Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3764/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: SERRA LEITÃO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
TRABALHO POR CONTA PRÓPRIA
SEGURO DE ACIDENTES DE TRABALHO
Data do Acordão: 02/10/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE VISEU - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 3º DA LEI Nº 100/97, DE 13/9 . DL 159/99, DE 11/5 .
Sumário: I – Com a nova lei dos acidentes de trabalho – Lei nº 100/97, de 13/9 - o legislador veio contemplar a reparação infortunística dos trabalhadores independentes, em termos idênticosao que acontece com os trabalhadores por conta de outrem .
II – Pelo DL 159/99, de 11/5, veio a operar-se a distinção entre trabalhadores independentes cuja produção se destina exclusivamente ao consumo próprio e da sua família, e trabalhadores independentes que laboram para outrem, sem subordinação jurídica .
III – Em qualquer dos casos, a existência de seguro de acidentes de trabalho não torna exigível que a actividade prestada seja remunerada nem que o trabalhador labore por conta de outrem .
Decisão Texto Integral: Acordam os Juizes da Secção Social do T. Relação de Coimbra
A..., residente no lugar de Santa Cristina, freguesia de Espinho, concelho de Mortágua, instaurou acção especial emergente de acidente de trabalho contra: “B...”.
Alegando em resumo,
- é empresário em nome individual, e nessa qualidade celebrou com a ré um contrato de seguro de acidentes de trabalho de trabalhador independente.
- No dia 02/05/2002, quando trabalhava por conta própria na sua casa, sofreu um acidente, do qual resultaram lesões que lhe determinaram incapacidade temporária, tendo ficado afectado com incapacidade permanente parcial.
Consequentemente pediu a condenação na seguradora no pagamento de:
- Pensão anual e vitalícia de 1.430,33 euros;
- 1.919,73 euros, a título de indemnização pelos períodos de ITA;
- 15 euros, a título de despesas de transportes.
A ré contestou, sustentando que sobre ela não recai a obrigação de indemnizar, pelo facto de, aquando do acidente, o A. não auferir contrapartida remuneratória pelo seu trabalho, sendo este ocasional e de curta duração.
Prosseguindo o processo seus regulares termos veio a final a ser proferida decisão, que considerando a acção procedente, condenou a Ré a pagar ao A:
- o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de € 1430, 32 devida desde 29/8/02;
- a quantia de € 1. 668, 42 a título de indemnização pelos períodos de ITA, acrescida de juros de mora, à taxa legal
- a quantia de € 284, 20 a título de despesas com medicamentos e transportes, acrescida de juros moratórios legais, devidos desde 3/12/02.
Discordando apelou a Ré, alegando e concluindo:
1- O sinistrado é um empresário em nome individual, trabalhando por conta própria na actividade de construção civil em vários locais de trabalho
2- Aquando do acidente dos autos, o sinistrado trabalhava na sua própria casa( residência) e a aplicar uma pedra de cantaria na fachada da porta do lado esquerdo;
3- Encontrava-se a trabalhar sozinho em casa que é sua propriedade e que constitui a sua morada de família, sem qualquer pessoal a auxiliar;
4- Entre recorrido e recorrente vigorava um contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho- Trabalhador Independente;
5- O trabalhador prestava serviço para si próprio
6- Se o trabalhador fosse trabalhador por conta de outrem e sofresse o acidente dos autos, não estaria garantido pelo seguro;
7- Igualmente não prestando o trabalhador serviço para outrem, não se encontra garantido pelo seguro de Trabalhadores Independentes;
8- No espírito da lei, o seguro obrigatório de trabalhadores independentes, visa garantir os acidentes de trabalho quando resulta de trabalhos prestados sem subordinação jurídica;
9- O beneficiário do trabalho ou resultado do trabalhador independente, terá de ser pessoa distinta do próprio trabalhador ou prestador de serviço;
10- O trabalhador independente para que o seguro possa ser accionado, necessário se torna que o trabalho/ prestação de serviços seja efectuado no interesse e por conta de terceiros;
11- No acidente dos autos, ao prestar serviço para si mesmo, não está satisfeito o requisito da existência de terceiro por analogia à existência de entidade patronal, no tradicional acidente de trabalho por conta de outrem;
12- No caso dos autos, o segurado não exercia a sua actividade a favor de terceiros, não chegando, consequentemente, a correr riscos inerentes à actividade segura;
13- O seguro de acidentes de trabalho por conta própria e ou por conta de outrem, não se pode ficcionar e ou compaginar com situações em que o trabalhador ou prestador de serviços e o beneficiário, sejam a mesma pessoa;
14- Ao condenar-se a ora recorrente, foram violadas, entre outras, as normas constantes do artº 3º da L. 100/97, o artº 1º nº 1 do D.L. 159/99 de 11/5 e toda a sua introdução preambular, bem como o artº 8º nº 1 a) da L. 100/97 e artº 6º do D.L. 155/99 de 11/5.
Contra alegou o recorrido defendendo a correcção da sentença em crise.
Recebido o recurso e colhidos os vistos legais, cumpre decidir
Dos Factos
Foi a seguinte a factualidade dada como assente na 1º instância
A) O Autor é empresário em nome individual, trabalhando por conta própria na actividade da construção civil em vários locais de trabalho.
B) No dia 2 de Maio de 2002, pelas 10 horas, em Santa Cristina- Mortágua o Autor foi vitima de um acidente que consistiu em ter caído sobre os degraus de uma escada de cimento quando procedia a trabalhos de reparação no exterior da sua escada de habitação em Santa Cristina.
C) Em consequência do referido acidente foi o Autor transportado pelos Bombeiros Voluntários de Mortágua para o Centro de Saúde desta Vila e, de imediato, face à gravidade das lesões para o Serviço de Urgência dos H.U.C., onde ficou internado em Ortopedia, tendo-lhe sido diagnosticadas as lesões examinadas e descritas nos Autos, designadamente, fracturada bacia com componente acetabular, traumatismo do cotovelo com fractura e arrancamento da apófise coronoide, que o tornaram portador de I.T.A. desde a data do acidente até à data da alta ocorrida em 28/08/2002 e de que ainda não foi indemnizado.
D) O A. auferia a retribuição anual declarada e aceite pela Ré de 7.271,57 Euros, conforme respectiva apólice nº 21/05.036.156 e acta adicional a que se alude no documento nº3 junto aos autos.
E) Submetido a exame médico neste Tribunal em 3/12/02 foi-lhe atribuída uma IPP de 28,1%.
F) No dia 14/05/02 os Serviços de Ortopedia dos HUC, onde o A. estava internado desde a data do acidente, lhe deram alta hospitalar a pedido do corpo clinico da Ré Fidelidade, que o transferiu de ambulância para a Casa de Saúde de Santa Filomena em Coimbra, onde ficou internado e entregue aos cuidados médicos do Serviço Clinico da Seguradora, tendo aí, sido submetido a intervenção cirúrgica pela equipa médica da Ré em 23/05/02.
G) Em 28/05/02 foi-lhe dada alta da Clínica, passando, em meados de Junho seguinte, a fazer sessões diárias de fisioterapia no ginásio daquela Casa de Saúde, conforme se alcança dos documentos juntos a fls. dos autos, onde andou durante os meses de Junho, Julho e Agosto de 2002 e com sessões marcadas para o mês de Setembro/02, tendo, consulta marcada para 11/09/02 que a Ré suspendeu, dando-lhe alta definitiva em 28/08/02 sem estar curado e a meio da recuperação.
H) O Autor despendeu em transportes e medicamentos € 269,20 e em transportes pelas deslocações obrigatórias a tribunal € 15.
I) Não obstante a alta clinica dada ao Autor pelos respectivos Serviços Clínicos da Ré em 28/08/02, o certo é que o Autor não podia ainda trabalhar, pelo que a sua médica de família lhe prescreveu baixa médica por ITA desde 29/08/02 até 30/09/02, ou seja durante mais 31 dias, tempo que a Segurança Social lhe pagou.
J)- À data do acidente o Autor laborava por conta, autoridade e fiscalização de si próprio, na arte da construção civil
L)- O Autor encontrava-se a limpar a fachada superior da sua própria casa (residência), e a aplicar pedra de cantaria na fachada da porta do lado esquerdo
M)- Para tanto, subia para cima de um tijolo que colocou sobre um plástico, para evitar sujar o chão
N)- A certa altura o A. desequilibrou-se, escorregou e caiu nos degraus da escada, o que lhe originou fractura da bacia e deslocamento do braço direito
O)- Aquando do evento, estava a trabalhar sozinho em casa que é sua propriedade e que constitui a sua morada de família sem qualquer pessoal a auxiliar .
Do Direito
Sabe-se que é pelas conclusões das alegações, que se delimita o âmbito da impugnação- artºs 684 n.º 3 e 690º nºs 1 e 3 ambos do CPC-.
Pelo que “ in casu” a única questão que importa dilucidar é a de se determinar se o acidente em causa está ou não coberto pelo contrato de seguro que o A celebrou com a Ré.
Esta pretende que a sua responsabilidade está excluída por duas ordens de razões:
- por se tratar de acidente que ocorreu em trabalho ocasional de curta duração( artº 8º nº 1 a) da LAT)
- porque tendo o sinistro acontecido quando o A trabalhava na sua residência, sem outros trabalhadores a auxiliá-lo e sem ser remunerado, não se encontra abrangido pelo contrato de seguro, que pressupõe que o acidente ocorra quando o trabalhador presta serviço a terceiros, embora evidentemente sem estar colocado numa posição de subordinação jurídica.
Vejamos então:
No que concerne ao primeiro dos motivos invocados pela recorrente, entendemos( salvo o devido respeito) que carece de razão.
Na realidade e desde logo não ficou demonstrado, sendo que era à seguradora que incumbia o respectivo ónus ( artº 342º nº 2 do CCv), que a actividade que o A exercia se devesse considerar como sendo de “ curta duração”.
Fenece portanto o primeiro dos argumentos por ela invocados.
No que diz respeito à segunda razão alegada haverá que ter em conta o seguinte.
Foi com a nova LAT( L. 100/97 de 13/9) que o legislador, segundo cremos pela primeira vez, contemplou a reparação infortunística ( em termos idênticos aos dos trabalhadores por conta de outrem) dos “ trabalhadores independentes”, ou seja daqueles que exercem uma actividade por conta própria, portanto sem estarem colocados numa posição de subordinação jurídica, elemento típico e definidor de um contrato laboral( cfr. artº 3º nº s 1 e 2 da aludida lei.).
E fê-lo no sentido de que os ditos trabalhadores e /ou seus familiares em caso de acidente ocorrido no exercício da sua actividade profissional, tivessem direito às indemnizações e restantes prestações infortunísticas, em condições idênticas às dos trabalhadores por conta de outrem- cfr. preâmbulo do D.L. 159/99 de 11/5-.
O legislador define “ trabalhador independente” como sendo aquele que exerce uma actividade por conta própria( artº 3º nº 2 citado).
E por força do D.L. 159/99 veio a operar uma distinção entre trabalhadores independentes cuja produção se destina exclusivamente ao consumo ou utilização por si próprio e pelo seu agregado familiar e os restantes- ou seja aqueles que por via de regra laboram para outrem, embora com ausência de subordinação jurídica, nomeadamente através de contratos de prestação de serviços( cfr. artº 1152º do CCv)-.
Para estes últimos o seguro adquire as características de obrigatoriedade( artº 1º nº 1 do D.L. 159/99) enquanto que para os primeiros a celebração de tal convénio é meramente facultativa(nº 2 do citado artº 1º).
A verdade porém é que, pelo diploma legal em causa, a possibilidade de existência do seguro por acidentes laborais sofridos por trabalhadores independentes, não exige nem que a actividade seja remunerada, nem que o trabalhador labore por conta de outrem.
Resulta isto a nosso ver- e sempre com a ressalva do devido respeito por opinião diversa- do que estabelece o já referido nº 2 do artº 1º do D.L. 159/99.
Na realidade ali se admite a possibilidade da existência do seguro, mesmo que o trabalhador labore para si mesmo, portanto sem contratar com quem quer que seja e sem ser remunerado pelo resultado da sua actividade.
É certo que o preâmbulo do citado D.L. 155/99, menciona que “ através do seguro de acidentes de trabalho pretende-se garantir aos trabalhadores independentes e respectivos familiares, em caso de acidente de trabalho, indemnizações e prestações idênticas às dos trabalhadores por conta de outrem e seus familiares”.
Contudo e conjugando este princípio com o que se encontra plasmando no artº 3º nº1 da LAT( que refere que os trabalhadores independentes devem efectuar um seguro que garanta as prestações previstas na presente lei...), somos levados a crer- e usando os critérios interpretativos mencionados no artº 9º do CCv- que a similitude entre o regime relativo aos trabalhadores por conta de outrem e os trabalhadores independentes, se refere no essencial à concessão do direito às indemnizações e prestações decorrentes de um acidente de trabalho.
Não se exige, julgamos nós- evidentemente sem certezas dogmáticas- para que ao trabalhador independente se reconheça o mencionado direito, que este estivesse a exercer no momento do sinistro, uma actividade remunerada com base num contrato ( em princípio de prestação de serviços), celebrado com outrem.
Se fosse de outro modo nunca os tais trabalhadores independentes citados no nº 2 do artº 1º do D.L. 1555/99, poderiam ser abrangidos por este tipo de garantia.
E todavia, ainda que facultativamente, são- no.
E além do mais nem a lei exige que o trabalhador independente exerça actividade para fornecer um resultado a outrem( embora essa na prática seja a regra), bastando- se com o exercício de uma “ actividade por conta própria” nem mesmo nos trabalhadores juridicamente subordinados , a existência de uma contra prestação por trabalhos prestados é elemento essencial para a caracterização do sinistro, como se alcança do artº 6º nº 2 b) da LAT, que considera como acidente de trabalho o que ocorra na execução de serviços espontaneamente prestados de que possa resultar proveito económico para o empregador.
Note-se aliás, que o trabalhador independente ao efectuar qualquer trabalho para si mesmo, se não está directamente a auferir um rendimento, não deixa de ter um ganho
económico, consubstanciado numa despesa que deixa de fazer( o pagamento que teria que efectuar a quem para ela fizesse tal obra).
Portanto em nosso modesto entender , o critério fundamental para aferir da abrangência do seguro infortunístico laboral, perante um sinistro que atinge um trabalhador independente, será dado pela actividade que ele no momento exercia.
Se ela se integra no âmbito da sua profissionalidade e pela qual ele estava seguro, então independentemente de estar a laborar para si ou para outrem, com remuneração ou sem ele, o sinistro de que eventualmente venha ser vítima, estará a coberto do contrato de seguro que celebrou( salvo naturalmente as hipóteses de invalidade deste).
No caso concreto dúvidas não existem acerca da validade do seguro em causa.
Também é inquestionável, que o A é empresário em nome individual, trabalhando por conta própria na área da construção civil
E foi ao exercer uma actividade dessa natureza, que sofreu o acidente em análise.
Em face disso e por tudo o que se expendeu- e porque o A tinha a respectiva responsabilidade infortunística validamente transferida para a Ré- é a esta que incumbe( ainda que o A estivesse a trabalhar para si mesmo), a reparação legalmente devida pelo acidente.
Termos em que e concluindo, na confirmação da sentença impugnada, se julga improcedente a apelação.
Custas pela Ré.