Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1461/07.2TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
JUROS DE MORA
INICIO DA MORA
Data do Acordão: 03/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 4º JUÍZO CRIMINAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 105.º DO R.G.I.T.; 3º, Nº 1, DO DEC. LEI Nº 73/99, DE 16 DE MARÇO; 805º, Nº 2, A) E 806º, Nº 1, DO C. CIVIL, ARTS. 5º, Nº 3, DO DEC. LEI Nº 103/80, DE 9 DE MAIO, 16º, NºS 1 E 2, DO DEC. LEI Nº 411/91, DE 17 DE OUTUBRO, E 10º, Nº 2, DO DEC. LEI Nº 199/99, DE 8 DE JUNHO
Sumário: I. - Ao pedido de indemnização civil deduzido pela Segurança Social em processo comum fundado na pratica de crime de abuso de confiança contra a segurança social, é aplicável a taxa de juros de mora de 1% ao mês, aumentando uma unidade por cada mês de calendário ou fracção, se o pagamento se fizer posteriormente ao mês a que respeitarem as contribuições, nos termos do art. 3º, nº 1, do Dec. Lei nº 73/99, de 16 de Março;
II. - O prazo de contagem dos juros de mora inicia-se no décimo quinto dia do mês seguinte àquele a que as contribuições dizem respeito, nos termos dos arts. 805º, nº 2, a) e 806º, nº 1, do C. Civil, arts. 5º, nº 3, do Dec. Lei nº 103/80, de 9 de Maio, 16º, nºs 1 e 2, do Dec. Lei nº 411/91, de 17 de Outubro, e 10º, nº 2, do Dec. Lei nº 199/99, de 8 de Junho
Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO.
No 4º Juízo Criminal da comarca de Coimbra, mediante acusação do Ministério Público que lhes imputava a prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelos arts. 27º-B e 24º, nº 1, do RJIFNA e actualmente, p. e p. pelos arts. 105º e 107º, do RGIT, foram submetidos a julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal singular, o arguido, …, casado, encarregado de obras, nascido em Souselas e residente na Mealhada, e …., com sede em Coimbra.
O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP – Centro Distrital de Segurança Social de Coimbra, deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos, com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 32.556,52, acrescidos de juros de mora, calculados nos termos do art. 18º, do Dec. Lei nº 103/80, de 9 de Maio, e do art. 16º, do Dec. Lei nº 411/91, de 17 de Outubro, sendo a taxa/mês em vigor durante o período contributivo em dívida, de 1%, nos termos dos arts. 1º e 3º, da Lei nº 73/99, de 16 de Março.
Por sentença de 24 de Outubro de 2008, foram os arguidos condenados pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à segurança social, p. e p. pelos arts. 107º e 105º, nº 1, do RGIT, o primeiro, na pena de 210 dias de multa à razão diária de € 8, perfazendo a multa global de € 1.680, e a segunda, na pena de 230 dias de multa, à razão diária de € 7, perfazendo a multa global de € 1.610.
Foram ainda os arguidos solidariamente condenados no pagamento ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP da quantia de € 32.556,52, acrescida de juros de mora contados desde 12 de Julho de 2007, à taxa de 4% e até integral pagamento.
Inconformado com a sentença, dela recorre o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP, formulando no termo da respectiva motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“ (…).
1 – Sobe o presente recurso da, aliás douta sentença proferida quanto ao pedido de indemnização cível, na parte em que:
Julga-se parcialmente procedente o pedido civil deduzido pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, condenando os demandados “…, Lda” e … a pagar-lhe, solidariamente a quantia de € 32.556,52 (trinta e dois mil, quinhentos e cinquenta e dois cêntimos) acrescido de juros de mora, contados desde 12.07.2007, à taxa legal de 4% até efectivo e integral pagamento.
2 – Ou seja, desde logo não se concorda, com a aplicação da taxa de juro legal de 4% aos montantes peticionados pela segurança social quando deveria ter efectuado uma aplicação das taxas de juro privativas da segurança social, determinadas pelos artigos 18.º do Dec. Lei 103/80 e 16.º do Dec. Lei 411/91.
3 – Na verdade, a Mt.ª Juiz a quo na sentença doutamente fundamentada decidiu condenar os arguidos … e "…, Lda", pela prática de um crime abuso de confiança contra a Segurança Social, p.p. pelas disposições conjugadas dos artigos 107.º e 105.º 1, do RGIT.
4 – Bem como, a pagar ao demandante Instituto de Segurança Social – IP / Centro Distrital de Segurança Social de Coimbra o valor de € 32.556,52 (trinta e dois mil, quinhentos e cinquenta e seis euros e cinquenta de dois cêntimos) correspondente às quotizações devidas e não pagas referentes aos meses de Agosto de 2004 a Dezembro de 2005, acrescida de juros de mora contados desde 12.07.2007, à taxa legal de 4% até efectivo e integral pagamento desde a notificação até integral pagamento.
5 – Ora, à luz do n.º 1 do art. 483.º do Código Civil "aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação",
6 – devendo "reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação" – art. 562º do Código Civil.
7 – Porém, o reconhecimento dos direitos e cumprimento das obrigações decorrentes dos regimes de segurança social estão consagrados em legislação especial (v.g. Lei de Bases da Segurança Social – Lei 32/2002, de 20 de Dezembro; Regime Jurídico das Contribuições – o já mencionado Dec. Lei n.º 103/80 e Dec. Lei 411/91).
8 – Assim, existindo uma legislação específica quanto ao cálculo e taxas de juros de mora, não derrogadas pela lei geral, não se aplicam as taxas e as regras previstas no Código Civil – n.º 3 art.º 7º C.C.
9 – Deste modo, foram aquelas disposições legais as invocadas pelo demandante cível / Centro Distrital de Coimbra no respectivo PIC, como aplicável ao caso sub judice pois, com a devida vénia e contrariamente ao decidido pelo Tribunal "a quo", entendemos ser aquele normativo legal o aplicável por incumprimento dos prazos de pagamento das contribuições / quotizações à segurança social.
10 – A obrigação, não só tinha prazo certo, como provinha de facto ilícito als a) e b) do nº 2 do art.º 805 do C.C.
11 – Assim, os juros de mora vencidos e peticionados pela segurança social, no total de € 10.881,00, referentes aos meses de Agosto de 2004 a Dezembro de 2005, estão correctamente calculados desde as respectivas datas de incumprimento "por cada mês de calendário ou fracção e a taxa é igual à estabelecida para as dívidas de contribuições e impostos ao Estado", de acordo com o art. 18º do Dec. Lei 103/80 e art. 16º do Dec. Lei 411/91 e, arts 18.º do Dec. Lei 140-D/86, 14 de Junho e n.º 2 do art. 10.º do Dec. Lei 199/99, de 8 de Junho.
12 – Pois, de acordo com os arts 1º e 3º da Lei 73/99, de 16 de Março, as taxas de juro aplicáveis ao caso vertente é de 1 % ao mês.
13 – Sabendo que, o pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Distrital de Segurança Social de Coimbra, continua a ter o seu fundamento na prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social,
14 – que a imposição aos arguidos da obrigação de reparar os danos sofridos por terceiro (in casu a segurança social) depende da verificação dos seguintes pressupostos: a) - o facto; b) - a ilicitude; c) - a imputação do facto ao lesante - culpa; d) - o dano; e) nexo de causalidade entre o facto e o dano.
15 – Então, pode imediatamente concluir-se (como na douta sentença) que os mesmos se encontram integralmente verificados no caso destes autos, a saber, o facto (falta de entrega de valores retidos nos salários dos trabalhadores e membros dos órgãos estatutários, a título de contribuições para a segurança social), ilícito (aliás criminalmente punível) porque violador do património da demandante, bem civil e penalmente protegido, culposo (sob a forma dolosa), causador de danos (empobrecimento da demandante em consequência da falta de arrecadação, em devido tempo, das quantias que lhe eram devidas após pagamento dos remunerações aos trabalhadores dos arguidos) que se repercutiram directamente no património da demandante.
16 – Termos em que os arguidos / demandados são, responsáveis pelo ressarcimento dos prejuízos sofridos pelo demandante – segurança social, devendo considerar-se constituídos em mora a partir do momento em que deviam ter entregue as contribuições a esta e o não o fizeram pois, que tratando-se de uma obrigação com prazo certo, são devidos juros moratórios a contar dessa data e até integral pagamento, tendo em consideração as taxas de juro em vigor durante o período contributivo em dívida e até ao presente. Logo,
17 – dando-se prevalência à lei especial (Neste sentido os doutos Acórdãos da Relação de Coimbra de 06/04/2005 - Proc.º n.º 506/05-5-5.ª Secção, de 01/06/2005 – Proc. 1402/05-5-5.ª Secção, de 30/11/2005 – Proc. 3500/05-5-5.ª Secção e de 01/06/2005 – Proc. 1533/05-4.ª Secção e Ac. da Relação do Porto de 2003/11/05 – Pf. Rec. n.º 0343440) o pedido de indemnização cível referente a quotizações, no valor de € 32.556,52 e os correspondentes juros de mora vencidos, no montante de € 10.881,00 e vincendos até integral pagamento, foi correctamente deduzido, pelo que os demandados devem ser condenados ao seu pagamento.
18 – Com o devido e merecido respeito diz, que assim foram violados ou incorrectamente aplicadas as normas do n.º 3 do art 7.º, n.º 1 do art. 483.º, art 562.º e art 566.º, todos do Código Civil e ainda os artigos 18º do Decreto-Lei 103/80 e 16º do Decreto-Lei n.º 411/91, violando igualmente a Lei de Bases da Segurança Social.
Nestes termos, e nos mais de direito, sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, Venerandos Juízes Desembargadores, deve dar-se provimento ao presente recurso interposto pela ofendida e parte cível, revogando-se parcialmente a decisão recorrida no que respeita ao pedido cível, e assim, será feita a verdadeira e costumada JUSTIÇA!
(…)”.
Os demandados civis não responderam ao recurso.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu visto nos autos.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO.
Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 335, Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, 103, e Acs. do STJ de 24/03/1999, CJ, S, VII, I, 247 e de 17/09/1997, CJ, S, V, III, 173).
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são a taxa de juro aplicável aos juros de mora, e o início da mora dos demandados e consequente contagem de juros.
Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida, e que se transcreve:
“ (…).
Pede ainda o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social a condenação dos demandados no pagamento de juros de mora.
Nos termos do artigo 16º do Decreto-Lei nº 411/91, de 17 de Outubro, ''pelo não pagamento das contribuições à segurança social nos prazos estabelecidos são devidos juros de mora por cada mês de calendário ou fracção", sendo a respectiva taxa igual à estabelecida para as dívidas de impostos ao Estado e aplicada da mesma forma, ou seja, nos termos do artigo 3º do Decreto-Lei nº 73/99, de 16 de Março.
Acontece, porém, que estamos a apreciar o pedido com base na responsabilidade civil extracontratual, pelo que os juros devidos são apenas os juros civis, calculados, portanto, de acordo com a Portaria n.º 291/03, de 08.04, ou seja, à taxa 4%.
Por outro lado, só são devidos juros desde a data do ilícito, nos termos do artigo 805º, n.º 2, alínea b) do Código Civil. Actualmente, o crime previsto de abuso de confiança contra a Segurança Social só se encontra verificado com a ocorrência da condição objectiva de punibilidade prevista no artigo 105º, n.º 6 do R.G.I.T.
Assim, os juros só se vencem depois de decorridos os 30 dias referidos na citada norma.
Os arguidos foram notificados para pagar os montantes em causa em 12.06.2007 (cfr. fls. 106 e 107), pelo que apenas são devidos juros a partir de 12.07.2007.
Estão, assim, os demandados (arguido e sociedade, pois que aquele agiu em nome, por conta e no interesse desta) obrigados ao pagamento, não só de € 32.556,52, mas também dos juros de mora vencidos, a partir de 12.07.2007 e calculados à taxa de 4%, respondendo ambos, solidariamente, por tal pagamento, nos termos do artigo 497º do Código Civil.
(…)”.
Da taxa de juro aplicável aos juros de mora, e do início da mora dos demandados
1. O nosso processo penal consagra o princípio da adesão segundo o qual, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei (art. 71º, do C. Processo Penal).
Por sua vez, dispõe o art. 129º, do C. Penal que a indemnização de perdas e danos emergentes da prática de um crime é regulada pela lei civil.
O demandante civil funda o pedido de indemnização que deduziu contra os arguidos no acto ilícito e doloso, por ambos praticado, preenchedor do tipo do crime p. e p. pelos arts. 107º e 105º, nº 1, do RGIT – dedução e apropriação de contribuições obrigatórias para a segurança social – do qual resultaram danos consistentes no não recebimento das quantias retidas e não entregues. E por isso, para além do pedido de condenação no pagamento do somatório destas quantias, pede igualmente a condenação no pagamento de juros de mora calculados de acordo com a legislação especial por dívidas ao Estado.
Na sentença recorrida, os arguidos foram condenados pela prática do crime referido, e nela foram também considerados verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, designadamente que o dano resultante da não entrega ao demandante das contribuições devidas ascendeu a € 32.556,52, e a mora dos demandados.
Porém, quanto à mora, foi aplicada a taxa de juros de 4%, prevista na Portaria nº 291/2003, de 8 de Abril, por se ter entendido que são apenas devidos os juros civis, já que o pedido tem por base a responsabilidade civil extracontratual. E foi ainda entendido que tais juros apenas são devidos a partir da data do ilícito, nos termos do art. 805º, nº 2, b), do C. Civil a qual, face ao disposto no art. 105º, nº 6, do RGIT, ocorreu trinta dias após a notificação aí prevista ou seja, em 12 de Julho de 2007.
Vejamos.
O Dec. Lei nº 103/80, de 9 de Maio – regime jurídico das contribuições para a Previdência – estabelece no seu art. 5º, nº 3, que o pagamento das contribuições deve ser feito no mês seguinte àquele a que disserem respeito, dentro dos prazos regulamentares em vigor.
Relativamente a juros de mora, dispõe no seu art. 18º:
1 – Decorrido o prazo estabelecido para o pagamento das contribuições são devidos juros de mora.
2 – A taxa de juros de mora por cada mês de calendário ou fracção é igual à estabelecida para as dívidas de contribuições e impostos ao Estado.”.
Por sua vez, o art. 10º, nº 2, do Dec. Lei nº 199/99, de 8 de Junho, estabelece que as contribuições para as instituições de segurança social devem ser pagas até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que disserem respeito.
Ainda relativamente a juros de mora, estabelece o art. 16º, do Dec. Lei nº 411/91, de 17 de Outubro:
1 – Pelo não pagamento das contribuições à segurança social nos prazos estabelecidos são devidos juros de mora por cada mês do calendário ou fracção.
2 – A taxa de juros de mora é igual à estabelecida para as dívidas de impostos ao Estado e é aplicada da mesma forma.”.
Finalmente, nos termos do art. 1º, do Dec. Lei nº 73/99, de 16 de Março, estão sujeitas a juros de mora as dívidas ao Estado e a outras pessoas colectivas públicas que não sejam empresas públicas, provenientes designadamente, de contribuições.
E dispõe o art. 3º, nº 1, do mesmo diploma:
A taxa de juros de mora é de 1% se o pagamento se fizer dentro do mês de calendário em que se verificou a sujeição aos mesmos juros, aumentando-se uma unidade por cada mês do calendário ou fracção se o pagamento se fizer posteriormente.”.
2. Quer na responsabilidade civil fundada na prática de crime de abuso de confiança contra a segurança social, quer na responsabilidade civil apenas decorrente do incumprimento de obrigações legais a que os contribuintes estão obrigados, estamos perante responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito. Na verdade, neste último caso, o contribuinte faltoso viola norma destinada a proteger alheios (art. 483º, nº 1, do C. Civil).
Por isso, tanto na jurisdição criminal como na jurisdição tributária – considerada em sentido amplo – o faltoso, enquanto sujeito passivo da obrigação de indemnizar, deve pagar as prestações em dívida e os juros respectivos.
O devedor incorre em mora quando culposamente atrasa o cumprimento da prestação, mas subsiste a possibilidade futura de tal cumprimento (art. 804º, nº 2, do C. Civil).
Em regra, o devedor só fica constituído em mora, depois de ter sido interpelado, judicial ou extrajudicialmente, para cumprir (art. 805º, nº 1, do C. Civil). Mas casos há em que não é aplicável a regra geral. Assim, haverá mora do devedor, independentemente da interpelação, se a obrigação tiver prazo certo, se a obrigação provier de facto ilícito ou se o devedor impedir a interpelação (nº 2, do art. 805º, do C. Civil).
A mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor (art. 804º, nº 1, do C. Civil).
Nas obrigações pecuniárias, a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora (art. 806º, nº 1, do C. Civil), sendo devidos os juros legais salvo convenção em contrário (nº 2 do mesmo artigo). E os juros legais, como é sabido, são os fixados de acordo com o disposto no art. 559º, nº 1, do C. Civil, daqui se chegando à Portaria nº 291/2003, de 8 de Abril, referida na sentença, e à aplicada taxa de 4%.
Acontece que, e como resulta do que antecede, existe legislação especial relativamente a juros de mora por dívidas ao Estado. A lei especial prevalece sobre a lei geral, salvo quando for outra a intenção inequívoca do legislador (art. 7º, nº 3, do C. Civil).
Nenhuma disposição legal aponta no sentido, e muito menos, inequívoco, de que foi propósito do legislador afastar a aplicação das taxas de juro moratórias que se encontram previstas na legislação especial a que aludimos. Por outro lado, o art. 129º, do C. Penal, quando alude à «lei civil», não pode ser interpretado no sentido de excluir a aplicação da lei tributária quando esteja em causa a prática de um crime tributário do qual resultou responsabilidade civil.
Assim, existindo legislação especial quanto a taxas de juro e cálculo destes, relativamente às dívidas por contribuições à segurança social, deve tal legislação ser aplicável aos pedidos de indemnização deduzidos em processo-crime que tenha por objecto uma infracção tributária [em que seja lesada a segurança social] e não a legislação geral designadamente, o art. 559º, nº 1, do C. Civil.
3. Face às disposições legais atrás citadas designadamente, aos arts. 5º, nº 3, do Dec. Lei nº 103/80, de 9 de Maio, e 10º, nº 2, do Dec. Lei nº 199/99, de 8 de Junho, as contribuições para as instituições de segurança social devem ser pagas até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que disserem respeito, o que significa que estamos perante obrigações com prazo certo, incorrendo o respectivo devedor em mora, independentemente de interpelação.
Assim, sendo, o prazo de contagem dos juros de mora, inicia-se no 15º dia do mês seguinte àquele a que as contribuições respeitam.
Na sentença recorrida entendeu-se que o prazo de contagem dos juros de mora se inicia no dia 12 de Julho de 2007 ou seja, trinta dias depois da notificação feita para pagar os montantes em causa, em 12 de Junho de 2007, uma vez que o crime só se encontra verificado com a ocorrência da condição objectiva de punibilidade prevista no art. 105º, nº 6, do RGIT.
Parece-nos que a referência legal seria antes de fazer para o nº 4, b), do art. 105º, pois a notificação referida foi feita com tal menção.
Em qualquer caso, o tipo do crime de abuso de confiança contra a segurança social fica preenchido quando o agente não entrega, dentro dos prazos fixados, os montantes que deduziu dos valores das remunerações pagas a trabalhadores e a membros dos órgãos sociais, referentes às contribuições por este devidas. O que se prevê no nº 4 do art. 105º, do RGIT são condições de punibilidade. As condições objectivas de punibilidade integram, juntamente com as causas de exclusão da pena, os pressupostos adicionais da punibilidade. É controvertida a questão de saber se a punibilidade deve ser considerada, a par da tipicidade, da ilicitude e da culpa, como mais uma categoria da doutrina geral do crime. Para nós, as categorias do crime são a tipicidade, a ilicitude e a culpa. Com a sua verificação o facto, em regra, é também punível.
Se, por razões de prevenção geral ou especial, ou por razões de tutela do bem jurídico, o legislador, excepcionalmente, estabelece uma condição objectiva de punibilidade, é então seguro que ela não integra, nem o facto típico e ilícito, nem a culpa.
Daqui decorre, contrariamente ao que foi decidido na sentença recorrida, que a data da prática do ilícito típico e a data do início da mora e consequentemente, da contagem dos respectivos juros, são coincidentes.
4. Assim e em conclusão de tudo o que antecede, temos que:
- Ao pedido de indemnização civil deduzido pela Segurança Social em processo comum fundado na pratica de crime de abuso de confiança contra a segurança social, é aplicável a taxa de juros de mora de 1% ao mês, aumentando uma unidade por cada mês de calendário ou fracção, se o pagamento se fizer posteriormente ao mês a que respeitarem as contribuições, nos termos do art. 3º, nº 1, do Dec. Lei nº 73/99, de 16 de Março;
- O prazo de contagem dos juros de mora inicia-se no décimo quinto dia do mês seguinte àquele a que as contribuições dizem respeito, nos termos dos arts. 805º, nº 2, a) e 806º, nº 1, do C. Civil, arts. 5º, nº 3, do Dec. Lei nº 103/80, de 9 de Maio, 16º, nºs 1 e 2, do Dec. Lei nº 411/91, de 17 de Outubro, e 10º, nº 2, do Dec. Lei nº 199/99, de 8 de Junho.
Neste sentido, além de outros, decidiram os Acs. desta Relação de 30 de Novembro de 2005, proc. nº 3500/05 in, http://www.dgsi.pt, e de 3 de Maio de 2006, CJ, XXXI, III, 42, da R. do Porto de 11 de Outubro de 2006, CJ XXXI, IV, 206, e da R. de Guimarães de 17 de Junho de 2002, CJ, XXVII, III, 293.
III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso e, em consequência, decidem:
A) Revogar parcialmente a sentença recorrida, condenando agora os arguidos e demandados civis no pagamento ao demandante Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP da arbitrada indemnização de € 32.556,52 (trinta e dois mil quinhentos e cinquenta e seis euros e cinquenta e dois cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa de 1% aumentando uma unidade por cada mês de calendário ou fracção, contados desde o décimo quinto dia do mês seguinte àquele a que as contribuições mensais descriminadas nos factos provados dizem respeito.
B) Revogar ainda a sentença recorrida na parte em que tributou em custas o demandante civil, condenando agora os arguidos e demandados civis nas custas do pedido de indemnização.