Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2112/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: PROMOÇÃO E PROTECÇÃO DE MENOR EM PERIGO
Data do Acordão: 09/30/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: REC. AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática: ORGANIZAÇÃO TUTELAR DE MENORES
Legislação Nacional: ART. 191º DA O.T.M.
Sumário:
No caso de um menor se encontrar em situação de perigo, por evidenciar sinais de um comportamento perturbado, com isolamento e atitudes agressivas, mostrando-se emocional e afectivamente abalado, o processo melhor adequado a tal situação é o de promoção dos direitos e da protecção da criança e do jovem em perigo previsto na Lei n° 147/99, de 1 de Setembro, e não o de entrega judicial de menor previsto no art. 191º da O.T.M.
Decisão Texto Integral: Acordam no tribunal da Relação de Coimbra:

O Ministério Público requereu, em 24/04/2002, no Tribunal Judicial de Tomar, a aplicação de providência urgente ao menor Carlos ..., nascido em 16/07/1997, na Alemanha, com o fundamento de que, após a separação, em Novembro de 2000, dos progenitores do menor, Alexandra ... e Agostinho ..., este havia sido entregue a Álvaro ... e mulher, Jacinta ..., tios do Agostinho ..., que se dispuseram a zelar pelo sustento, saúde e educação do menor, sendo que nessa ocasião este evidenciava ter estado em situação de perigo, já que tinha sinais de um comportamento perturbado, com isolamento e atitudes agressivas, mostrando-se emocional e afectivamente abalado.
Promoveu que fosse proferida decisão no sentido de provisoriamente ser o menor entregue à guarda e protecção dos tios Álvaro e Jacinta e determinar o ulterior prosseguimento dos autos como processo judicial de promoção e protecção.
Por decisão proferida em 26/04/2002, foi o menor confiado provisoriamente a Álvaro Félix e mulher, ficando determinado que os pais do menor poderiam visitá-lo em casa daqueles.
Foram inquiridos os pais do menor e a psicóloga que o acompanha e elaborados vários relatórios sociais.
Realizou-se o debate judicial, visto não se ter obtido acordo de promoção e de protecção.
Em 18/03/2003 foi proferida decisão, que aplicou ao menor Carlos ... a medida de apoio junto de outro familiar, e que irá consubstanciar-se:
a) Na colocação (manutenção) do menor soba guarda e cuidados de Álvaro e Jacinta, tios do Agostinho Dias, com aquele reside desde Fevereiro de 2001 e a quem foi confiado provisoriamente em 26/07/2002.
aa) Tal medida terá a duração de um ano, sem prejuízo da revisão a que alude o artº 62º da LPCJP.
ab) No decurso dessa medida:
- o pai, a mãe e os avós poderão visitar o menor sempre que o entenderem, sem prejuízo dos horários de descanso e escolares do menor e avisando previamente Álvaro ou Jacinta;
- nos primeiros seis meses, o pai e a mãe do menor poderão estar e conviver com o mesmo, desde que acompanhados por outros familiares (v.g. por Álvaro e Jacinta ou pelos avós maternos);
aba) Se o psicólogo que acompanhar o menor não o desaconselhar:
- o menor passará metade das férias da Páscoa em casa dos avós maternos (com estes, com o irmão e com a mãe), em data a acordar previamente com Álvaro e Jacinta;
- de quinze em quinze dias, o menor passará o fim de semana com os avós maternos e com o irmão.
b) No acompanhamento psicopedagógico do menor, cuja manutenção será obrigatória com a regularidade e pelo período de tempo tidos por necessários pela Psicóloga.
*
Inconformados com a decisão, interpuseram recurso, separadamente, os progenitores do menor, sendo do seguinte teor as conclusões das respectivas alegações:
Recurso de Agostinho Dias:
1ª- Ficou provado no âmbito deste processo que o recorrente, foi buscar o menor a casa da mãe deste, na Alemanha, em Janeiro de 2001, trazendo-o consigo para Portugal, por entender que aquela não zelava convenientemente pela saúde e bem estar do filho de ambos.
2ª- Ficou ainda provado que o recorrente é o pai biológico do menor.
3ª- Mais ficou provado que o menor, quando já se encontrava em casa dos tios paternos, “evidenciou um comportamento perturbado, com isolamento e atitudes agressivas, o que justificou que fosse submetido desde Junho de 2001 a um acompanhamento ao nível da psicologia clínica (com a anuência do pai, que acompanhou o menor na 1ª consulta), pela Srª Drª Paula Isabel Santos.
4ª- Nos termos constantes dos relatórios médicos elaborados pela Drª Paula Isabel Santos e dos relatórios do IRS junto aos autos, está provado que o menor vê o pai como um “herói” e que não nutre grande afecto pela mãe.
5ª- Aliàs, da matéria fáctica dada como provada, o “menor fala espontaneamente nos “avós” e no pai, começando agora a referir-se também à mãe (já que o Álvaro e a Jacinta Félix têm feito uma maior referência à figura materna)”.
6ª- Entende o recorrente que face à matéria provada, o Tribunal “a quo” devia ter decidido atribuir-lhe a guarda do menor,
7ª- porquanto tem sido ele quem tem zelado pelo bem estar do filho, não só ao nível físico e psíquico (acompanhando-o à psicóloga e interessando-se constantemente pelo seu bem estar, através de inúmeros telefonemas que faz da Suiça, e das suas constantes deslocações a casa dos seus tios a fim de visitar o filho),
8ª- como também ao nível material, contribuindo mensalmente com uma verba que se mostra mais do que suficiente para os tios fazerem face às despesas com o menor. Com efeito,
9ª- Se se reconhece que é o recorrente, o progenitor que tem uma relação mais próxima com o menor,
10ª- se se não põe em causa que o filho o vê como um herói e que o estima, assim como ele estima o filho,
11ª- se está provado que ele tem possibilidades económicas para o sustentar e que tem contribuído mensalmente para esse sustento, então,
12ª- não se percebe a que estabilidade se refere o douto aresto, na parte que diz que, “não obstante esta maior proximidade entre o menor e Agostinho Dias e as possibilidades económicas que tem, este necessita de estabilizar e de ter presente e em atenção que o Carlos é um menino que precisa de estabilidade, de estar rodeado de familiares e de amigos, de conviver com a mãe, com o irmão e com ao avós (maternos e paternos)”.
13ª- A decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, merece censura, porque não obstante ter presente um conjunto de provas que permitiam concluir, com segurança, queé o pai, ora recorrente, o progenitor que melhor tem zelado pelo menor,
14ª- Decidiu pela entrega do menor à guarda dos tios-avós paternos e, além disso, atribuir à mãe e aos avós maternos, um conjunto de direitos que, a ele pai, não lhe foram concedidos.
15ª- Esta decisão contraria o fim visado pela Lei nº 147/99, de 1 de Setembro, que se mostra sempre mais favorável à manutenção da criança ou do jovem junto dos pais, ainda que com acompanhamento “psicopedagógico e social e, quando necessário, social” – cfr. artºs 35º e 39º daquela lei.
16º- Entende, por conseguinte, o recorrente que a sentença, ao atribuir a guarda do menor aos tios-avós paternos, violou, entre outros, os artºs 4º, 35º e 39º da Lei nº 147/99, 1885º do Código Civil, e 67º e 68º da Constituição da República Portuguesa.
Recurso de Alexandra Monteiro:
1ª- Face ao circunstancialismo em que o menor foi retirado do poder paternal da sua mãe e à decisão judicial do Tribunal alemão decretada a esse respeito, deveria o Digno Mº Pº promover o Processo de Entrega Judicial do Menor previsto nos artºs 191º a 193º da OTM e, na sequência desse processo, restituir-se de imediato o menor à sua mãe.
2ª- Enveredando, como enveredou, pelo processo de Promoção e Protecção de Menor previsto na Lei 147/99, face aos factos dados como provados (e aos não provados) e, ainda, ao restante circunstancialismo que resulta dos autos, a restituição do menor à sua mãe é a decisão que melhor se coaduna com as disposições legais consignadas, entre outros, nos artºs 4º, al. g) da Lei 147/99 e 36º, nº 6 da CR.
*
O menor contra-alegou, defendendo a manutenção da sentença recorrida.
*
Também o Mº Pº contra-alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
*
O Mmº Juiz sustentou, tabularmente, a decisão recorrida.
*
Na 1ª instância foi dado como assente o seguinte:
I - Carlos Augusto Saraiva nasceu em 16/07/1997, na Alemanha.
II - O menor é filho de Teresa Alexandra Saraiva Monteiro, natural de Pinhel, actualmente a residir na Alemanha.
III - À data do nascimento, a mãe do menor era casada com António José Ribeiro São Pedro, mas encontrava-se separada de facto do mesmo, vivendo maritalmente com Agostinho Carlos Duarte Dias (pai biológico do menor).
IV - Viveram na Alemanha, onde foram emigrantes, desde finais de 1997 até Novembro de 2000, altura em que se separaram, tendo a Teresa Monteiro permanecido com o menor até inícios de Janeiro de 2001, ocasião em que o Agostinho Dias retirou o menor à progenitora, sem autorização desta.
V - Teresa Monteiro participou o facto às autoridades judiciais alemãs competentes, tendo o tribunal decretado a restituição imediata do menor à mãe por parte de Agostinho Dias.
VI - Em Fevereiro de 2001, Agostinho Dias colocou o menor em casa de seus tios Álvaro Duarte Félix e Jacinta Ferreira Félix, residentes em Marmelais de Cima, 12, Tomar, Portugal, onde o Carlos se tem mantido ininterruptamente a residir, até à presente data.
VII - Desde então o menor passou a frequentar o infantário “ABC”, na cidade de Tomar.
VIII - No entanto, evidenciou um comportamento perturbado, com isolamento e atitudes agressivas, o que justificou que fosse submetido, desde Junho de 2001, a um acompanhamento ao nível da psicologia clínica (com a anuência do pai, que acompanhou o menor na primeira consulta), pela Srª Drª Paula Isabel Santos, acompanhamento que ainda se mantém.
IX - Quando foi entregue aos tios de Agostinho Dias, o menor estava emocional e afectivamente abalado. Era uma criança que se isolava bastante, não falava ou fazia-o de forma pouco perceptível, não brincava, tinha insónias e pesadelos recorrentes. Além disso, tinha comportamentos que envolviam assédio sexual de crianças da sua idade (designadamente com um primo, com quem tentou estabelecer sexo oral) e masturbação compulsiva.
X – Desde que está com Álvaro e Jacinta Félix e a ter acompanhamento psicoterapêutico, o Carlos tem mostrado progressos a nível afectivo e comportamental: foi-se tornando uma criança mais comunicativa e menos agressiva, parecendo ser uma criança muito mais feliz e integrada. O menor já brinca, já joga e consegue manter uma conversa sequenciada no tempo e no espaço.
XI – O Carlos manifesta grande afecto pelos tios de Agostinho Dias, a quem trata por “avós”.
XII - Estes familiares prestam ao menor todos os cuidados necessários para o seu são desenvolvimento, designadamente ao nível da higiene e da alimentação, e, por sugestão da educadora, e com o objectivo de desenvolver a sua coordenação motora, colocaram o menor na natação.
XIII – Nesse agregado familiar o menor interage com crianças da sua idade e/ou de idade aproximada.
XIV – O menor fala espontaneamente nos “avós” e no pai, começando agora a referir-se também à mãe (já que Álvaro e Jacinta Félix têm feito uma muito maior referência à figura materna).
XV – O relacionamento do menor com o pai biológico tem-se processado de forma regular, mediante contactos telefónicos, deslocando-se Agostinho Dias com alguma regularidade a Portugal para ver o filho, por quem nutre grande afecto.
XVI – Desde que o menor lhe foi retirado, Teresa Monteiro só soube do seu paradeiro em Março/Abril de 2002 (já que Agostinho Dias não comunicou – àquela ou aos avós maternos, não obstante as insistências – onde o menor se encontrava).
XVII – Desde que tomou conhecimento que Carlos permanecia em casa de Álvaro e Jacinta Félix, Teresa Monteiro telefonou-lhe cerca de 2 ou 3 vezes e visitou-o umas duas vezes em Tomar.
XVIII – O menor não expressa sentimentos calorosos ou de grande afecto para com a mãe.
XIX – O Carlos tem um irmão mais velho, o Ricardo (com 9 anos), resultante do matrimónio de Teresa Monteiro com António José Ribeiro São Pedro, que vive com os avós maternos em Pinhel, numa casa ampla e em bom estado de conservação.
XX – Antes de ir com os pais para a Alemanha, o Carlos viveu/permaneceu durante três meses – juntamente com o irmão – com os avós maternos, em Pinhel.
XXI – Os avós maternos têm possibilidade de prestar ao menor todos os cuidados de que este necessita e demonstram disponibilidade para receber o menor, por quem nutrem muita estima e afecto.
XXII – Em 2002, Teresa Monteiro esteve cerca de 7/8 meses em Pinhel, onde montou uma pizzaria, tendo, no entanto, voltado para a Alemanha (em Novembro de 2002), por o negócio ter corrido mal.
XXIII – Álvaro e Jacinta Félix vivem em casa própria, com boas condições habitacionais, mostrando disponibilidade para continuar a assumir a educação de Carlos, designadamente até que os pais estabilizem e organizem as suas vidas.
XXIV – Álvaro Félix recebe uma reforma no valor de 450 euros (emigrante em França) e uma pensão por invalidez de 138 euros.
XXV – Agostinho Dias tem contribuído para o sustento do menor em média com cerca de 300 euros por mês, não ascendendo as despesas com o menor a 400 euros.
XXVI – Actualmente Agostinho Dias está emigrado na Suiça, onde trabalha, auferindo mensalmente mais de 3.000 euros, tendo um imóvel em Viseu, para onde está na disposição de ir viver com o menor (caso tal seja necessário).
*
Como é sabido, o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal da Relação conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil).
*
Parece-nos ser de confirmar inteiramente a sentença recorrida, para cujos fundamentos da decisão se remete, fazendo uso da faculdade conferida pelo nº 5 do artº 713º do Código de Processo Civil, uma vez que a mesma interpretou e aplicou correctamente o direito aos factos provados, não tendo violado os comandos legais referidos pelos recorrentes.
Com efeito, face à matéria de facto dada como provada (v. nomeadamente pontos IV, VIII, IX, X, XI, XII e XVIII) e ao disposto nos artºs 1º, 3º e 4º da Lei nº 147/99, de 1 de Setembro, parece-nos perfeitamente adequada a medida aplicada, por não parecer aconselhável ser o menor entregue, neste momento, a qualquer dos progenitores.
Na verdade, basta tomar em consideração que o Agostinho Dias retirou o menor à mãe, sem autorização desta, tendo tido o filho em seu poder durante cerca de um mês em condições que se desconhecem, sendo certo, no entanto, que, quando foi entregue aos tios do mesmo Agostinho, Álvaro e Jacinta, estava emocional e afectivamente abalado, com um comportamento perturbado, necessitando de acompanhamento a nível de psicologia clínica, não sendo, assim, como se disse, aconselhável entregar o menor ao pai.
E também o não é em relação à mãe, pois, o menor não expressa sentimentos calorosos ou de grande afecto para com ela.
Dado o comportamento do menor, atrás referido, e a situação de perigo em que se encontrava quando foi entregue ao Álvaro e à Jacinta, não merece censura a opção do Mº Pº pela promoção do processo de Protecção de Menor, em vez do processo de Entrega Judicial de Menor, visto ser aquele o que melhor se adequava à situação, tendo em conta o interesse superior do menor, de acordo com o disposto na al. a) do artº 4º da aludida Lei nº 147/99.
Por isso, e estando justificada a separação do menor Carlos em relação à sua mãe, não houve violação do disposto no nº 6 do artº 36º da Constituição da República.
Assim como também não houve violação do disposto nos artºs 67º e 68º da mesma Constituição, invocada pelo recorrente Agostinho Dias - que, no entanto, não apresenta qualquer justificação para tal invocação -, visto estes normativos não terem qualquer aplicação ao caso dos autos.
*
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em negar provimento a ambos os recursos, mantendo a decisão recorrida.
Custas: cada um dos recorrentes paga as custas em relação ao respectivo recurso.