Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
229/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: CRÉDITO LABORAL
HIPOTECA REGISTADA
CONCURSO DE GARANTIAS
Data do Acordão: 03/08/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TORRES NOVAS - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 12º, Nº 1, DA LEI Nº 17/86, DE 14/06 ; LEI Nº 96/2001, DE 20/08 ; ARTº 749º DO C. CIV. .
Sumário: I – As Leis nºs 17/86 e 96/2001 atribuem aos créditos dos trabalhadores, emergentes de contrato de trabalho, o privilégio mobiliário geral e o privilégio imobiliário geral .
II – Aos privilégios imobiliários gerais deve-se aplicar o regime estabelecido no C. Civ. para os privilégios mobiliários, isto é, o regime definido no artº 749º do C. Civ..

III - Face ao estatuído no artº 686º, nº 1, do C. Civ. sobre a garantia resultante de hipoteca registada, deve entender-se que o credor hipotecário tem o direito a ser pago pelo valor da coisa objecto da garantia com preferência sobre os demais credores, desde que estes não gozem de qualquer privilégio especial ou de prioridade de registo, donde aquele ter prioridade no pagamento em relação aos créditos dos trabalhadores, com garantia por privilégio imobiliário geral .

Decisão Texto Integral: 16


Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório:
1-1- Decretada a falência da empresa “A...” em processo que correu seus termos do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Torres Novas, foi aberto concurso de credores, fixando-se o prazo de reclamação em 30 dias.
1-2- O processo seguiu os seus regulares termos até que foi proferido despacho saneador em que, para além do mais, foi decidido:
a) Não admitir, por intempestiva, a reclamação de créditos deduzida por “B....”;
b) Encontrar-se devidamente documentado o crédito reclamado pelo B.C.P. a fls. 918 e ss., cifrando-se em 230.438.949$00, sendo que, desse montante, 195.240.834$00 se encontravam garantidos por hipoteca sobre os imóveis da falida e por penhor mercantil sobre os bens móveis, conforme consta dos títulos de penhor e certidões de registo predial juntas aos autos;
c) Considerar que a importância reclamada pelo IAPMEI é de 358.356.812$00, sendo certo que tendo este Instituto confessado ter recebido recentemente, por conta daquele valor, da C.G.D., a quantia de 753.628,96 euros ( cfr. fls. 1933 e 1940 ) à quantia reclamada em 68) deve subtrair-se esse valor, concluindo-se assim a existência de um crédito sobrante no valor de 1.033.847,28 euros;
d) Considerar em relação ao reclamante José Ruivo Simões que é credor (apenas ) da importância de 5.423.758$00, devida a título de remuneração, quantia que se julgou verificada, concluindo-se que essa importância tem o carácter de retribuição salarial;
e) Considerar a “Caixa Geral de Depósitos, S.A.”, por ter procedido ao pagamento de 753.628,96 euros ao IAPMEI, por conta da quantia por este reclamada e de harmonia com o disposto no art. 592º do CC, sub-rogada nessa quantia;
f) Considerar os demais créditos não impugnados ( excepto o reclamado pela “B...”) todos verificados;
g) Consignar que os créditos reclamados por “B.P.I., S.A.”, “B.C.P., S.A.”, “Banco Comercial de Macau, S.A.” e “Banco B.E.S.”, derivam da constituição deste bancos em Sindicato Bancário, sendo que a garantia existente sobre os créditos reclamados é definida nos exactos termos constantes no registo e nos títulos de penhor mercantil.
1-3- Julgaram-se depois os créditos indicados em b), c), d), e) e f) como verificados.
E foram esses créditos graduados da seguinte forma:
Relativamente ao produto da venda resultante dos bens imóveis:
1º Os créditos dos trabalhadores ( com a alteração resultante da verificação do crédito reclamado por José Simões);
2º Os créditos do Sindicato Bancário constituído pelos Bancos “B.P.I., S.A.”, “B.C.P., S.A.”, “Banco Comercial de Macau, S.A.” e “Banco B.E.S.” ( com a alteração resultante da verificação relativamente ao crédito reclamado pelo B.C.P.)
3º Todos os demais créditos ( com as alterações resultantes da verificação).
Relativamente ao produto da venda resultante dos bens móveis objecto dos penhores mercantis:
1º Os créditos dos trabalhadores ( com a alteração resultante da verificação do crédito reclamado por José Simões );
2º Os créditos do Sindicato Bancário constituído pelos Bancos “B.P.I., S.A.”, “B.C.P., S.A.”, “Banco Comercial de Macau, S.A.” e “Banco B.E.S.” ( com a alteração resultante da verificação relativamente ao crédito reclamado pelo B.C.P.);
3º Todos os demais créditos.
Relativamente a todos os bens móveis que restem (ou produto da venda dos mesmos), não objecto de penhor:
1º Os créditos dos trabalhadores;
2º Todos os demais créditos.
Mais se decidiu que as custas do processo, nelas se incluindo a remuneração do Sr. Liquidatário Judicial, sairiam precipuas da massa ( art. 208º do C.P.E.R.E.F.).
1-4- Não se conformando com esta sentença de graduação, dela vieram recorrer o Banco BPI, S.A., Banco Expresso Atlântico, S.A., Banco Comercial Português, S.A., e Blocotelha Ldª, recursos que foram admitidos como apelação e com efeito devolutivo.
O recurso interposto pela Blocotelha Ldª, foi, porém, declarado deserto por falta de alegações ( fls. 2171 ).
1-5- Os outros recorrentes alegaram, tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões úteis:
A) Recorrente Banco BPI:
1ª- A sentença de graduação de créditos recorrida, graduou incorrectamente os créditos dos trabalhadores, ao considerá-los com o produto da venda dos bens imóveis, em detrimento dos créditos garantidos por hipotecas incidentes sobre imóveis.
2ª- O art. 12º da Lei 17/86, interpretado no sentido de que o privilégio imobiliário nele conferido, prefere à hipoteca, nos termos do art. 751º do C.Civil, é inconstitucional, por violação do princípio da confiança consignado no art. 2º da CRP, tendo sido julgado como tal pelo Tribunal Constitucional o preceito constante do art. 11º do DL 103/80 de 9 de Maio, no Acórdão 160/2000, de 22/3, 3ª Secção, proc. 843/98 publicado no DR II Série de 10/10/2000.
3ª- Tal inconstitucionalidade resulta do facto de a referida norma instituir um ónus oculto que lesa a fiabilidade do registo predial, afectando as legítimas expectativas dos credores hipotecários.
4ª- Tendo em consideração que a norma sobre que assentou a decisão recorrida é inconstitucional, a sua aplicação não é possível, pelo que deve ser revogada a graduação por forma a que se gradue os créditos garantidos por hipoteca antes dos créditos dos ex-trabalhadores da requerida, no que ao produto da venda dos imóveis onerados por hipoteca diz respeito.
B) Recorrentes Bancos Expresso Atlântico e Comercial Português:
1ª- Na graduação, os créditos garantidos por hipoteca anteriormente registada, devem prevalecer sobre os créditos emergentes de contrato individual de trabalho que beneficiam de privilégio imobiliário geral consignado no art. 12º al. b) do Dec-Lei 17/86, sob pena de violação dos princípios constitucionais da confiança e da protecção e segurança jurídicas, insítos no art. 2º da CRP.
2ª- Com tal fundamento, foram objecto de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, os correspondentes preceitos do art. 104º do C. Imposto Sobre o Rendimento de Pessoas Singulares, do art. 2º do Dec-Lei 512/76 de 3/7 e art. 11º do Dec-Lei 103/80 de 9 de Maio, pelos Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 362/2002 e 363/2002, publicados no D.R. I Série A de 16-10-2002.
3ª- Na graduação respeitante ao produto da venda de bens móveis, os créditos garantidos por penhor devem prevalecer sobre os créditos que, nos termos do art. 12º nº 1 al. a) do Dec-Lei 17/86 gozem de privilégio mobiliário geral, atento o prescrito no art. 749º do C.Civil, segundo o qual o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos oponíveis.
4ª- O privilégio geral, desprovido de sequela, não pode prevalecer sobre o direito real, a não ser a dano do princípio da confiança, sobretudo nas circunstâncias em que o direito rela é anterior ao nascimento, imprevisível, do privilégio geral, dano que, por implicar lesão desproporcionada do comércio jurídico, é intolerável.
5ª- A sentença recorrida decidiu em oposição ao disposto nos arts. 2º e 204º da CRP e 749º do C.Civil.
1-6- O M.P. respondeu às alegações de recurso dos referenciados apelantes, sustentando que os recursos devem proceder e ser alterada a graduação de créditos no que toca aos créditos dos recorrentes garantidos por hipoteca que devem prevalecer sobre os créditos dos trabalhadores e assim, ascender ao 1º lugar, devendo-se manter, no mais, o decidido.
1-7- Os reclamantes Nuno Miguel Pereira da Silva, Fernando Jassy Duarte Rodrigues, José Mário de Almeida Moreira Meireles, Paula Cristina Liberato Lopes e Simão António Piedade Sousa ( ex-trabalhadores da falida ), responderam às alegações dos recorrente, concluindo pela manutenção da sentença de graduação de créditos recorrida.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Uma vez que o âmbito objectivos dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas ( arts. 690º nº1 e 684º nº 3 do C.P.Civil ).
E estas questões reduzem-se a duas: A primeira será a de se saber se na graduação, e em relação ao produto da venda resultante dos bens imóveis, os créditos garantidos por hipoteca anteriormente registada, devem ou não prevalecer sobre os créditos ( de trabalhadores ) emergentes de contrato individual de trabalho. A segunda consistirá em saber-se se, na graduação e em relação ao produto da venda de bens móveis, os créditos garantidos por penhor devem ou não prevalecer sobre os créditos emergentes de contrato individual de trabalho.
Vejamos:
Na douta sentença recorrida e para o que importa, considerou-se que “os créditos emergentes de contrato individual de trabalho gozam de privilégio mobiliário e imobiliário geral nos termos do art. l2°, do DL n°17/86, de 14/6, na redacção conferida pela Lei n.º 96/2001, de 20.08 (de aplicação imediata e abrangendo os processos pendentes) e que, na prática, se traduz em serem os primeiros credores a obter o pagamento pelo produto da massa falida”. Por isso, foram graduados em primeiro lugar, em relação às duas situações.
É precisamente em relação a esta circunstância de serem esses créditos graduados em primeiro lugar, que os recorrentes se insurgem.
Vejamos:
Estabelece o art. 12º nº 1 da Lei 17/86 de 14/6 ( na redacção introduzida pela Lei 96/2001 de 20/8 ):
Os créditos emergentes do contrato individual de trabalho regulados pela presente lei gozam dos seguintes privilégios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário geral.
2- Os privilégios dos créditos referidos no nº 1, ainda que resultantes de retribuição em falta antes da entrada em vigor da presente lei, gozam de preferência nos termos da número seguinte, incluindo os créditos respeitantes a despesas de justiça.
3- A graduação dos créditos far-se-á pela ordem seguinte:
a) Quanto ao privilégio mobiliário geral, antes dos créditos referidos no nº 1 do art. 747º do Código Civil, mas pela ordem dos créditos enunciados no artigo 737º do mesmo Código;
b) Quanto ao privilégio imobiliário geral, antes dos créditos referidos no art. 748º do Código Civil e ainda dos créditos de contribuição devidas à Segurança Social”.
Também a referida Lei 96/2001 de 20/8, estabelece, em relação aos créditos dos trabalhadores exceptuados pela Lei 17/86 de 14/6:
1- Os créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação não abrangidos pela Lei nº 17/86 de 14 de Junho, gozam dos seguintes privilégios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário geral.
2-...
3- Os privilégios dos créditos referidos no nº 1, ainda que preexistentes à entrada em vigor da presente lei, gozam de preferência nos termos da número seguinte, sem prejuízo, contudo, dos créditos emergentes da Lei nº 17/86 de 14 de Junho e dos privilégios anteriormente constituídos com direito a ser graduados antes da entrada em vigor da presente lei.
4- A graduação dos créditos far-se-á pela ordem seguinte:
a) Quanto ao privilégio mobiliário geral, antes dos créditos referidos no nº 1 do art. 747º do Código Civil, mas pela ordem dos créditos enunciados no artigo 737º do mesmo Código;
b) Quanto ao privilégio imobiliário geral, antes dos créditos referidos no art. 748º do Código Civil e ainda dos créditos devidas à segurança social”.
Quer isto dizer que esta lei ( 96/2001 ), que se aplica aos créditos dos trabalhadores não abrangidos pela Lei 17/86 ( sendo que o âmbito de aplicação deste normativo diz respeito às entidades cujos trabalhadores que estejam numa situação de salários em atraso ) estabelece um regime semelhante ao estabelecido por esta Lei (17/86).
Para o que aqui importa, as leis atribuem aos créditos dos trabalhadores, emergentes de contrato de trabalho, o privilégio mobiliário geral e o privilégio imobiliário geral.
Nos termos do art. 733º do C.Civil, “ privilégio creditório é a faculdade, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente de registo, de serem pagos com preferência a outros”.
Significa isto que a lei atribui a certos credores a possibilidade de serem pagos prevalentemente aos outros, em razão do seu crédito estar especialmente relacionado com determinados bens do devedor.
Os privilégios creditórios, são de duas espécies, os mobiliários e os imobiliários, sendo que os primeiros são gerais, quando abrangem o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou de acto equivalente e especiais quando compreendem só o valor do determinados bens móveis. Os segundos são sempre especiais ( art. 735º nºs 1, 2 e 3 do C.Civil ).
De sublinhar aqui que, pese embora, esta disposição designe que os privilégios imobiliários são sempre especiais, o certo é que as leis acima referenciadas ( e outras como o Dec-Lei 512/76 de 16/6 e 103/80 de 9/5, publicadas posteriormente ao C.Civil ), vieram estabelecer que os mencionados créditos dos trabalhadores gozam de privilégio imobiliário geral11 O Decs-Lei 512/76 e 103/80 de 9/5 estabeleceram o privilégio imobiliário geral, em relação aos créditos da Segurança Social .
O regime jurídico dos privilégios imobiliários ( especiais ) está definido no C.Civil, concretamente nos arts. 743º e segs.. Porém os diplomas que estabeleceram os privilégios imobiliários gerais não regulam o respectivo regime jurídico. Daí que a doutrina, concretamente ( entre outros ) os Profs. Almeida Costa e Menezes Cordeiro, entendam que aos privilégios imobiliários gerais, se deve aplicar o regime estabelecido no Código Civil, para os privilégios mobiliários, isto é, o regime definido no art. 749º do diploma ( in Direito das Obrigações, 5ª edição pág. 824 e Direito das Obrigações, 2º Vol. págs.500 e 501, respectivamente ). Como lapidarmente diz o Prof. Menezes Cordeiro “ a figura do privilégio imobiliário geral foi introduzida na nossa ordem jurídica pelo Dec-Lei 512/75 de 16 de Junho, em favor de instituições de previdência. Este diploma não indica o regime concreto dos privilégios imobiliários gerais que veio criar. Pensamos, no entanto, que o seu regime se deve aproximar dos privilégios gerais (mobiliários ) que consta do Código Civil. Isto porque, dada a sua generalidade, não são direitos reais de garantia - não incidem sobre coisas corpóreas certas e determinadas - nem sequer, verdadeiros direitos subjectivos, mas tão só preferências gerais anómalas. Assim sendo, deve ser-lhe aplicado o regime constante do art. 749º do Cód. Civil, nomeadamente, eles não são oponíveis a quaisquer direitos reais anteriores ou posteriores aos débitos garantidos”.
Quer isto dizer que se deve aplicar aos privilégios imobiliários gerais, o regime definido no art. 749º do C.Civil, afastando-se assim o regime estabelecido no art. 751º em relação aos privilégios imobiliários especiais.
É a esta posição que tem vindo a aderir a mais recente jurisprudência dos nossos tribunais superiores ( entre outros, Acs. do STJ de 24-9-02 in Col. Jur. 2002, Tomo III, pág. 54 a 57, de 5-2-02 in Col. Jur. 2002, Tomo I, pág. 71, de 3-4- 2003 in www. djsi.pt/jstj e da Rel. do Porto de 26-1-04 in Col. Jur. 2004, Tomo I, pág. 171 ).
Nos termos do dito art. 749º “o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente”. Ou seja, e para o que aqui importa, o privilégio (imobiliário geral ) não poderá ser oponível a qualquer direito real anterior ou posterior ao débito garantido.
Os créditos dos recorrentes estão garantidos por hipoteca registada.
Nos termos do art. 686º nº 1 “a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas, pertencentes o devedor ou terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozam de privilégio especial ou de prioridade de registo”. Isto é, o credor hipotecário tem o direito a ser pago pelo valor da coisa objecto da garantia, com preferência sobre os demais credores ( desde que estes não gozem de qualquer privilégio especial ou de prioridade de registo ).
Relacionando o dispositivo desta norma, com o regime do art. 749º do C.Civil, temos que concluir que os créditos dos bancos recorrentes, garantidos por hipoteca anteriormente registada, têm prioridade no pagamento em relação aos créditos dos trabalhadores, garantido por privilégio imobiliário geral.
Neste sentido vai também a orientação do Tribunal Constitucional tomada no acórdão 160/000 de 22-3-00 ( DR. II Série de 10-10-00 ) que considerou que “o princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático ( a que se refere o art. 2º da Constituição ) postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e relevantemente contar ... A esta luz pergunta-se ... que segurança jurídica constitucionalmente relevante, terá o cidadão, perante uma interpretação normativa que lhe neutraliza a garantia real ( hipoteca ) por si registada, independentemente de o ter sido em data posterior ao início da vigência das normas em causa”. Depois de outra argumentação, conclui que “a interpretação normativa em sindicância, viola o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no art. 2º da Constituição”. Assim julgou inconstitucionais as constantes dos arts. 2º do Dec-Lei 512/76 e 11º do Dec-Lei 103/80 de 9/5, interpretadas no sentido que o privilégio imobiliário geral neles conferida, prefere à hipoteca, nos termos do art. 751º do C.Civil. Posteriormente o tribunal manteve a mesma posição designadamente nos acórdãos 354/00 de 5-7-00, 109/02 de 5-3-02, 387/02 de 2-10-02, todos acessíveis na internet através do sítio «www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos». De salientar ainda que o acórdão 362/02 do mesmo tribunal, em relação ao art. 104º do Código do Imposto sobre os Rendimentos de Pessoas Singulares ( da primitiva versão, disposição agora contida no art. 111º do mesmo diploma ) que confere à Fazenda Nacional, igualmente, um privilégio imobiliário geral, e com o mesmo género de argumentação, considerou inconstitucional, com força obrigatória geral, tal norma, tendo exarado: “Nestes termos o Tribunal Constitucional decide declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do art. 2º da Constituição, da norma constante, na versão primitiva, do artigo 104º do Código do Imposto sobre os Rendimentos de Pessoas Singulares, aprovado pelo Dec-Lei nº 442-A/88, de 30 de Novembro, e, hoje, na numeração resultante do Dec-Lei nº 198/2001 de 3 de Julho, do seu art.111º, na interpretação segundo o qual o privilégio imobiliário geral nele conferido à Fazenda Nacional prefere hipoteca, nos termos do art. 751º do Código Civil” ( in mesmo sítio ).
Nesta conformidade, já poderemos responder à primeira questão acima colocada, afirmando que, em relação ao produto da venda resultante dos bens imóveis, os créditos ( dos bancos recorrentes ) garantidos por hipoteca anteriormente registada, devem prevalecer sobre os créditos dos trabalhadores emergentes de contrato individual de trabalho ( garantido por privilégio imobiliário geral ), pelo que na respectiva graduação devem ficar ordenados à frente destes créditos.
Em relação à segunda questão acima figurada ( que recorde-se, consiste em saber-se se, na graduação e em relação ao produto da venda de bens móveis, os créditos garantidos por penhor devem ou não prevalecer sobre os créditos emergentes de contrato individual de trabalho ), adiantaremos desde já que a resposta não poderá deixar, também aqui, de ser positiva.
Já se viu que os créditos dos trabalhadores gozam, nos termos das disposições salientadas, de privilégio mobiliário. Já se viu também que esses créditos serão graduados antes dos créditos referidos no nº 1 do art. 747º do Código Civil, mas pela ordem dos créditos enunciados no artigo 737º do mesmo Código. Isto é, segundo esta disposição os créditos serão graduados depois dos créditos referentes aos mencionados nas als. a), b) e c) da disposição ( al. d) do nº 1 do artigo ).
Sucede porém que, como já dissemos, nos termos do art. 749º nº 1 do C.Civil, o privilégio mobiliário geral, não poderá ser oponível a qualquer direito real anterior ou posterior ao débito garantido.
Como doutrinam os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela em relação a esta disposição ( in C.Civil Anotado, Vol. I, págs.769 e 770 ) “os direitos oponíveis ao credor exequente são aquelas que não podem ser atingidas pela penhora. Neles estão compreendidos não só os direitos reais de gozo que terceiros tenham adquirido, como os próprios direitos reais de garantia que o devedor haja entretanto constituído
Nos termos do art. 666º nº 1 do C.Civil “ o penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como os juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor da coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca, pertencente ao devedor ou a terceiro”.
Quer dizer e para o que aqui importa, o penhor confere a garantia de que o respectivo crédito deve ser satisfeito com preferência sobre os demais, em relação ao valor da coisa empenhada. Isto é, face ao art. 749º nº 1, o privilégio mobiliário geral deve ceder face à garantia derivada do penhor.
Em conclusão, pese embora a lei atribua aos trabalhadores o privilégio mobiliário geral, haverá que respeitar o disposto neste nº 1 do art. 749º, graduando-se primeiro o crédito pignoratício seguindo-se-lhe depois os créditos dos trabalhadores (neste sentido decidiu o Ac. do STJ de 3-4-2003, já acima referenciado - vide in www. djsi.pt/jstj - ).
Significa isto que também aqui a apelação será procedente.
Para terminar e respondendo à questão colocada pelos reclamantes indicados acima sob o nº 1-7 nas suas contra-alegações, diremos que o disposto no art. 377º do C. do Trabalho ( que atribuiu aos trabalhadores o privilégio imobiliário especial sobre os imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade ), não tem aplicação no caso vertente pela razão de quando essa norma entrou em vigor ( em 1-12-2003 ) já a falência da requerida havia sido decretada ( foi-o em 23-1-01 ). Assim, produzindo-se os direitos decorrentes da falência nesse momento, todas as ( eventuais ) alterações legais posteriores serão irrelevantes ( art. 12º nº 1 do C.Civil ).
Mesmo que assim não fosse, somos em crer, pelas razões ditas, que essa norma será inconstitucional.
III- Decisão:
Por tudo o exposto, dá-se provimento à apelação e em consequência, decide-se graduar os créditos da seguinte forma:
Relativamente ao produto da venda resultante dos bens imóveis:
1º Os créditos do Sindicato Bancário constituído pelos Bancos “B.P.I., S.A.”, “B.C.P., S.A.”, “Banco Comercial de Macau, S.A.” e “Banco B.E.S.” ( com a alteração resultante da verificação relativamente ao crédito reclamado pelo B.C.P.)
2º Os créditos dos trabalhadores ( com a alteração resultante da verificação do crédito reclamado por José Simões);
3º Todos os demais créditos ( com as alterações resultantes da verificação).
Relativamente ao produto da venda resultante dos bens móveis objecto dos penhores mercantis:
1º Os créditos do Sindicato Bancário constituído pelos Bancos “B.P.I., S.A.”, “B.C.P., S.A.”, “Banco Comercial de Macau, S.A.” e “Banco B.E.S.” ( com a alteração resultante da verificação relativamente ao crédito reclamado pelo B.C.P.)
2º- Os créditos dos trabalhadores ( com a alteração resultante da verificação do crédito reclamado por José Simões );
3º Todos os demais créditos.
No mais mantém-se a sentença recorrida.
Custas pela massa falida.