Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
523/09.6TBAGD-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 04/28/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 36, 39, 192, 240, 250 CIRE
Sumário: De acordo com o disposto no artigo 250º do CIRE, por referência ao artigo 249º, nº1, a) do mesmo diploma, não é aplicável o plano de insolvência nos processos de insolvência quando o devedor seja uma pessoa singular e não tiver sido titular de exploração de qualquer empresa nos três anos que antecederam o início do mesmo processo.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I.RELATÓRIO

Na sequência do pedido de insolvência formulado por M (…), tendo pelo Administrador da Insolvência sido apresentado relatório a que se reporta o artigo 155º do CIRE, foi designada e realizada Assembleia de Credores com vista à apreciação do mesmo relatório.

Na Assembleia em causa foi proferido despacho judicial que concluiu pela inviabilização da apresentação do Plano de Insolvência, decidindo-se não submeter à deliberação da Assembleia de Credores a referida proposta, determinando o prosseguimento dos autos com a liquidação dos bens apreendidos, ordenando a realização de diligências reputadas necessárias para ser proferido o despacho a que aludem os artigos 238º e 239º, nº1 do CIRE.

Por não se conformar com tal decisão, dela veio a insolvente M (…) interpor recurso de apelação para este Tribunal da Relação, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:

- Estabelece o CIRE que a possibilidade de apresentação de plano de pagamentos em processo de insolvência se encontra limitado às pessoas singulares não titulares de empresa ou seja, pessoas não empresárias ou comerciantes em nome individual ou que não o tenham sido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência estando, assim e em consequência, esta possibilidade vedada às empresas ou às pessoas singulares que tenham ou tivessem sido titulares de empresa.

- O CIRE prevê uma forma adicional de recuperação para os particulares não empresários relativamente aos demais, restringindo-se as hipóteses de recuperação das pessoas colectivas e/ou das pessoas singulares titulares de empresa, no âmbito judicial, à apresentação de um plano de insolvência, pois que, extrajudicialmente, sempre poderiam recorrer ao procedimento extrajudicial de conciliação previsto no D.L. n° 316/98.

- As pessoas singulares não titulares de empresas ou que não o tenham sido nos três anos anteriores ao processo de insolvência, para além de lhes ser possível apresentar plano de pagamentos, podem igualmente apresentar plano de insolvência e ainda socorrer-se, caso o plano de pagamentos ou o plano de insolvência não seja aprovado, da exoneração do passivo restante, se atempadamente requerido.

-…as pessoas singulares vêem alargado o seu leque de possibilidades, podendo optar por apresentar plano de pagamentos, plano de insolvência e ainda da exoneração do passivo restante.

- Se optar pela apresentação de um plano de pagamentos que é admitido, aprovado e cumprido, naturalmente que se encontra vedada a apresentação de um plano de insolvência.

- A apresentação de um plano de insolvência implica obrigatória e necessariamente a declaração de insolvência nos termos dos artigos 36.° ou 39.° do CIRE com os consequentes efeitos jurídicos daí decorrentes,

- Declaração esta que, no caso concreto do plano de pagamentos, é inexistente dado que a insolvência fica suspensa de acordo com o artigo 255º do CIRE.

- Caso o plano de pagamento não venha a obter a aprovação por parte dos credores ou se a sentença de homologação respectiva for revogada, sendo retomados os termos do processo de insolvência de acordo com o artigo 262.° do CIRE, e sendo os efeitos previstos no Título IV do CIRE desencadeados, não podem estar os insolventes e/ou os credores coarctados do direito de, se assim o entenderem, ainda apresentarem o competente plano de insolvência.

- Compulsadas as normas que regulam o plano de insolvência, verifica-se que o Titulo IX tem aplicabilidade às pessoas singulares não titulares de empresas.

- Desde logo por uma questão de sistematização do próprio CIRE, que previu no artigo 198.° providências específicas para sociedades comerciais.

- Foi o próprio Código a estabelecer regras próprias quando se está perante um plano de insolvência que diz respeito exclusivamente a sociedades comerciais, o que, por maioria de razão, nos leva a concluir que o restante normativo é de aplicação geral.

- O legislador não teve qualquer intenção em restringir a aplicabilidade e possibilidade de apresentação de plano de insolvência às pessoas colectivas ou às pessoas singulares titulares de empresas.

- Atente-se, ainda, ao estatuído no artigo 237.°, c), do CIRE referente à exoneração do passivo restante e com aplicação restrita às pessoas singulares que determina que “A concessão efectiva da exoneração do passivo restante pressupõe que: c) Não seja aprovado e homologado um plano de Insolvência;”

- Não deixando, pois, quaisquer margens para dúvidas sobre a possibilidade de aplicabilidade às pessoas singulares do plano de insolvência,

- Fazendo-se assim, então, depender a concessão efectiva da exoneração de passivo restante – que apenas se aplica, repete-se, às pessoas singulares – ao facto de não ter sido aprovado e homologado, no processo em causa, um plano de insolvência.

- Nesta conformidade é entendimento da Recorrente que a Meritíssima Juiz “a quo” fez uma errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 192.°, 249.°, 250.° e 262.° do CIRE.

Pugna a apelante pela revogação do despacho recorrido, e pela sua substituição por outro que admita a apresentação do plano de insolvência por parte da recorrente ou por parte do Sr. Administrador da Insolvência, submetendo-se tal apresentação a deliberação da Assembleia de Credores.

Não foram apresentadas contra – alegações.

Dispensados os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO

1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras[1], importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito[2].

2.  Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar fundamentalmente da admissibilidade ou não da apresentação de plano de insolvência e sua submissão a deliberação pela Assembleia de Credores por pessoas singulares que não são titulares de empresas, nem o foram nos três anos que antecederam a instauração do processo de insolvência.

 

III. FUNDAMENTO DE FACTO

São os seguintes, para além dos descritos no relatório supra, os factos relevantes para a apreciação do objecto do presente recurso:

-M (…) veio requerer, em 27.02.2009, a sua declaração de insolvência com fundamento na “falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante e pelas circunstâncias do incumprimento, revela a impossibilidade de satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações”.

- A mesma exerceu a profissão de professora, encontrando-se actualmente aposentada pela Caixa Geral de Aposentações.

           

            IV. FUNDAMENTO DE DIREITO

            A solução da questão em debate no presente recurso – indagar da admissibilidade ou não da apresentação de plano de insolvência por pessoas singulares não titulares de qualquer empresa nos três anos anteriores à instauração do processo de insolvência – é de manifesta simplicidade, encontrando directa resposta na letra do artigo 250º do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).

            Antes, porém, importará atentar na qualidade da devedora, no caso em discussão: pessoa singular, não titular de empresa, nem na actualidade, nem nos três anos que precederam o pedido de declaração da sua situação de insolvência, qualidade esta nunca colocada em crise.

            A insolvência de não empresários e de titulares de pequenas empresas encontra no capítulo II do CIRE a sua regulação específica, determinando o nº1, alínea a) do artigo 249º do aludido diploma que “o disposto neste capítulo é aplicável se o devedor for uma pessoa singular e (…) não tiver sido titular da exploração de qualquer empresa nos três anos anteriores ao início da insolvência”.

            Por sua vez, dispõe o artigo 250º do CIRE, abrangido pelo mesmo capítulo II, que “aos processos de insolvência abrangidos pelo presente capítulo não são aplicáveis as disposições dos títulos IX e X”.

            O plano de insolvência acha-se contemplado no título IX do CIRE, e o seu tratamento jurídico é consagrado pelos artigos 192º a 222º do diploma em causa.

            Trata-se de uma das providências destinadas à prossecução dos objectivos do processo de insolvência, como decorre desde logo do artigo 1º do CIRE quando prevê que “o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente”.

            Como elucidam Carvalho Fernandes e João Labareda[3], “o art.º 250º estabelece, pela negativa, o regime particular da insolvência de não empresários e de titulares de pequenas empresas, quando declara não ser aplicável, aos respectivos processos, o disposto nos Títulos IX e X.

            Quanto ao Título IX, que rege sobre o plano de insolvência, a razão de ser da exclusão reside no facto de, para os devedores aqui em causa, a lei prever uma figura sucedânea: o plano de pagamentos”.

            Com efeito, em vez do plano de insolvência regulamentado no citado Capítulo IX, prevê o CIRE para os devedores singulares não empresários ou titulares de pequenas empresas a providência específica do plano de pagamento, cujo processamento se encontra plasmado nos artigos 251º a 263º do diploma mencionado, e que, sendo o pedido de insolvência formulado pelo próprio devedor, como no caso, deve ser apresentado conjuntamente com esse pedido na petição inicial[4].

            O devedor só pode apresentar posteriormente esse plano de pagamento quando não seja da sua iniciativa o processo de insolvência, hipótese em que poderá fazê-lo no prazo da contestação, como alternativa à mesma, devendo para esse efeito ser especificamente advertido no acto da citação[5].

            A devedora, no caso em discussão, formulou propósito de apresentar plano de insolvência, cuja admissibilidade se mostra inquestionavelmente excluída pelo artigo 250º do CIRE[6].

            Não apresentou com a petição inicial, como podia/devia, plano de pagamento aos credores, sendo certo que essa faculdade se acha já precludida.

            Acresce ainda que não colhe o argumento invocado pela recorrente alicerçado no disposto no artigo 237º, c) do CIRE, já que a exoneração do passivo restante tem um âmbito de aplicação restrito às pessoas singulares, podendo estas ser ou não titulares de empresas, e sem a sujeição aos requisitos mais apertados previstos nos artigos 249º e 250º do referido diploma.

Acertada foi, pois, a decisão recorrida ao não submeter o plano de insolvência à apreciação da assembleia de credores e ao determinar o prosseguimento dos autos com recurso a diligências consideradas necessárias para ser proferido o despacho a que aludem os artigos 238º e 239º, nº1 do CIRE, dado a devedora ter subsidiariamente formulado na petição inicial pedido de exoneração do passivo restante[7].


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Conclusão:

De acordo com o disposto no artigo 250º do CIRE, por referência ao artigo 249º, nº1, a) do mesmo diploma, não é aplicável o plano de insolvência nos processos de insolvência quando o devedor seja uma pessoa singular e não tiver sido titular de exploração de qualquer empresa nos três anos que antecederam o início do mesmo processo.


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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando, assim, a decisão recorrida.

Custas: pela recorrente.


[1] Artigos 684º, nº 3 e 685-A, nº 1 do C.P.C., na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto
[2] Art.º 664º do mesmo diploma
[3] “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado”, pág. 809
[4] Artigo 251º do CIRE
[5] Carvalho Fernandes, João Labareda, “ob. cit.”, pág. 810
[6] Cf. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Direito da Insolvência”, Almedina, Coimbra, 2009, pág. 280
[7] Cf. artigo 254ºº do CIRE