Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1213/2006
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO URBANO
DENÚNCIA PARA HABITAÇÃO DE DESCENDENTES
REQUISITOS
Data do Acordão: 07/05/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 69º, Nº 1, AL. A) E 71º, Nº 1, ALS. A) E B), DO RAU
Sumário: I – A possibilidade de denúncia do contrato de arrendamento por necessidade de habitação dos descendentes em 1º grau do senhorio foi pela primeira vez introduzida no artº 69º, nº 1, al. a), do RAU, na versão primitiva aprovada pelo D.L. nº 321/90, de 15/10, disposição essa que foi declarada inconstitucional (orgânica) pelo Ac. do Tribunal Constitucional de 19/02/99, com força obrigatória geral, na parte respeitante aos descendentes em 1º grau .
II – Uma vez obtida a competente autorização legislativa pela Lei nº 16/2000, de 8/8, o D.L. nº 329-B/2000, de 22/10, alterou a alínea a) do nº 1 do artº 69º do RAU, restabelecendo a possibilidade do senhorio denunciar o contrato para o termo do prazo ou da sua renovação quando necessite do prédio para sua habitação ou dos seus descendentes em 1º grau.

III – Da conjugação dos artºs 69º, nº 1, e 71º, nº 1, als. a) e b), e nº 3, do RAU, extrai-se que os pressupostos legais do direito de denúncia do contrato de arrendamento para habitação do descendente em 1º grau do senhorio, cujo ónus de alegação e prova incumbe ao autor, são os seguintes :

a) ter o descendente em 1º grau necessidade da casa para sua habitação ;

b) ser o senhorio proprietário, comproprietário ou usufrutuário do prédio há mais de cinco anos ou, independentemente deste prazo, se o tiver adquirido por doação;

c) não ter o senhorio, há mais de um ano, na área das comarcas de Lisboa ou do Porto e suas limítrofes ou na respectiva localidade quanto ao resto do país, casa própria ou arrendada que satisfaça as necessidades de habitação dos seus descendentes em 1º grau;

d) não ter o descendente em 1º grau, há mais de um ano, na área das comarcas de Lisboa ou do Porto e suas limítrofes ou na respectiva localidade quanto ao resto do país, casa própria ou arrendada que satisfaça as suas necessidades de habitação .

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1.1. - A Autora – A... – instaurou na Comarca de Viseu acção declarativa, com forma de processo sumário, contra os Réus – B... e mulher C...
Alegou, em resumo:
A Autora é legítima proprietária de um prédio urbano, sito na Rua Alexandre Herculano, Viseu, tendo, em Janeiro de 1985, dado de arrendamento aos Réus para habitação o 1º andar.
A Autora necessita do locado para habitação da sua filha D..., então com 34 anos de idade, que por não ter casa própria ou arrendada continua a residir com a sua mãe, por tolerância desta, necessitando do arrendado para ali instalar a sua habitação com autonomia já que economicamente emancipada.
E porque a filha não possui em Viseu casa própria ou arrendada, pretende exercer o direito de denúncia do contrato de arrendamento, nos termos do art.71 nº1 alíneas a) e b) do DL 321-B/90 de 25/10, na redacção do DL 329-B/2000 de 22/12.
Pediu que seja decretada a denúncia do contrato de arrendamento descrito nos arts.8º a 10º, condenando-se os Réus a proceder à entrega do arrendado.
Contestaram os Réus, defendendo-se, em síntese:
O contrato de arrendamento foi feito em 1/4/1977 e despejo não traduz uma necessidade de habitação séria e efectiva, excepcionando com o abuso de direito.
Subsidiariamente, para o caso da acção proceder, reclamam a indemnização prevista no art.72 do RAU, bem como a compensação correspondente ao valor das benfeitorias realizadas.
Concluíram pela improcedência da acção e em reconvenção pediram a condenação da Autora a pagar aos Réus a quantia de esc.2.802.700$00, a título de indemnização pela desocupação prevista no art.72 nº1 do RAU, acrescida da indemnização pelas obras nele executadas, com juros legais vincendos.
Respondeu a Autora contraditando a defesa por excepção e o pedido reconvencional.

1.2. - No saneador afirmou-se a validade e regularidade da instância e realizado julgamento foi preferida sentença que decidiu:
a) - Julgar improcedente a acção e absolver os Réus dos pedidos;
b) - Absolver a Autora da instância reconvencional.

1.3. - Recorreram de apelação a Autora ( recurso independente ) e os Réus ( recurso subordinado ).

1.3.1. - Apelação da Autora – conclusões:
1º) - A necessidade do prédio para habitação do descendente em 1º grau, reclamada pela Autora, está dependente da verificação dos requisitos exigidos nos arts.69 nº1 a) e 71 nº1 do DL 321-B/90 de 15/10.
2º) – O tribunal a quo deu como provado a verificação dos requisitos previstos naqueles normativos, nomeadamente, a necessidade da casa por parte da filha da Autora, a propriedade desta sobre o prédio há mais de cinco anos, e a filha da Autora não dispõe em Viseu, há mais de um ano, de casa própria ou arrendada que satisfaça as necessidades de habitação própria.
3º) – Considera o tribunal que este último requisito é cumulativamente aplicável à filha do Autora ( beneficiária da denúncia ) e à própria Autora ( proprietária do prédio ).
4º) – Tal interpretação não encontra consagração legal nos normativos citados, dispondo o art.71 nº1 alínea b) que a falta de casa própria ou arrendada que satisfaça as necessidades de habitação deverá ser aferida com referência aos senhorio ou ( conjunção alternativa ) ao seu descendente em 1º grau conforme a mesma de destine à habitação própria de um ou de outro.
5º) – Esta solução veio encontrar consagração legal no DL 329-B/2000 de 22/12, dispondo o aditado nº3 do art.71 que, no caso de denúncia para habitação do descendente, a verificação do requisito previsto na alínea b) se aplica única e exclusivamente ao descendente.
6º) – Estão reunidos os pressupostos legais do direito de denúncia do arrendamento.

1.3.2. - Contra-alegaram os Réus, defendendo a interpretação feita na sentença e subsidiariamente ampliaram o âmbito do recurso, nos termos do art.684-A nº2 do CPC, incidindo sobre o impedimento do exercício do direito de denúncia, por gozarem do locado desde 1/4/1977.
Respondeu a Autora, dizendo carecer de fundamento a ampliação do objecto do recurso, por se fundamentar em factos que não sendo do conhecimento oficioso, não foram alegados pelos Réus na contestação, sem prejuízo de não estar preenchido o requisito do art.107 nº1 b) do DL 329-B/2000 de 22/12, como factor impeditivo da denúncia do contrato de arrendamento.

1.3.3. - Recurso subordinado dos Réus – conclusões:
1º) - A sentença julgou improcedente o pedido de despejo, não conhecendo dos pedidos reconvencionais.
2º) - Deu-se como provado diversos factos relativamente aos melhoramentos introduzidos no locado pelos Réus.
3º) - Reclamaram os recorrentes a indemnização a que alude o art.72 do RAU.
4º) - Uma vez que não foi conhecida a questão dos pedidos reconvencionais, como se impunha, por haverem ficado prejudicados com a improcedência da acção, cabe aos Réus a interposição do recurso subordinado para apreciação dos mesmos, no caso da procedência do recurso da Autora, conforme disposto nos arts.56 nº4 do RAU, 216 nº1, 473 do CC, 660 nº2 do CPC.
Não foram apresentadas contra-alegações.

II - FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – Delimitação do objecto dos recursos:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes ( arts. 684 nº3 e 690 nº1 do CPC ), impondo-se decidir as questões nelas colocadas, bem como as que forem de conhecimento oficioso, exceptuando-se aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras ( art.660 nº2 do CPC ).
Considerando as conclusões de ambos os recursos, com a ampliação do âmbito da apelação independente, as questões essenciais que importa decidir são as seguintes:
A) - Se o direito de denúncia do contrato de arrendamento para habitação do descendente em 1º grau, depende da verificação do requisito da alínea b) do nº1 do art.71 do RAU tanto em relação ao senhorio, como ao descendente;
B) - Se ocorre, no caso concreto, a limitação do direito de denúncia, com fundamento no art.107 nº1 b) do RAU;
C) – Procedendo a apelação independente, o direito de indemnização reclamado em reconvenção.
A resposta positiva à 1ª questão ( objecto do recurso independente ) tem como consequência a confirmação da sentença recorrida, o que implica ficarem prejudicadas as demais questões ( ampliação do âmbito do recurso independente e recurso subordinado ).

2.2. – Os factos provados:
1) - A Autora é dona e legítima possuidora de um prédio urbano sito na Rua Alexandre Herculano, 299, Viseu, adquirido por escritura de compra e venda, outorgada em 26 de Janeiro de 1995, no 1º Cartório Notarial de Viseu.
2) - O prédio encontra-se inscrito na matriz predial urbana da freguesia do Coração de Jesus, sob o nº816; e descrito sob o nº89.646 na Conservatória do Registo Predial de Viseu.
3) - Entre Autora e Réus foi celebrado um contrato de arrendamento, destinado a habitação dos Réus, relativo ao primeiro andar do dito prédio, pelo prazo de um ano, sucessivamente renovável por iguais períodos e nas mesmas.
4) - O contrato prescrevia que a renda mensal a pagar pelos Réus à Autora era no montante de esc.2.700$00, e seria actualizada de acordo com os coeficientes legais, ascendendo actualmente a esc.17.090$00.
5) - D..., nascida em 1.08.66, é filha da Autora; e professora efectiva há vários anos.
6) - A Autora, por si e antepossuidores, há mais 20 e 30 anos usufrui o prédio referido em A), administrando-o, dando-o de arrendamento, recebendo as rendas e promovendo a execução de obras necessárias ou úteis, o que tudo vêm fazendo de forma reiterada e ininterrupta, à vista de toda a gente, como se de coisa própria se tratasse, convicta que exerce um verdadeiro direito de propriedade.
7) - D..., filha da Autora, é licenciada em Português/Francês e exerce funções de docente no quadro de professores efectivos da Escola Secundária Viriato em Viseu, com uma vida profissional organizada e situação económica autónoma e independente.
8) - Esta filha da Autora pretende manter a sua residência na cidade de Viseu, onde, além de dispor de emprego estável e seguro, reside toda a sua família, em especial, a sua mãe, os seus irmãos e sobrinhos.
9) - A referida D.. não tem casa própria ou arrendada para a sua habitação na cidade de Viseu, circunstância pela qual continua a residir, por mera tolerância, em casa da sua mãe.
10) - A Autora é proprietária do prédio referido em A) há mais de cinco anos.
11) - A filha D... não possui casa própria ou arrendada, há mais de um ano, na cidade de Viseu.
12) - Os Réus gozam o locado pelo menos desde 1.04.77, o que desde então fazem na qualidade de arrendatários.
13) - A referida D... é solteira e sempre viveu e conviveu em economia comum com os pais.
14) - Desde há vários anos a Autora e sua filha D.... habitam juntamente o 2º andar do prédio, no qual se integra a fracção arrendada aos Réus, o que fazem com permanência desde o ano de 1990.
15) - O referido 2º andar é amplo, sendo composto por 3 quartos, uma pequena sala de visitas junto à cozinha, uma sala de jantar, duas casas de banho e duas despensas.
16) - Os ditos compartimentos do 2º andar têm áreas úteis não concretamente apuradas e têm permitido uma convivência e relacionamento da referida D..., antes com os pais, e recentemente só com a mãe, por esta se quedar viúva.
17) - Entre os membros da família havia uma convivência em perfeita harmonia e entreajuda mútuas, não havendo lugar a qualquer colisão com a privacidade de cada elemento.
18) - A filha D... manteve sempre no andar, enquanto estudante, os seus próprios espaços e locais, para guardar os haveres pessoais e profissionais, sem que houvesse qualquer intromissão na sua vida privada e na vida familiar dos seus pais.
19) - A filha da Autora, D..., já com o actual estatuto profissional de professora, sempre beneficiou na casa dos pais de quarto, sala e outros espaços compatíveis com a sua situação pessoal e profissional, neles organizando os seus haveres, livros e mobiliário, como sempre recebeu nessa casa os seus colegas e amigos.
20) - A referida D... reside no 2º andar com a Autora, sua mãe, onde ambas mantêm a sua habitação.
21) - A actividade de professora exercida pela filha da Autora exige um trabalho complementar que é realizado em casa e que se traduz, além do mais, na preparação das aulas, organização dos testes e demais material pedagógico a fornecer aos alunos.
22) - A filha da Autora, D..., necessita de se reunir e reúne com os colegas de trabalho que leccionam a mesma disciplina para preparar o material didáctico indispensável à actividade de docente.
23) - Para o exercício da actividade de docente nomeadamente para o regular desempenho dos trabalhos referidos em FF) é indispensável ter um computador, uma biblioteca e um espaço tranquilo com as mínimas condições de trabalho exigíveis.
24) - A Autora é viúva e tem, além da dita D... , dois outros filhos e três netos.
25) - Os seus filhos e respectivos cônjuges trabalham.
26) - Entre o regresso das aulas e o final da tarde, os netos passam diariamente o tempo com a Autora, sua avó, nomeadamente em casa desta, onde tomam refeições designadamente o almoço e/ou lanche.
27) - Em data indeterminada dos anos de 1999 e 2000, os Reús executaram as seguintes obras no arrendado: reparação de estuques, tapamento de rachas e fissuras nas paredes interiores, pintura interior do arrendado, no valor não concretamente apurado; substituição do pavimento em parte do interior do arrendado, aplicando “parquet” novo, no valor não concretamente apurado; reparação de estores em número e valor não concretamente apurado; e colocação de gradeamento nas janelas posteriores e de duas portadas de segurança nas traseiras, no valor não concretamente apurado.
28) - As obras referidas em LL) têm hoje valor não concretamente apurado.
29) - A referida substituição do pavimento deveu-se a uma inundação ocorrida no interior do arrendado no ano de 1999, por causa de uma ruptura verificada numa máquina de lavar quando os Reús se encontravam ausentes para férias.
30) - A Autora comunicou expressamente ao Réu que não autorizava a colocação das grades referidas em LL), mas, apesar disso e sem qualquer espécie de consentimento por parte da Autora, os Réus levaram a cabo a colocação daquelas.
31) - A Autora nasceu em 15.01.933 e encontra-se viúva desde 26.11.78 (certidão de fls.212).

2.3. – De Direito:
A questão suscitada no recurso independente consiste apenas em saber se o direito de denúncia do contrato de arrendamento para habitação do descendente em 1º grau, depende da verificação do requisito da alínea b) do nº1 do art.71 do RAU tanto em relação ao senhorio, como ao descendente.
A sentença recorrida, ao analisar os pressupostos do direito de denúncia, com notável rigor metodológico, depois de afirmar a necessidade real e efectiva da habitação da filha da Autora, e da verificação do requisito da alínea a) do nº1 do art.71 do RAU, concluiu que o senhorio pretendendo exercer o direito de denúncia do arrendamento com o fundamento de necessitar do local arrendado para habitação de um seu filho, deve, além do mais, alegar e provar que, tanto ele (senhorio), como esse seu filho, não têm, há mais de um ano, na respectiva área, casa própria ou arrendada que satisfaça as necessidades de habitação daquele descendente.
Como a Autora apenas alegou e provou tal requisito relativamente à filha, mas não tendo alegado que ela (senhoria) não tem, há mais de um ano, outra casa própria ou arrendada que satisfaça as necessidades de habitação da sua filha, facto constitutivo do direito ( art.342 nº1 do CC ) julgou a acção improcedente.
Em termos argumentativos, acrescentou-se que nem mesmo o aditado nº3 do art.71, na redacção do DL nº329-B/2000, de 22/10, veio dispensar no direito de denúncia para habitação do descendente a verificação do requisito previsto na alínea b) do nº1 relativamente ao senhorio, antes impor essa exigência também para o descendente, em face das dúvidas de interpretação que a redacção primitiva suscitou na doutrina e jurisprudência.
Em contrapartida, sustenta a apelante que esse requisito apenas é exigível para a filha ( beneficiária da denúncia ), como resulta da redacção da alínea b) do nº1 do art.71 do RAU, face à conjunção alternativa ( “ que satisfaça as necessidades de habitação própria ou dos seus descendentes em 1º grau” ) e do nº3 do mesmo preceito ( aditado pelo DL nº329-B/2000 de 22/12 ).
A possibilidade de denúncia do contrato de arrendamento por necessidade de habitação dos descendentes em 1º grau do senhorio foi pela primeira vez introduzida no art.69 nº1 a) do RAU, na versão primitiva aprovada pelo DL nº321/90 de 15/10.
O Tribunal Constitucional, por acórdão de 19/2/99 ( DR Série I-A de 19/2/99) declarou a inconstitucionalidade ( orgânica ) da norma, com força obrigatória geral, na parte respeitante aos descendentes em 1º grau.
Uma vez obtida a competente autorização legislativa pela Lei nº16/2000 de 8/8 ( art.2º alínea m) ), o DL nº329-B/2000 de 22/10 alterou a alínea a) do nº1 do art.69 do RAU, restabelecendo a possibilidade do senhorio denunciar o contrato para o termo do prazo ou da sua renovação quando necessite do prédio para sua habitação ou dos seus descendentes em 1º grau.
Segundo determinada orientação jurisprudencial, esta faculdade não consubstancia um direito novo, mas um “mero reflexo ou subalterno desenvolvimento do já anteriormente reconhecido direito de denúncia do senhorio para habitação própria” ( cf., por ex., Ac RC de 29/9/92, C.J. ano XVII, tomo IV, pág.77, Ac RP de 6/1/94, de 24/2/94, Ac RL de 28/5/98, disponíveis em www dgsi.pt, Ac RP de 11/6/96, C.J. ano XXI, tomo III, pág.212 ).
Antes do aditamento do nº3 do art.71 do RAU, pelo DL nº329-B/2000, discutia-se se o requisito da alínea b) do nº1 era também aplicável à pessoa do descendente.
A este propósito, refere JANUÁRIO GOMES:
“ A lei é também omissa na enunciação dos requisitos relativos à pessoa do descendente em 1º grau. As regras do art.10º do Código Civil parecem impor a solução de o requisito da alínea b) do art.71 – que como vimos, tem juntamente com a alínea a), aplicação ao caso, relativamente à pessoa do senhorio – deve ser também formulado relativamente à pessoa do descendente: assim, o senhorio não poderá denunciar o contrato de arrendamento com fundamento em necessidade do prédio para habitação do descendente em 1º grau, se este tiver na área das comarcas de Lisboa ou do Porto e suas limítrofes ou na respectiva localidade quanto ao resto do País, casa própria ou arrendada que satisfaça as necessidades de habitação própria ou dos seus descendentes em 1º grau “ ( Arrendamento Para Habitação, pág.281 ).
A jurisprudencial prevalecente entendia que em caso de denúncia para habitação do descendente em 1º grau impunha-se a alegação e prova dos dois requisitos relativos à pessoa do senhorio ( os da alínea a) e b), este com a adaptação da sua parte final ), como ainda alegar e provar o requisito relativo à pessoa do descendente, omitido no texto legal ( cf., por ex., Ac RP de 20/9/94 e de 15/11/94, C.J. ano XIX, tomo IV, pág.190 e tomo V, pág.212, de 14/3/95, 12/10/95, 21/3/06, 14/11/96, 24/4/97, disponíveis em www dgsi.pt, Ac da RL de 28/11/96, C.J. ano XXI, tomo V, pág.115, de 22/2/96, de 16/10/97, de 27/1/98, em www dgsi.pt ).
Como se justificou no Ac da RP de 20/9/94 ( C.J. ano XIX, tomo IV, pág.190 ), apelando ao espírito da lei, “ é justo que o inquilino só seja desalojado – para além das limitações resultantes do art.107 do RAU – quando o senhorio necessite do local arrendado para aí instalar a sua habitação ou a do seu filho, quando o senhorio não tenha outra casa própria ou arrendada que satisfaça as suas necessidades de habitação própria e, no segundo caso, nem ele, nem esse filho disponha de outra casa própria ou arrendada que satisfaça as necessidades do descendente considerado “.
Apenas PINTO FURTADO ( Manual do Arrendamento Urbano, 1996, pág.753 ) ao criticar este acórdão parece admitir a verificação alternativa do requisito.
Entretanto, o DL nº329-B/2000 aditou ao art.71 o nº3 com a seguinte redacção:
“ O direito de denúncia para habitação do descendente está sujeito à verificação do requisito previsto na alínea a) do nº1 relativamente ao senhorio e do da alínea b) do mesmo número para o descendente “.
O preâmbulo do diploma não apresenta as razões deste aditamento, mas não cremos que ela possa ter o alcance que lhe confere a apelante.
Com efeito, o legislador não pretendeu regular autonomamente nesta norma o direito de denúncia do contrato de arrendamento para habitação do descendente em 1º grau, pois se assim fosse, além do mais, deixaria de fora o macro-requisito da necessidade real e efectiva do prédio para a habitação ( art.69 nº1 a) ) e não teria aplicação o nº2 do art.71, visto não lhes fazer qualquer referência, o que redundaria numa contradição valorativa, na medida em que o regime de denúncia para habitação do descendente seria menos exigente do que a denúncia para a habitação do senhorio.
Tanto a finalidade do instituto da denúncia, que visa tutelar a carência habitacional do senhorio ou do seu descendente em 1º grau, como a sua evolução histórica, permitem concluir que os requisitos do art.71 do RAU, tal como os do antecedente art.1098 do CC, são adicionais ou complementares da provada necessidade real e efectiva, e não meramente substitutivos ou exoneratórios do elemento base fundamental, pelo que se evidenciam como limitadores do exercício do direito de denúncia, reforçando a defesa do arrendatário contra possíveis abusos ( cf., por ex, ANTUNES VARELA, RLJ ano 118, pág.89 e segs. ).
Por outro lado, este aditamento só pode ser justificado perante a lacuna existente no texto legal e a interpretação teleológica leva a que o sentido seja o de exigir, agora positivamente, também para o descendente o requisito da alínea b), sem que afaste tal exigência para a pessoa do senhorio, pressuposto ( “ em relação a ele “) no nº1.do art.71.
Considerando a ratio legis, não faria sentido que estando em causa a afectação do locado às necessidades de habitação do descendente, não se exigisse a prova cumulativa de que, nem um, nem outro, não têm há mais de um ano, à data da propositura da acção, outra casa própria ou arrendada que satisfaça tais necessidades.
De outro modo, estar-se-ia a legitimar a denúncia, com inegáveis sacrifícios para o arrendatário, mesmo no caso de o senhorio ter um quarteirão de casas próprias devolutas que satisfizessem as necessidades habitacionais do seu descendente em 1º grau.
Acresce que, contrariamente à objecção da apelante, a disjuntiva da parte final da alínea b) do nº1 do art.71 apenas significa que, no caso de denúncia para habitação do descendente em 1º grau, a necessidade habitacional deve reportar-se à deste, por ser o beneficiário da denúncia, e não à do senhorio.
Neste contexto, da conjugação dos arts.69 nº1 a) e 71 nº1 a) e b) e nº3 do RAU, extrai-se que os pressupostos legais do direito de denúncia do contrato de arrendamento para habitação do descendente em 1º grau do senhorio, cujo ónus de alegação e prova incumbe ao autor ( art.342 nº1 do CC ) são os seguintes:
a) - Ter o descendente em 1º grau necessidade da casa para sua habitação;
b) - Ser o senhorio proprietário, comproprietário ou usufrutuário do prédio há mais de cinco anos ou, independentemente deste prazo, se o tiver adquirido por doação;
c) - Não ter o senhorio, há mais de um ano, na área das comarcas de Lisboa ou do Porto e suas limítrofes ou na respectiva localidade quanto ao resto do País casa própria ou arrendada que satisfaça as necessidades de habitação dos seus descendentes em 1º grau;
d) - Não ter o descendente em 1º grau, há mais de há mais de um ano, na área das comarcas de Lisboa ou do Porto e suas limítrofes ou na respectiva localidade quanto ao resto do País casa própria ou arrendada que satisfaça as suas necessidades de habitação.
Pois bem, afora a comprovação dos restantes requisitos, a verdade é que a Autora não alegou que ela (senhoria) não tivesse, há mais de um ano, outra casa própria ou arrendada apta a satisfazer as necessidades de habitação da sua filha, pelo que não demonstrando todos os pressupostos legais do direito de denúncia, a acção teria que sucumbir.
Em resumo, improcede a apelação independente, confirmando-se a muito bem elaborada sentença recorrida, ficando prejudicadas as demais questões suscitadas na ampliação do objecto do recurso independente, bem como o recurso subordinado.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar improcedente a apelação da Autora e confirmar a sentença recorrida.
2)
Declarar prejudicado o conhecimento da ampliação do objecto do recurso independente e o recurso subordinado dos Réus.

3)
Condenar a Autora/apelante nas custas.

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Coimbra, 5 de Julho de 2006.