Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2646/08.0TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: USO E HABITAÇÃO
COMODATO
CESSAÇÃO
DOAÇÃO
Data do Acordão: 11/29/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: 1485º CC
Sumário: Não tendo sido aposta à doação cláusula modal, nem tendo o réu provado qualquer condição de encargo de direito a habitação a que submetera a doação de prédio urbano à filha, a autorização verbal desta para o mesmo residir no prédio, sem fixação de qualquer prazo, constitui acto de mera tolerância, a que a autora pode pôr fim a qualquer momento e não um direito (vitalício) de habitação.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório

A... propos acção declarativa, que de forma de processo sumário passou a ordinário, contra B..., pedindo, em via principal, a condenação do R. a reconhecer a cessação do contrato de comodato que incidia sobre a casa de habitação identificada no artigo 2º da petição inicial e a restituir tal casa à A. livre e desocupada e, em via subsidiária, a condenação do R. a reconhecer que a A. é legítima possuidora e proprietária desse imóvel bem como a proceder à sua restituição.

Para tanto alegou, em síntese, que é filha do R. e de C..., sendo proprietária daquela casa de habitação, que lhe foi doada pelos seus progenitores, sendo que, por si e antepossuidores, há mais de 20 anos, anda na respectiva posse, nela praticando actos, há tempo e com características tais que, se outro título não houvesse, levariam à respectiva aquisição pela via originária da usucapião, que expressamente invocou, não obstante a presunção de que beneficia, adveniente do registo de aquisição a seu favor.

Mais alegou que, muito embora inicialmente os doadores houvessem reservado para si o usufruto da mencionada habitação, vieram mais tarde, por escritura pública, renunciar a tal usufruto, tendo nessa altura, a A., autorizado ambos os progenitores a continuar a residir no prédio sua propriedade, sem que tivesse sido fixado qualquer prazo para a respectiva restituição, porém, em virtude das más relações que mantém com a mulher, o R., desde 2005, tem vindo a praticar actos que se destinam a dificultar o uso da casa por parte da mesma, mandando cancelar o serviço de telefone e fornecimento de água, o que fez surgir um conflito também entre ele e a própria A., o qual se agrava devido ao facto de o R. fazer da casa um uso imprudente, deixando nela géneros alimentícios avariados, sujidade nas divisões e chegando até a quebrar, com um martelo, os toalheiros da casa de banho, tudo isso trazendo a requerente intranquila e receosa de ser agredida pelo R., até porque este afirma que ela tem que sair da referida casa.

Alegou, finalmente, que, face a isso, mas também ao facto de sua mãe ser idosa e doente, a A. pretende obter a restituição da casa, tendo já reclamado a mesma junto do R. por carta registada com AR remetida no dia 21.8.2008, a ocorrer no prazo de 10 dias, contudo, sem qualquer resultado, pois o R. continua a ocupar a casa, contra a vontade da A., que está impedida de dela dispor livremente.

Citado, o R. deduziu contestação, onde impugnou o valor dado à acção e alegou que o usufruto que onerava o imóvel em causa nos autos poderá não se ter extinguido, pois a mãe da A. intentou contra seus filhos, incluindo a A., acção judicial onde peticionou, além do mais, seja declarada nula ou anulada a procuração usada para extinção desse usufruto, sustentando-se no facto de a sua outorga ter sido precedida de um plano pelos filhos arquitectado em ordem à obtenção da renúncia ao usufruto sobre os imóveis que haviam anteriormente sido doados, pois para tal lhes foi referido que a finalidade era venderem os prédios doados, revertendo o produto da alienação a favor dos doadores, permitindo-lhes um resto de vida tranquilo e sem dificuldades financeiras e a referida progenitora, ao aperceber-se de que isso, afinal, não iria ocorrer, endereçou carta registada, manifestando ao procurador expressamente vontade de não renunciar ao usufruto tendo, não obstante, o mesmo celebrado a escritura de renúncia dois dias depois do envio da missiva em causa.

Mais alegou o R. que, muito embora não subscreva as razões invocadas pela A. na referida acção, entende que a factualidade invocada projectará necessariamente os seus efeitos neste processo, afectando as pretensões da aqui A. enquanto pretende fazer valer direitos emergentes de um acto nulo.

A título de impugnação, invocou o R. que nenhum comodato existe, pois na realidade, entre A. e R. foi celebrado um contrato verbal por força do qual a mesma assumiu a obrigação de satisfazer todas as necessidades de habitação, alimentação e vestuário, custeando as correspondentes despesas e praticando todos os actos necessários para tal, como contrapartida pelo facto de lhe ter sido atribuído a ela A. um benefício que excedia claramente os atribuídos aos outros filhos do casal, o que, de resto, aconteceu desde a data da celebração da escritura de doação até pouco depois da revogação do usufruto.

Por outro lado, as suas decisões de cancelar fornecimentos de telefone e água da habitação foram amplamente justificadas na medida em que era titular dos contratos de fornecimento em causa, os quais estavam a ser utilizados em exagero pela sua esposa, que assim causava ao R. custos que não podia suportar e que pagava sozinho.

Por outro lado, o conflito entre A. e R. só surgiu quando aquela deixou de honrar o compromisso que havia assumido perante este, deixando de dele cuidar e em nada contribuir para o seu sustento.

Ora, alega o R., se tudo isso já era suficiente para julgar improcedente a acção, acresce que o deferimento da pretensão da A. sempre redundaria em abuso de direito, pois não só a A. ficou em vantagem patrimonial perante seus irmãos, assumindo obrigações que agora não cumpre, como nem, sequer, carece do imóvel para nele residir em permanência, uma vez que se encontra radicada na Suíça, apenas se deslocando a Portugal esporadicamente, pelo que, mesmo que existissem comportamentos menos próprios do R.(o que não concebe), sempre os mesmos pouco ou nada a afectariam, sendo sempre de considerar aberrante à luz das mais elementares regras da justiça que alguém que abdicou de bens de valor muito significativo em prol do bem estar dos filhos, com particular vantagem para a A., pudesse agora ser privado, para o resto da vida, de um mínimo de qualidade na existência, em prol de um direito de propriedade que só existe porque o R. o transmitiu.

A título reconvencional peticionou a condenação da A. a pagar-lhe uma indemnização mensal equivalente a € 100,00 mensais (que ascende já a € 6.000,00 à data do pedido) e que se deverá manter nos mesmos moldes para o futuro, pois deixou de cumprir as obrigações que havia assumido, as quais têm tradução económica equivalente e devendo declarar-se o direito de o R. permanecer no imóvel, tal como vem acontecendo até agora.

A A. apresentou réplica na qual impugna os factos articulados pelo R. e alega que todos os filhos do casal foram tratados de forma idêntica em sede de doação, sendo certo que a A. apenas se obrigou nos termos constantes das escrituras celebradas e não em quaisquer outros.

Concluiu pela procedência da acção e improcedência das excepções e reconvenção.

Foi decidido o incidente do valor e mandada seguir a forma de processo ordinário.

Dispensada a audiência preliminar, foi admitida a reconvenção e foi seleccionada a matéria de facto assente e elaborada a base instrutória, sem reclamações.

Instruída a causa, procedeu-se a julgamento e a final da audiência respondeu-se à matéria constante da base instrutória, igualmente sem reclamações.

Proferida sentença, foi a acção julgada procedente e o R. condenado a reconhecer que a A. é legítima proprietária do imóvel descrito no ponto 2 dos factos provados e a restitui-lo à mesma, livre e desocupado dos seus pertences, e a reconvenção julgada improcedente e a A. absolvida dos correspondentes pedidos.

Inconformado, recorreu o R., apresentando alegações que finalizou com as seguintes úteis conclusões:

a) – No caso dos autos, apesar de não terem sido estabelecidas cláusulas modais na doação efectuada à filha ora recorrida, foi celebrado contrato verbal em que se constituiu verdadeiro direito de uso e habitação da casa doada a favor do recorrente;

            b) – O direito de uso e habitação distingue-se dos actos de mera tolerância constantes do art.º 1253.º do CC, já que no 1.º existe um acordo de vontades e no segundo esse acordo não existe;

            c) – A mera tolerância traduz uma passividade perante a actuação alheia em suportar actos, mesmo abusivos, não se tendo dado qualquer autorização;

            d) – Da matéria de facto provada consta que aquando da renúncia do usufruto a A. autorizou o R. recorrente e cônjuge a continuarem a residir no prédio, não tendo sido fixado qualquer prazo;

            e) – A opção pela qualificação jurídica da situação em concreto como acto de mera tolerância contraria a matéria de facto provada, designadamente a constante dos pontos 13 e 14 da sentença recorrida;

            f) – A ter optado pela qualificação jurídica da situação dos autos como direito de uso e habitação, o tribunal a quo teria ainda que considerar existir abuso de direito;

            g) – Existe contradição entre a matéria de facto dada como provada e a decisão;

            h) – Existe erro de julgamento e errada interpretação dos art.ºs 1253.º, 1137.º e 334.º, do CC, devendo ter-se aplicado o disposto nos art.ºs 1484.º, 1485.º, 1490.º, 1443.º, 1476.º e 1483.º, do CC, por isso devendo a sentença ser alterada e ser qualificada a situação dos autos como direito de uso e habitação e considerar-se abusivo o pedido formulado pela A., condenando-se a mesma a reconhecer a existência desse direito vitalício a favor do recorrente, assim se julgando improcedente a acção.

Não houve lugar a contra-alegações.

Dispensados que foram os vistos, cumpre apreciar, sendo questões a decidir na apelação:

- Se a ocupação pelo R. do imóvel da A. constitui acto possessório de mera tolerância ou se configura direito de uso e habitação vitalício e neste caso se a A,. com a acção, incorreu em abuso de direito.


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            2. Fundamentação

            2.1. De facto

A matéria de facto considerada provada pela sentença recorrida e não impugnada perante esta Relação, é a seguinte:

1. A A. é filha do Réu e cônjuge C....

2. Há vários anos que o R. mantém um relacionamento muito tenso e conflituoso com a esposa.

3. No decurso do ano de 1994, o R. e o cônjuge decidiram proceder à divisão de todos os imóveis do casal pelos filhos.

4. O prédio urbano, composto de casa de habitação de rés-do-chão e logradouro, coma superfície coberta de 53 m2, descoberta de 878 m2, com a área total de 931 m2,sito na ..., a confrontar do Norte com ..., do Nascente com ..., do Sul com rua, do Poente com ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo número ..., encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Pombal sob o número ... da freguesia de Pombal, a favor da autora pela inscrição AP. 12 de 2004/04/15.

5. Por escritura pública outorgada a 08-03-2000, no Cartório Notarial de Soure, desde folhas 144 a 146vº do livro 178-C, o Réu e cônjuge C... declararam doar o prédio dito em 2. à A. que o declarou aceitar.

6. Os doadores reservaram o usufruto sobre o prédio doado.

7. Por escritura pública outorgada a 14-07-2004, no Cartório Notarial de ..., em Pombal, desde folhas 49 a 50 do livro 118-E, ..., na qualidade de procurador do demandado B... e cônjuge C..., declarou renunciar ao usufruto sobre o referido prédio.

8. No dia 17-01-1995, no Cartório Notarial de Soure, o R. e sua esposa doaram a seu filho H... uma parcela de terreno destinada a construção urbana, com a área de 843 m2, situada no lado poente, onde ocupa toda a sua largura, do prédio rústico composto de terra de cultura com oliveiras e tanchas, com a área total de 1.530 m2, sito no ..., freguesia e concelho de Pombal, inscrito na respectiva matriz rústica sob o artigo ...e descrito na Conservatória do Registo Predial de Pombal sob o nº ...-Pombal, a confrontar do norte com ..., do nascente com parte remanescente do prédio, do sul com caminho e do poente com prédio urbano dos doadores.

9. Doaram, pela mesma escritura, a sua filha D..., representada nesse acto pela ora autora, a parte remanescente do prédio rústico supra identificado, que ficou constituído também por terra de cultura com oliveiras e tanchas, com a área de 687 m2, a confrontar do norte e nascente com ..., do sul com caminho e do poente com a parcela destacada neste mesmo acto e supra identificado.

10. No dia 08-03-2000, no mesmo Cartório Notarial, o R. e sua esposa justificaram e doaram, com reserva de usufruto, a seu filho E... metade do prédio rústico composto de terra de cultura com oliveiras, com a área de1742 m2, sito na ...a, freguesia e concelho de Pombal, a confrontar do norte com ..., do nascente com ..., do sul com Câmara Municipal de Pombal e do poente com estrada, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 35.422.

11. Doando a sua filha F... a outra metade do prédio justificado e identificado supra.12. Na mesma escritura justificaram e doaram sua filha D..., também conhecida por D... o, cinquenta duzentos e trinta avos de um prédio rústico composto de terra de cultura, pinhal e mato no sítio das ..., limite da ...a, da mesma freguesia e concelho, inscrito na matriz predial sob o artigo ...º, descrito na Conservatória do Registo Predial de Pombal sob o nº ..., a fls 160 do Livro B – 156.13. Aquando da renúncia do usufruto referida supra, a A. autorizou o R. e cônjuge a continuarem a residir no prédio identificado em 2.

14. Não foi fixado prazo para o R. e cônjuge restituírem a casa.

15. No início do ano de 2005, o R. mandou cancelar o contrato de telefone fixo para a habitação, o qual se encontrava em seu nome, por considerar que eram efectuadas chamadas que não eram da sua responsabilidade e não teria que as pagar.

16. Em 30-03-2005, a A. mandou restabelecer o fornecimento de telefone por contrato celebrado em seu nome.17. No mês de Março de 2008, o R. mandou cancelar o contrato de fornecimento de água ao referido prédio, o que fez como forma de retaliação contra a mulher que alega tê-lo forçado a ir tomar banho a casa de um filho, por lhe cortar a água quando ele se banhava.

18. Em 11-04-2008, a A. mandou restabelecer o fornecimento de água por contrato em seu nome.19. Os cancelamentos, acabados de referir, fizeram surgir um conflito entre A. e R.

20. O R. guarda leite e alguns géneros alimentares no frigorífico.

21. Por vezes aparecem no frigorífico alguns géneros alimentares retardados.

22. Em 28.7.2008, a A. chegada da Suíça, onde trabalha andou a fazer limpeza à casa de banho, após o que o R. utilizando um martelo quebrou os toalheiros.

23. Nesse mesmo dia, após o acabado de referir, o R. a A. e sua irmã (filha do R.) D..., envolveram-se num confronto físico de conteúdo exacto não apurado, durante o qual o R. mantinha na mão o martelo mencionado utilizado na actuação referida em 23.

24. A mãe da A. é pessoa doente, medicada com Sinemet, Arcoxxia e Ditropan e está incapacitada de efectuar esforços físicos. 25. Necessita de uma terceira pessoa que adquira os produtos alimentares e efectue a limpeza doméstica. 26. No ano de 2008, a A. solicitou a I... a limpeza do mato que existia nos logradouros do prédio identificado em 2.

27. No dia em causa, o R. passou pelo mencionado I... com má cara e falando sozinho “a ralhar”.

28. O R. tentou impedir a limpeza do terreno, ralhando com o referido I....

29. Por carta registada com aviso de recepção remetida ao demandado em 21-08-2008, a A. comunicou ao R. que deveria entregar a casa livre e desocupada dentro do prazo de 10 dias.

30. O aviso de recepção foi assinado pelo R. em 22-08-2008.

31. O R. e a mulher continuam a ocupar a casa mencionada em 2.

32. O R. e a mulher têm vários filhos, que andam desentendidos entre si, formando grupos diferentes, uns que se dão mais com a mãe e outros com o pai.

33. A A. e sua irmã D...encontram-se emigradas na Suíça, deslocando-se aquela a Pombal de férias, nessas alturas ficando na casa mencionada em 2.

34. O R. habitualmente, toma as refeições na casa de uma filha.


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            2.2. De direito

Enunciada a questão colocada ao conhecimento deste tribunal e delimitado que foi pelo recorrente o âmbito do recurso, à matéria de direito, vejamos, então, se a factualidade apurada configura, uma situação possessória de mera tolerância ou de direito de uso e habitação e, neste caso, se foi exercido abusivamente pela recorrida.

Comparemos ambos os regimes jurídicos.

Dispõe o art.º 1253.º, alín. b), do CC (as demais alíneas são aqui manifestamente inaplicáveis) que são havidos como detentores ou possuidores precários os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito.

É, assim, possível definir actos de mera tolerância como aqueles que por razões de amizade, cortesia, familiaridade ou boa vizinhança alguém deixa praticar relativamente ao objecto de um direito de que é titular.

Como actos de permissão, de tolerância, têm implícita a precariedade, a possibilidade de serem proibidos em qualquer momento.

Trata-se de uma situação em que existindo o corpus da posse, está ausente o animus possidendi, não constituindo posse na conhecida teoria subjectiva de Savigny acolhida na nossa lei civil (art.º 1251.º do CC).

A tolerância pode ser expressa ou tácita, não carecendo de forma especial.[1]

A par da mera tolerância, a doutrina destaca ainda os actos facultativos que têm como causa a inércia do titular do direito real de propriedade.

Trata-se de expressão que o actual Código Civil não acolheu e apenas mantém interesse conceitual histórico, já que a situação está hoje absorvida pela figura da mera tolerância.

Quanto ao direito de uso e habitação preceitua o art.º 1484.º do CC que o mesmo consiste na faculdade de alguém se servir de certa coisa alheia e haver os respectivos frutos, na medida das necessidades quer do titular, quer da sua família (n.º 1) e quando tal direito se referir a casa de morada chama-se direito de habitação.

Figura próxima do usufruto, por se pautarem pelas necessidades pessoais os direitos de uso e habitação constituem, no dizer de Mota Pinto[2], diminutivos do usufruto, dado o seu carácter limitado quanto ao uso e fruição.

No caso em apreço, releva apenas o direito de habitação, que confere ao titular o direito de morar numa casa concreta enquanto o usufrutuário de uma casa pode, p. ex., arrendá-la e receber as respectivas rendas.[3]

De acordo com o disposto no art.º 1485.º do CC o direito de uso e habitação constitui-se pelos mesmos modos que o usufruto, à excepção da usucapião (alín. b) do art.º 1293.º do CC), mormente mediante contrato (art.º 1440.º do CC).

Daí que possa decorrer de um contrato inominado e misto de doação e prestação de serviços, v. g. cuidados de saúde entre pais e filhos.[4]

A questão que se coloca no recurso é precisamente esta.

Vejamos a factualidade relevante, com um alerta.

O recorrente, tal como a lei processual lho permitia (art.ºs 684.º, n.º 3 e 685.º-A, do CPC) circunscreveu o âmbito do recurso à matéria de direito. Daí que não tenha qualquer sentido a transcrição que faz nas alegações do próprio depoimento que fez em audiência de julgamento, depoimento esse que à partida já seria irrelevante, uma vez que, como confissão, só ao que era desfavorável poderia atender-se (art.º 352.º do CC), o que ficou, de resto consignado na assentada (art.º 563.º do CPC) da acta de audiência de 29.11.10 (fls. 151).

Prosseguindo, resultou provado que em 1994 o R. e sua mulher decidiram proceder à divisão de todos os seus bens pelos 5 filhos, entre os quais a A., a quem coube, por doação, um prédio urbano, de que os doadores reservaram o usufruto a seu favor, como reservaram o usufruto relativamente à doação de outros prédios em relação a outros filhos (E..., F... e D...).

Posteriormente os doadores vieram renunciar aos usufrutos.

Aquando da renúncia a A. autorizou o R. e cônjuge a continuar a residir no prédio que lhe havia sido doado, não se havendo fixado qualquer prazo para a restituição da casa, continuando o R. e mulher a ocupá-la.

Não foi provado que a A. ficasse beneficiada com as partilhas[5], nem que ficara acordado que a A. ficaria com o encargo de tomar conta dos pais ou que recebia as pensões de reforma destes para fazer face às suas despesas (resp. art.ºs 32 a 35 da b. i).

Ora, face à materialidade provada não pode concluir-se pelo direito de habitação que fundamenta o recurso.

O recorrente diverge da sentença porque em seu entender a mera tolerância (em que a decisão recorrida se louvou) se traduz numa passividade perante a actuação alheia, em suportar actos mesmo abusivos, não se tendo dado qualquer autorização, para concluir que, tendo a A. autorizado o R. e mulher a residir no prédio, sem fixação de qualquer prazo, isso mesmo traduz um acordo de habitação vitalício que preenche o direito de uso e habitação com tutela no mencionado art.º 1484.º.

Assim não é.

Já vimos que nem a doação à A. incluiu qualquer cláusula modal (art.º 963.º, n.º 1, do CC), nem o A. provou (como lhe competia – art.º 342.º, n.º 1, do CC) qualquer condição (tomar conta dos pais) a que tivesse submetido a liberalidade ou qualquer benefício relativamente às disposições aos demais filhos, simplesmente se provando que após a renúncia dos progenitores aos usufrutos que haviam reservado relativamente a alguns bens, a A. autorizou o R. e mulher (pais) a continuar a residir no prédio.

Um acordo, que subjaz a qualquer contrato, supõe sempre duas manifestações de vontade, convergentes entre si. Uma autorização, apenas uma vontade – a de quem autoriza.

É falacioso dizer, como o recorrente, que a mera tolerância é mera passividade e que autorização é mais que isso!

Parece que o recorrente labora em menor rigor conceitual, confundindo os aludidos actos facultativos com mera tolerância, uma vez que, como vimos, nesta o consentimento, sinónimo de autorização, tanto pode ser expresso como tácito.

Confusão que, como vimos também, não releva em termos de direito constituído.

Conclui-se, assim, que a autorização concedida ao R. para usar a habitação da A. se tratou de uma acto unilateral (não acordo) da A., de mera tolerância, como assim concluiu a sentença apelada.

E, assim sendo, prejudicada está a questão do abuso de direito, suscitada para a hipótese da procedência do direito de habitação, não sendo, pois, nessa sede que o recorrente há-de buscar remédio para as suas necessidades ou anseios, antes no âmbito do direito de alimentos que, aliás, já accionou judicialmente.


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            3. Resumindo e concluindo, em jeito de sumário (n.º 7 do art.º 713.º do CPC):

            - Não tendo sido aposta à doação cláusula modal, nem tendo o réu provado qualquer condição de encargo de direito a habitação a que submetera a doação de prédio urbano à filha, a autorização verbal desta para o mesmo residir no prédio, sem fixação de qualquer prazo, constitui acto de mera tolerância, a que a autora pode pôr fim a qualquer momento e não um direito (vitalício) de habitação.


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4. Decisão

Face ao exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e confirmar a douta sentença recorrida.

            Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.


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Francisco M. Caetano (Relator)
António Magalhães
Ferreira Lopes


[1] V. sobre toda esta matéria Henrique Mesquita, “Direitos Reais”, Lições Policopiadas, pág. 70 e ss, Miguel Oliveira, “A Posse – na Doutrina e na Jurisprudência”, 1981, 43 e ss e P. Lima e A. Varela, “CC, Anot”, III, 2.ª ed., 10.
[2] “Direitos Reais”, 1971, 419.
[3] Mota Pinto, idem, pág. 105.
[4] V. Ac. RP de 21.11.94, CJ, 1994, 5.º, 213.
[5] Embora não tivesse atendimento nos autos, fosse de quem fosse, da escritura pública de doação de 8.3.00 resulta que o valor dos prédios doados era equivalente – 1 milhão de escudos para cada um – fls. 32).