os seus aumentos e suas prorrogações, assim como todas as despesas de água e luz, caso o inquilino, sr. C.., enquanto estiver a ocupar o local arrendado, através do Contrato de Arrendamento por ele assinado em 04/07/96, com início nessa mesma data, não as pague, e que o presente tem conhecimento do mesmo e que rubricou a cópia do mesmo.

Este documento é composto de três folhas.

......., 12 de Abril de 1999”.

9) O Réu D... rubricou o escrito mencionado em 1).

10) O Réu D... sabia que o contrato mencionado em 8) era o constante de 1).

11) O Réu D... recebeu cópia do escrito mencionado em 1), aquando da realização do escrito mencionado em 8).

12) O número de processo constante do escrito aludido em 8) refere-se ao mesmo número no escrito mencionado em 1).

13) Em 31/10/2003, o réu D... entregou as chaves do local mencionado em 1) à Agência Imobiliária .G... de E.., através do seu mandatário.

14) Em finais de Janeiro de 1999, F... acordou com os Autores e com o réu C...que deixaria de ser fiador deste, porquanto deixara de ter contacto com o mesmo.

15) Foi em virtude do mencionado em 14) que foi elaborado o escrito referido em 8).

16) A agência imobiliária .G... comunicou a F... o escrito aludido em 8).

III. O direito:

a) A extinção da fiança prestada pelo chamado

Os autores demandaram os réus C.. e D..., com vista a obter, além do mais, a condenação solidária de ambos no pagamento de determinadas importâncias, a título de rendas em atraso, indemnização por mora e honorários de advogado, alegando o arrendamento de uma casa, para sua habitação ao primeiro, a prestação de fiança por parte do segundo, a mora no pagamento de umas rendas e a falta de pagamento de outras.

O réu D... contestou, dizendo não ter garantido, através de fiança, a obrigação do locatário, que teria sido assumida, antes, por F..., cuja intervenção provocada acabou por requerer.

O chamado, aceitando, embora, ter prestado fiança a favor do locatário, declinou a sua responsabilidade, por ter acordado com os autores e com o réu locatário a extinção da garantia.

Na sentença, perfilhando-se o entendimento, por um lado, de que a fiança prestada pelo chamado fora revogada por acordo dos interessados e, por outro, de que o réu D... havia assumido validamente as obrigações de fiador do locatário, decidiu-se absolver aquele e condenar este, mas em parte do pedido, apenas, e a título meramente subsidiário.

No essencial, considerou-se ali que o chamado acordara com os autores e com o réu C.. que deixaria de ser fiador e que a extinção da fiança não estava sujeita a forma.

As razões de discordância do réu D... centram-se no formalismo necessário à extinção da fiança, que, no seu entender, teria de ser o mesmo que o exigido para a sua prestação, ou seja, a forma escrita, com intervenção de senhorio, locatário e fiador, por imperativo do n.º 1 do artigo 628.º do Código Civil.

Será assim?

A fiança é uma garantia especial das obrigações, podendo definir-se como o vínculo jurídico pelo qual um terceiro (fiador) se obriga pessoalmente perante o credor, garantindo com o seu património a satisfação do direito de crédito deste sobre o devedor (Antunes Varela, Das Obrigações em geral, volume II, 5.ª edição, página 475).

Diz, nessa linha, o n.º 1 do artigo 627.º do Código Civil, diploma de que serão os demais preceitos que vierem a ser citados sem indicação de origem, que o fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor.

Uma das principais características da fiança é a acessoriedade (n.º 2 do citado preceito); a menos que o fiador se assuma como principal pagador, só depois de excutido o património do devedor pode aquele ser chamado à responsabilidade (artigo 638.º, n.º 1).

A natureza acessória da fiança explica alguns traços do seu regime legal: não pode exceder a dívida principal nem ser contraída em condições mais onerosas (mas pode ser contraída por quantidade menor ou em condições menos onerosas), não é válida se o não for a obrigação principal e está sujeita ao formalismo exigível para a obrigação principal (artigos 631.º, n.º 1, 632.º, n.º 1, e 628.º, n.º 1, respectivamente).

Interessa-nos, obviamente, este último aspecto, tendo em conta os termos em que os recorrentes delineiam a sua impugnação.

Comentando os requisitos formais da prestação da fiança, dizem Pires de Lima e Antunes Varela que pode bastar tanto a declaração verbal, como ser necessária uma escritura pública (Código Civil Anotado, Volume I, anotação ao artigo 628.º).

A liberdade de forma, regra básica da celebração dos negócios jurídicos (artigo 219.º), é aqui completamente afastada

E nem outra poderia ser a solução, pois que, tendo ambas as obrigações (a do fiador e a do devedor) o mesmo conteúdo, não faria sentido que numa se fosse menos exigente do que na outra (Antunes Varela, ob. cit., página 480).

No caso em apreço, a obrigação principal deriva de um contrato de arrendamento urbano, para cuja celebração se exige documento escrito (artigo 7.º, n.º 1, do RAU, aprovado pelo DL 321-B/90, de 15 de Outubro, diploma aplicável à situação vertente, como se decidiu, sem reparo, na sentença apelada).

Não está em causa a assunção da garantia fidejussória por banda do chamado, até porque a mesma foi plasmada no próprio contrato de arrendamento; maior respeito pela exigência formal seria, de facto, muito difícil.

Onde as divergências vêm à tona é na sua extinção, que os recorrentes sustentam ter de obedecer ao mesmo formalismo da constituição, ao invés do que se decidiu na sentença.

O formalismo negocial tem, como se sabe, vantagens e inconvenientes; entre as vantagens destacam-se a defesa das partes contra a sua própria precipitação, a formulação mais precisa da expressão da vontade, a separação dos termos definitivos do negócio da negociação em si, a facilitação da prova da declaração de vontade e a publicidade do acto; os inconvenientes prendem-se com a redução da fluência e celeridade do comércio jurídico e com possíveis injustiças, derivadas de eventuais nulidades por vício de forma.

Ponderando as vantagens e inconvenientes, considerou o legislador que estes sobrelevavam aquelas, optando, por conseguinte, pela regra da consensualidade, sem embargo de lhe introduzir numerosas excepções, ditadas pela “transcendência qualitativa dos interesses sobre que versa o negócio” (Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, edição de 1966, páginas143/145; Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, edição de 1983, páginas 428/430).

De qualquer modo, as exigências de forma têm sempre carácter excepcional (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., anotação ao artigo 219.º) e, por isso mesmo, têm de resultar da lei ou da vontade das partes, de conformidade, nesta hipótese, com o disposto no artigo 223.º.

A extinção dos negócios jurídicos está sempre na disponibilidade dos contratantes (n.º 1 do artigo 406.º). 

Mas exigirá a lei (a questão da forma convencional não tem aqui cabimento, porque não invocada) algum formalismo para a extinção de negócio cuja validade dependa de forma especial?

A resposta é dada pelo n.º 2 do artigo 221.º: “as estipulações posteriores[1] ao documento (documento exigido para a declaração negocial, como decorre do n.º 1 do preceito) só estão sujeitas à forma legal prescrita para a declaração se as razões da exigência especial da lei lhes forem aplicáveis”.

E não parece que seja essa a situação.

O rigor formal faz sentido quando se trata de assumir riscos, mas não quando se pretende afastá-los.

Dir-se-á que se a extinção da fiança desagrava a posição do garante, torna, em contrapartida, mais vulnerável a posição do credor, que vê diminuída a extensão das garantias de que dispõe; a verdade, no entanto, é que a dispensa da garantia por parte do credor significa, em regra, que ele chegou à conclusão de que a mesma já não tinha qualquer utilidade para si, seja porque o garante deixou de lhe oferecer segurança, seja porque obteve melhor garantia, seja, ainda, porque atingiu o essencial da finalidade visada.

Em qualquer caso, não estão em jogo as apontadas vantagens do formalismo negocial, mormente a reflexão, a precisão do negócio, a clareza da manifestação de vontade e o afastamento dos perigos da prova não escrita.

É esta, de resto, a posição de Vaz Serra[2] que, com a autoridade que lhe é reconhecida, se pronuncia claramente no sentido de deverem considerar-se abrangidos pela exigência de forma os pactos posteriores que oneram a obrigação, mas não os que a reduzam, exemplificando, nesta hipótese, com a limitação da obrigação do fiador.

Provado, que ficou, sem objecção das partes, que “em finais de Janeiro de 1999, F... acordou com os autores e com o réu C... que deixaria de ser fiador deste, porquanto deixara de ter contacto com o mesmo” – 14) dos factos assentes –, é inevitável a conclusão de que a fiança prestada pelo chamado se extinguiu.

Neste segmento, portanto, não pode o recurso proceder.

b) A validade da fiança prestada pelo recorrente

Na sentença decidiu-se haver o ora recorrente prestado validamente fiança, garantindo as obrigações do locatário para com os senhorios.

Aquele sustenta que não, estribado em três argumentos:

1) Não consta da Garantia de Fiança que tal documento substitui qualquer outra fiança já prestada num contrato de arrendamento específico e que foi elaborado em consequência de qualquer acordo de revogação de fiança.

2) O documento não tem o formalismo exigido pelo artigo 628.º do CC, por não assumir uma obrigação de pagar, usando a forma escrita exigida para a obrigação principal, ou seja, com a intervenção do senhorio e do arrendatário, cumprindo, desse modo, a sua natureza contratual.

3) A garantia de fiança é nula, por não ser determinável o objecto do negócio, o locado a que se refere.

Para bem decidir, importará ter presente a matéria de facto relevante neste domínio, que não foi impugnada:

7) Os autores enviaram um escrito ao réu D..., datado de 07.11.02, solicitando o pagamento de rendas em atraso até Dezembro de 2002, referente ao escrito mencionado em 1).

8) No escrito intitulado “Garantia de Fiança”, com o n.º de processo 652.1, consta:

Eu, D..., casado, contribuinte n.º 112075290, portador do BI n.º 8033173, residente em ......., ......., ......., declaro pelo presente que me responsabilizo pelo pagamento da renda, bem como os seus aumentos e suas prorrogações, assim como todas as despesas de água e luz, caso o inquilino, Sr. C.., enquanto estiver a ocupar o local arrendado, através do contrato de arrendamento por ele assinado em 04.07.96, com início nessa mesma data, não as pague, e que o presente tem conhecimento do mesmo e que rubricou a cópia do mesmo.

Este documento é composto de três folhas.

Leiria, 12 de Abril de 1999

D....

9) O réu D... rubricou o escrito mencionado em 1).

10) O réu D... sabia que o contrato mencionado em 8) era o contrato de 1).

11) O réu D... recebeu cópia do escrito mencionado em 1), aquando da realização do escrito mencionado em 8).

12) O n.º de processo constante do escrito aludido em 8) refere-se ao mesmo número do escrito mencionado em 1).

14) Em finais de Janeiro de 1999, F... acordou com os autores e com o réu C... que deixaria de ser fiador deste, porquanto deixara de ter contacto com o mesmo.

15) Foi em virtude do mencionado em 14) que foi elaborado o escrito referido em 8).

16) A agência imobiliária .G... comunicou a F... o escrito mencionado em 8).

Posto isto:

Tem vindo a ser discutido na doutrina e na jurisprudência se a fiança é, ou não, uma relação de natureza contratual. Apesar de a lei o não afirmar expressamente, Antunes Varela entende que sim, baseado na disposição do artigo 457.º, que atribui carácter excepcional aos negócios unilaterais. Não deixou, no entanto, de chamar a atenção para o facto de Vaz Serra ter admitido, nos trabalhos preparatórios do Código, a possibilidade da constituição unilateral da fiança (obra citada, página 483).

Na jurisprudência, também o acórdão do Supremo, de 10 de Novembro de 1993 (CJ/STJ, ano I, Tomo III, página 122), seguiu a mesma orientação.

Mais recentemente, porém, o mesmo Tribunal pronunciou-se em sentido oposto, no entendimento de que tal interpretação é a que melhor se harmoniza com a disposição do artigo 767.º, que permite que o cumprimento seja efectuado por terceiro (acórdão de 04.10.2007, constante da Base de Dados da DGSI).

Independentemente da posição que, neste particular, se adopte, a verdade é que, na hipótese em presença, está suficientemente configurado o acordo de vontades, que é pressuposto da relação contratual.

            Concorda-se inteiramente com o raciocínio vertido na sentença a este propósito, na esteira, aliás, do desenvolvido no acórdão do STJ de 10.11.1993, antes referido.

            O contrato é um acordo vinculativo de vontades, assente sobre duas ou mais declarações de vontade (oferta ou proposta, de um lado; aceitação, do outro), contrapostas mas perfeitamente harmonizáveis entre si, que visam estabelecer uma composição unitária de interesses (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, volume I, 7.ª edição, página 221).

            Ao contrato é essencial o mútuo consenso, como esclarece o mestre (página 225 da mesma obra), mas não que o mesmo seja obtido em simultâneo; a aceitação pode perfeitamente surgir depois da proposta, o que, de resto, acontece com bastante frequência; pense-se, por exemplo, nos contratos entre ausentes.

             É a própria lei a admiti-lo, ao consagrar a doutrina da recepção como a da perfeição do contrato (artigo 224.º, n.º 1). O contrato considera-se celebrado quando a resposta contendo a aceitação chega à esfera de acção do proponente ou é dele conhecida (Mota Pinto, ob. cit., páginas 388/389 e 439/440).

            A declaração negocial, por outro lado, não depende de forma e, nem sequer, de ser expressa, a menos que a lei o exija; pode ser tácita, conforme deflui do disposto no n.º 1 do artigo 217.º.

            Ponto é que ao comportamento do declarante, visto de fora, objectivamente, numa consideração de coerência, possa ser atribuída, uma dada significação negocial; não é necessária a certeza, bastando aquele grau de probabilidade que é suficiente para as pessoas sensatas tomarem as suas decisões (Manuel de Andrade, ob. cit., página 132, e Mota Pinto, ob. cit., página 423).

            No que tange à fiança, a lei exige que a vontade de a prestar seja expressamente declarada pela forma exigida para a obrigação principal (n.º 1 do artigo 628.º), mas não mais do que isso; a declaração de vontade da contraparte (credor ou devedor, consoante o caso) não está sujeita a forma especial, podendo, portanto, ser emitida tacitamente.

            Ora, o recorrente assinou um escrito intitulado “Garantia de Fiança”, nos termos do qual declarou responsabilizar-se pelo pagamento da renda, bem como os seus aumentos e suas prorrogações, assim como todas as despesas de água e luz, relativamente ao contrato de arrendamento identificado em 1) dos factos assentes, caso o inquilino o não fizesse – ponto 8) dos mesmos factos.

            Tal configura uma proposta de contrato de fiança, do qual contém os elementos necessários à respectiva validade, nomeadamente o artigo 219.ºs de forma: documento escrito, que é o exigível para o contrato de arrendamento (artigo 7.º, n.º 1, do RAU).

            É óbvio que a proposta foi aceite pelos autores, a favor de quem a garantia foi prestada, uma vez que solicitaram ao fiador o pagamento das rendas que o arrendatário deixara de pagar; a concludência do seu comportamento, quando aferida por um padrão de objectividade e da coerência, não deixa margem para outra interpretação que não seja a de que quiseram beneficiar da garantia que o recorrente voluntariamente se dispôs a prestar-lhes.

            Aceitação tácita, portanto; e como esta chegou ao conhecimento do recorrente, a declaração tornou-se eficaz e o contrato de fiança atingiu a perfeição.   

Cai, assim, por terra o segundo argumento do recorrente, ou seja, o de que a prestação de fiança não é válida por falta de forma.

Quanto ao primeiro (não constar do documento intitulado “Garantia de Fiança” que o mesmo substitui outra fiança já prestada e que foi elaborado em consequência de acordo de revogação de fiança), não se lobriga o seu alcance; nem um contrato de fiança tem de substituir outro anterior, nem a existência de um obsta à celebração de outro, até porque é admitida a pluralidade de fiadores (artigo 649.º). O argumento é inócuo.

Falho de razão é, também, o terceiro argumento: o de que a fiança é nula, por não ser determinável a que locado se está a referir.

Nos termos do artigo 280.º, n.º 1, é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja indeterminável.

Sanciona-se a indeterminabilidade, que não a indeterminação; o negócio com objecto indeterminado é válido, desde que a lei ou as partes tenham estabelecido o critério para a sua individualização (Mota Pinto, ob. cit., página 546).

Em face da matéria de facto dada por provada, não são necessárias grandes elucubrações para se perceber que a fiança incide sobre objecto cuja determinação não sofre a menor dúvida.

  O contrato de arrendamento em causa nos autos tem o n.º de processo 652.1, contém a data e identifica, além do mais, os contratantes, o prédio, a finalidade (habitação) e a duração; o documento de prestação da fiança refere expressamente aquele número de processo, a data da assinatura do contrato de arrendamento e a pessoa do arrendatário; o recorrente sabia que a fiança tinha em vista tal contrato de arrendamento, que, de resto, rubricou e do qual recebeu cópia.

Como dizer, neste condicionalismo, que o locado não está identificado e que a fiança poderia servir para uma multiplicidade de contratos, desde que lhes fosse aposta a data de 04.07.2006?

A pretensa nulidade está fora de questão.

Em conclusão, a fiança é formal e substancialmente válida, pelo que a decisão não merece censura, também, nesta parte.   

c) A extinção da fiança prestada pelo recorrente

Na lógica do recorrente, a fiança que prestou, a ser válida, estaria extinta, por força do n.º 2 do artigo 655.º, seja porque não foram limitados os períodos de renovação do contrato de arrendamento, seja porque o senhorio procedeu à alteração da renda em 11.11.02.

O citado artigo, revogado, entretanto, pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, que aprovou o NRAU, é aplicável à situação em apreço, porque regida, ainda, pelo RAU, como supra se esclareceu. E nele se prevê, de facto, que se o fiador se obrigar relativamente aos períodos de renovação do arrendamento, sem se limitar o número destes, a fiança se extingue, na falta de nova convenção, logo que haja alteração da renda ou decorra o prazo de cinco anos sobre o início da primeira prorrogação.

O problema é que o recorrente não trouxe a questão à liça na sua contestação; tratando-se, como se tratava, de matéria de excepção, recaía sobre ele o ónus de alegar os factos tendentes à respectiva procedência (artigo 342.º, n.º 2).

Só que tal não foi feito; e como a questão não era daquelas que pudesse ser conhecida oficiosamente, o tribunal de 1.ª instância, e bem, não a apreciou.

A colocação da situação a esta Relação vem fora de tempo, porque a questão é nova (na medida em que não foi submetida ao veredicto do tribunal recorrido) e, como é jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, as questões novas não podem ser conhecidas pelo tribunal de recurso (vide, por todos, o acórdão de 01.10.2002, CJ/STJ, Ano X, Tomo III, página 65).

Por este trilho, não logra o recorrente a sua pretensão.

O recurso improcede na sua totalidade.

IV. Síntese final:

1) Na prestação de fiança relativa a obrigação dependente de determinada forma, só a declaração do fiador tem de revestir essa mesma forma;

2) A declaração do outro contraente (credor ou devedor) não necessita de ser escrita e nem sequer expressa, podendo ser tácita.

3) A extinção da fiança por mútuo acordo é válida independentemente de quaisquer formalidades.

4) Ao tribunal de recurso é vedado apreciar questões que não tenham sido suscitadas perante o tribunal recorrido.

V. Decisão:

Em face de quanto se expôs, acorda-se em julgar a apelação improcedente e em confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente.


[1] Os pactos extintivos ou abolitivos, designados, também, “contrarius consensus”, são necessariamente estipulações posteriores, como observa Mota Pinto (ob. cit., página 432, nota 2).
[2] Citado por Mota Pinto a folhas 433 da sua referida obra.