Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
486/03.1TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: EMPREITADA
CADUCIDADE
DIREITOS
DONO DA OBRA
Data do Acordão: 06/30/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA DE COMPETÊNCIA MISTA DO TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA – 1ª SECÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1207º, 1208º, 1221º, 1222º E 1223º DO C. CIV
Sumário: I – No contrato de empreitada, sobre o dono da obra impende a obrigação de pagar o preço convencionado, incumbindo ao empreiteiro, como contrapartida desta obrigação, a realização da obra acordada, conforme resulta dos art.º 1207º e 1208º, ambos do C. Civil.

II - O legislador, atento aos interesses do empreiteiro em ver definida a sua responsabilidade pelos defeitos na obra no mais curto espaço de tempo após a sua conclusão, além do ter estabelecido um prazo para a denúncia dos defeitos, estabeleceu prazos de caducidade para o exercício dos direitos do dono da obra.

III - Contudo, estes prazos de caducidade apenas se aplicam aos direitos do dono da obra previstos nos artigos 1221º, 1222º e 1223º, do C. Civil, que visam reparar unicamente o prejuízo consubstanciado na existência de defeitos na obra e não os danos colaterais deles resultantes ou os danos que resultaram do não cumprimento da obrigação de eliminação dos defeitos, conforme resulta expressamente da redacção do artigo 1224.º, do C. Civil.

IV - Respeitando os direitos de indemnização reclamados pelo dono da obra não ao prejuízo da existência dos defeitos da obra, em si mesmo, pela desvalorização que nela provocam, mas sim a danos colaterais ou relativos ao incumprimento da obrigação de eliminação desses defeitos, o regime aplicável a estes direitos de indemnização já não é o regime específico da responsabilidade por defeitos no contrato de empreitada, mas sim o regime geral do direito de indemnização, pelo que esses direitos não estão sujeitos aos apertados prazos de caducidade do art.º 1224º, do C. Civil, mas sim ao prazo de prescrição ordinário, dado nos encontrarmos perante um caso de responsabilidade contratual.

V - O cumprimento defeituoso da obrigação de realizar a obra prometida pelo empreiteiro, como uma das formas de incumprimento do contrato, fá-lo incorrer em responsabilidade civil contratual, isto é, na obrigação de reparar os danos causados ao dono da obra com a sua conduta inadimplente.

VI - Mas a responsabilidade contratual pressupõe a culpa, que consiste na imputação da conduta violadora do dever de cumprimento ao obrigado, num juízo de censura.

VII - Quando o defeito tem origem na inadequação de materiais aplicados na obra, fornecidos pelo seu dono, a responsabilidade do empreiteiro dever-se à considerar excluída quando essa inadequação não for detectável por um profissional de competência suficiente (o bom profissional) na realização daquele tipo de obras, ou, se tendo sido detectada, o empreiteiro informou o dono da obra das consequências nefastas da execução desta com os materiais fornecidos pelo dono da obra, tendo este insistido pela sua realização com aqueles materiais.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

O Autor intentou a presente acção declarativa de condenação, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia global de € 25.500,00, a título de indemni­zação pelos danos decorrentes de deficiente reparação do veículo automóvel de matrícula A...00-00-IZ, que lhe foi entregue para reparação, sendo € 4.500,00 do custo da nova reparação a realizar, € 2.000,00 da desvalorização comercial sofrida pelo veículo, € 16.500,00 a título de lucros cessantes e € 2.500,00 de danos não patrimo­niais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação.
Para fundamentar a sua pretensão alega, em síntese:
Ø Em Novembro de 1999, o Autor entregou à Ré o veículo A...00-00-IZ- para reparação.
Ø Tal reparação foi efectuada em Dezembro de 1999, mas logo foi cons­tatado ter sido realizada de forma deficiente por problema de sobreaquecimento.
Ø A Ré comprometeu-se a reparar as deficiências detectadas, tendo o Autor, para o efeito, voltado a entregar-lhe o veículo.
Ø Porém, a Ré, apesar das insistências do Autor, não reparou as ditas deficiências.
Ø O Autor deixou a viatura na oficina da Ré para resolução do problema detectado, sem que a Autora procedesse a qualquer reparação.
Concluiu pela procedência da acção.

A Ré contestou, excepcionando a incompetência territorial do Tribunal de X..., deduzindo as excepções peremptórias de caso julgado, de litispendência e de caducidade e impugnando, no essencial, a factualidade alegada pelo Autor, alegou em síntese:
Ø O veículo encontra-se na sua oficina a aguardar que o Autor lhe entre­gue as peças originais de que carece para reparação, decorrendo, por isso, a não correcção dos defeitos de culpa do próprio Autor.
Ø O Autor não vai buscar o veículo pelo facto de o mesmo ter sido penhorado.
Concluiu, pela procedência das excepções e improcedência da acção.

O Autor apresentou articulado de réplica quanto à matéria de excepção, concluindo como na sua petição inicial.

A Ré veio deduziu tréplica, concluindo como na sua contestação.

Por despacho de fls. 62 foi decidida a excepção de incompetência territo­rial, excepção essa julgada procedente, assim se considerando competente o Tribu­nal Judicial de Coimbra, pelo que os autos foram remetidos a esta Vara Mista.

Por despacho de fls. 86 e seg. não foi admitida a tréplica.

Dispensada a audiência preliminar, procedeu-se à elaboração do despacho saneador, conhecendo-se da excepção de caso julgado, julgando-se a mesma proce­dente, decisão que veio a ser revogada por acórdão proferido pelo S. T. J..

Voltados os autos à 1ª instância, foi então proferido saneador-sentença em que foi julgada procedente a excepção de caducidade, absolvendo-se a Ré do pedido formulado.
Esta decisão foi revogada pelo S. T. J., que no respectivo acórdão orde­nou o prosseguimento do processo, relegando-se para final a apreciação da excepção da caducidade.

Finalmente veio a ser proferida decisão que julgou a causa nos seguintes termos:
Pelo exposto, e decidindo:
A) – Julga-se, nos termos antes referidos, procedente, por provada, a deduzida excepção peremptória de caducidade;
B) – Com a consequente improcedência da acção;
C) – E a decorrente absolvição da R. do pedido.

Inconformado com esta decisão dela recorreu o Autor, apresentando as seguintes conclusões:
(…)
Conclui pela procedência do recurso.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Notificados para se pronunciarem nos termos do artº 715º, n.º 3, do C. P. Civil, para a hipótese da excepção de caducidade vir a ser julgada improcedente, recorrente e recorrido alegaram apenas sobre a procedência desta excepção.
                                            
*
1. Do Objecto do recurso

Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­gações do recorrente, cumpre apreciar a seguinte questão:

 O exercício pelo Autor do direito às indemnizações reclamadas é tem­pestivo?

                                             *

2. Os Factos

São os seguintes os factos provados:
(…)              
                                             *
3. O Direito Aplicável
3.1 Da qualificação do contrato celebrado entre Autor e Ré
Dispõe o art.º 1207º, do C. Civil:
 Empreitada é o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação a outra a realizar certa obra, mediante um preço.
Da análise dos factos que resultaram provados conclui-se que entre o Autor e a Ré foi celebrado um contrato de empreitada, intervindo o Autor na quali­dade de dono da obra e a Ré na qualidade de empreiteira.
Mediante a celebração daquele contrato a Ré obrigou-se a proceder à execução dos trabalhos necessários à reparação do veículo ligeiro de mercadorias de matrícula A...00-00-IZ-, mediante o preço de € 2.643,63.
Sobre o dono da obra impende a obrigação de pagar o preço convencio­nado, incumbindo ao empreiteiro, como contrapartida desta obrigação, a realização da obra acordada, conforme resulta dos art.º 1207º e 1208º, ambos do C. Civil.
Sendo estipulado prazo para o cumprimento da empreitada, deve o empreiteiro entregar a obra, realizada nos moldes convencionados e no prazo acordado.

3.2 Da caducidade dos direitos de indemnização

Com a presente acção pretende o Autor a condenação da Ré a indemnizá-lo pelos danos decorrentes da deficiente realização duma obra de reparação de um veículo.
O Autor pede o pagamento das seguintes indemnizações:
- € 4.500 correspondente à quantia necessária para efectuar a reparação do veículo;
- € 2.000 pela desvalorização comercial do veículo, resultante da sua paralisação;
- € 16.500 pela perda de rendimentos da sua actividade comercial devido a não poder dispor do veículo;
- 2.500 de danos morais sofridos em resultado da sua situação económica resultante da referida perda de rendimentos.
Na sua contestação excepcionou a Ré a caducidade dos direitos que o Autor pretende exercer.
A decisão recorrida entendeu verificar-se a caducidade do direito de indemnização relativamente a todos os montantes peticionados.
O Autor, discordando daquele entendimento, defende que não se verifica a aludida caducidade do direito às indemnizações peticionadas.
O legislador, atento aos interesses do empreiteiro em ver definida a sua res­ponsabilidade pelos defeitos na obra no mais curto espaço de tempo após a sua conclusão, além do ter estabelecido um prazo para a denúncia dos defeitos, estabele­ceu prazos de caducidade para o exercício dos direitos do dono da obra. Optou por prazos de caducidade e não de prescrição [1], por entender que os institutos da suspen­são e da interrupção da prescrição não se harmonizavam com as razões que justifi­cavam o estabelecimento de prazos curtos para o exercício dos direitos resultantes da descoberta de defeitos [2].
Contudo, estes prazos de caducidade apenas se aplicam aos direitos do dono da obra previstos nos artigos 1221º, 1222º e 1223º, do C. Civil, que visam reparar unicamente o prejuízo consubstanciado na existência de defeitos na obra e não os danos colaterais deles resultantes ou os danos que resultaram do não cum­primento da obrigação de eliminação dos defeitos, conforme resulta expressamente da redacção do artigo 1224.º, do C. Civil [3].
Respeitando os direitos de indemnização reclamados pelo dono da obra não ao prejuízo da existên­cia dos defeitos da obra, em si mesmo, pela desvalorização que nela provocam, mas sim a danos colaterais ou relativos ao incumprimento da obrigação de eliminação desses defeitos, o regime aplicável a estes direitos de indemni­zação já não é o regime específico da responsabilidade por defeitos no contrato de empreitada, mas sim o regime geral do direito de indemnização, pelo que esses direitos não estão sujeitos aos apertados prazos de caducidade do art.º 1224º, do C. Civil, mas sim ao prazo de prescrição ordinário, dado nos encontrarmos perante um caso de responsabilidade contratual.
Nesta acção, o Autor pede o pagamento de indemnizações pelo incumpri­mento do dever de eliminação dos defeitos (a quantia necessária para o Autor proceder à eliminação do defeito por terceiro) e por danos colaterais, resultantes da paralisação do veículo, pelo que o exercício dos respectivos direitos não está sujeito aos prazos de caducidade do art.º 1224.º, do C. Civil, mas sim ao prazo de prescri­ção ordinário, não procedendo, assim, a excepção de caducidade dos direitos invo­cados pelo Autor.

3.3 Da responsabilidade da Ré

Após se ter constatado que os direitos de indemnização reclamados pelo Autor não se encontram caducados, cumpre verificar se os mesmos se consti­tuíram, dado existirem todos os elementos no processo que permitem esse conhecimento, ampliando-se o objecto deste recurso nos termos impostos pelo art.º 715º, n.º 2, do C. P. Civil.
O cumprimento defeituoso da obrigação de realizar a obra prometida pelo empreiteiro, como uma das formas de incumprimento do contrato, fá-lo incorrer em responsabilidade civil contratual, isto é, na obrigação de reparar os danos causados ao dono da obra com a sua conduta inadimplente.
Mas a responsabilidade contratual pressupõe a culpa, que consiste na imputação da conduta violadora do dever de cumprimento ao obrigado, num juízo de censura.
Vejamos os factos:
- o Autor deslocou-se às oficinas da Ré em data anterior a 30/12/1999, dizendo que vinha de Anadia, para colocação e substituição de radiador de refrigera­ção, pois este vinha sem água e com o motor em sobreaquecimento;
- efectuado o trabalho solicitado pelo Autor, o gerente da Ré e o seu fun­cionário logo o informaram que devido ao estado em que trouxe a viatura, a cabeça do motor estava queimada, pelo que necessitava de reparação e alertaram-no para as consequências não visíveis e os eventuais danos provocados pela substituição tardia do radiador;
- ignorando os conselhos dos técnicos e gerente da Ré, o Autor levou o veículo pelos seus próprios meios e uma semana decorrida após os factos relatados  veio trazer a carrinha ainda a rodar mas já apresentando grandes dificuldades em locomoção;
- foi então efectuada a substituição da cabeça do motor, tendo esta sido trazida pelo Autor;
- a cabeça do motor adquirida pelo Autor era em ferro, diferente do equi­pamento de origem que era em alumínio;
- a Ré disso deu conhecimento ao Autor, o que não o impediu de dar ordem de substituição, que veio a ser cumprida;
- passados 4 meses, o Autor apareceu com o veículo em cima do reboque, a reclamar da reparação;
- a Ré recebeu o Autor por questões de ética e de profissionalismo e informou-o que a cabeça colocada não era a indicada para aquele veículo e que devia ter reclamado na B... .
- a Ré apenas se limitou a substituir as peças e nunca se recusou a reparar o veículo desde que o Autor lhe trouxesse peças originais;
- a Ré apenas tem aguardado que este lhe traga as peças de origem, o que ainda não aconteceu;
- o veículo continua nas instalações da Ré porque o Autor não mais se interessou pela sua reparação;
- o Autor não mandou reparar o veículo por já saber da sua penhora pela Repartição de Finanças de Penacova.

Do relatado resulta que o defeito da reparação contratada com a Ré resi­diu na colocação duma nova cabeça de motor inadequada ao veículo em causa.
Provou-se que foi o Autor quem forneceu essa peça e que a Ré o alertou dessa inadequação, tendo aquele mantido a ordem de reparação com aplicação daquela peça.
Quando o defeito tem origem na inadequação de materiais aplicados na obra, fornecidos pelo seu dono, a responsabilidade do empreiteiro dever-se à consi­derar excluída quando essa inadequação não for detectável por um profissional de competência suficiente (o bom profissional) na realização daquele tipo de obras, ou, se tendo sido detectada, o empreiteiro informou o dono da obra das consequências nefastas da execução desta com os materiais fornecidos pelo dono da obra, tendo este insistido pela sua realização com aqueles materiais [4].
Nesta última situação em que o dono da obra ordena que o empreiteiro exe­cute a obra segundo as suas directrizes e contra a opinião expressa deste, o empreiteiro actua como um simples nudus minister, não dispondo da liberdade de execução que permitiria responsabilizá-lo por um cumprimento deficiente.
Daí que, mostrando-se, pela factualidade apurada, excluída a culpa do empreiteiro pela deficiente reparação do veículo do Autor, não pode este ser respon­sabilizado pelos prejuízos que resultaram desse cumprimento defeituoso, devendo, por isso, ser absolvido quer do pedido indemnizatório de pagamento da quantia necessária para se proceder à reparação do veículo, quer dos pedidos indemnizató­rios pelos danos resultantes da paralisação do veículo, a qual não é imputável à Ré.

4. Conclusão
Não se revelando caducados os direitos de indemnização invocados pelo Autor, deve ser revogada a sentença recorrida, proferindo-se, contudo, nova decisão de absolvição da Ré dos pedidos formulados, uma vez que não se provou que aqueles direitos se tenham sequer constituído.

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Decisão
Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso e, em consequên­cia, revoga-se a sentença recorrida na parte em que julgava procedente a excepção de caducidade, mantendo-se a decisão, por fundamentos diversos, de julgar improcedente a acção e absolver a Ré dos pedidos formulados pelo Autor.

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Custas do recurso em igual proporção por Autor e Ré.

[1] O Anteprojecto Vaz Serra, no seu art.º 21º, tal como a maioria das legislações europeias, estabelecia prazos de prescrição e não de caducidade para o exercício dos direitos do dono da obra, tendo esta opção sido alterada pela 2ª Revisão Ministerial.

[2] Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil anotado, vol. II, pág. 900, da 4.ª ed. da Coimbra Editora.

[3] João Cura Mariano, in Responsabilidade contratual do empreiteiro pelos defeitos na obra, pág. 144 e 172-173.
[4] Neste sentido, João Cura Mariano, na ob. cit., pág. 81-82, Giuseppe Musolino, em La responsabilità civile nell’ appalto, pág. 92-93, da 2.ª ed., da Cedam, Carmela Mascarello, em Il contratto di appalto, pág. 88-90, da ed. de 2002, da Giuffrè, Lidia Savanna, em La responsabilità dell´appaltatore, pág. 43, da ed. de 2004, da G Giappicheli, e Franco Ballati, em La responsabilità dell´appaltatore e del directore del lavori per vizi e difformità delle opere, pág. 55-59 e 87-91, da ed. de 2006 da Halley.
     VAZ SERRA, no seu Anteprojecto, previa expressamente esta circunstância como afastando a culpa do empreiteiro (art.º 16º, nº 3, no B.M.J. nº 146, pág. 227).