Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
68/08.1 GBOBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: CONDUÇÃO DE VEÍCULO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
CARTA DE CONDUÇÃO
ESTRANGEIRO
SUBSTITUIÇÃO DE PRISÃO POR MULTA
Data do Acordão: 09/23/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE OLIVEIRA DO BAIRRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 43º CP, 3.º, N.ºS 1 E 2, DO DECRETO-LEI N.º 2/98, 3/1
Sumário: 1. A guia que substitui a carta de condução brasileira entregue no I.M.I.T não é válida para conduzir em Portugal.
2. O n.º 1 do artigo 43.º do Código Penal não consente a interpretação segundo a qual o número de dias da pena de multa de substituição deve corresponder ao número de dias da pena de prisão.
Decisão Texto Integral: I – Relatório.
1.1. S..., com os demais sinais nos autos, foi submetida a julgamento, sob a forma de processo abreviado, porquanto acusada pelo Ministério Público da prática indiciária de factualidade consubstanciadora da comissão de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro.
Realizado o contraditório, através de sentença adrede proferida, além do mais por ora irrelevante, acabou condenada pela autoria do assacado ilícito, na pena de 4 (quatro) meses de prisão cujo cumprimento, porém, se determinou em dias livres, durante o período de 24 (vinte e quatro) fins-de-semana, e com a duração, cada um deles, de 48 (quarenta e oito) horas, devendo a arguida dar entrada no estabelecimento às 9.00 horas de Sábado e sair às 9.00 de Segunda-Feira.
1.2. Desavinda com a medida da sanção e substituição cominada para seu cumprimento, a arguida interpôs recurso, extraindo da respectiva motivação a formulação das conclusões seguintes:
1.2.1. A sentença recorrida violou o disposto no artigo 43.º, n.º 1, do Código Penal, uma vez que, tendo condenado a arguida em pena de prisão inferior a um ano, deveria ter substituído esta pena por multa ou outra pena não detentiva, o que não fez, atento o facto de a mesma ser, como era à data da sentença recorrida, detentora de titulo/carta de condução válida e que a habilita a conduzir veículos automóveis em território português, não existindo, por isso, excepcionalmente, exigências de necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes.
1.2.2. Incorre a sentença sindicada nos vícios de Contradição Insanável da Fundamentação, e Erro Notório na Apreciação da Prova [vide artigo 410.º, n.º 2, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal], uma vez que (entre outros motivos profusamente dissecados ao longo da motivação de recurso), retirou conclusões negadas por factos que anteriormente deu como provados, nomeadamente sob o n.º 14.
1.2.3. Tais vícios, a serem tidos como insusceptíveis de reparação pelo Tribunal de recurso e, logo, a impossibilitarem o conhecimento, desde já, do mérito da causa, impõem o reenvio do processo para novo julgamento, visto o disposto no artigo 426.º do Código de Processo Penal.
1.2.4. Violou, ainda, a sentença recorrida, o artigo 127.º do mesmo diploma legal [Principio da. Livre Apreciação da Prova], ao retirar da prova efectivamente produzida em sede de audiência de discussão e julgamento conclusões e/ou ilações que, realizando um juízo lógico e minimamente vinculado, jamais se permitiria retirar.
1.2.5. A sentença recorrida viola também as normas dos artigos 40.º e 50.º, ambos do Código Penal, pois que deveria ter privilegiado a recuperação da arguida, suspendendo a execução da pena de prisão em que a condenou.
Terminou pedindo o provimento do recurso, com as necessárias consequências.
1.3. Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público junto do Tribunal a quo, sustentando a manutenção do aí decidido.
Admitido o recurso, foram os autos remetidos a este Tribunal.
1.4. Aqui, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente a igual subsistência do sentenciado.
Foi dado acatamento ao estatuído pelo artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
No exame preliminar a que alude o n.º 6 do dito inciso, consignou-se nada obstar ao conhecimento de meritis.
Como assim, determinou-se a recolha dos vistos devidos, o que sucedeu, bem como prosseguimento do recurso com subordinação à presente conferência.
Urge agora ponderar e decidir.
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II – Fundamentação de facto.
2.1. A matéria de facto tida como provada na decisão recorrida tem o teor seguinte:
1. No dia 29 de Novembro de 2007, cerca das 23.15 horas, a ora arguida, conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula …, pela Estrada Nacional n.º 235, em Oiã, área da comarca de Oliveira do Bairro, sem ser titular de carta de condução ou de qualquer outro documento que a habilitasse a conduzir aquele veículo.
2. A arguida conhecia a natureza e as características da viatura e do local onde conduzia, bem sabendo que não estava legalmente habilitada a conduzir aquele veículo e, não obstante, quis conduzi-lo nas referidas características.
3. Agiu livre e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
Mais resultou provado:
4. Confessou integralmente e sem reservas os factos de que vem acusada.
5. Da conduta da arguida não resultaram consequências de relevo.
6. A arguida é solteira.
7. Tem dois filhos, os quais se encontram a viver com o progenitor no Brasil.
8. Encontra-se desempregada.
9. Antes de estar desempregada era bailarina, auferindo € 450,00 por mês.
10. Vive com a sua mãe e o namorado desta.
11. Vive da ajuda do seu namorado.
12. Possui um veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ….
13. Desde o dia 08/01/2007, a arguida está inscrita na Escola de Condução “Evoluir” para obtenção da carta de condução para a categoria B, frequentando as aulas teóricas com assiduidade desde Fevereiro de 2008, sendo que há cerca de seis meses que não frequenta as aulas teóricas.
14. A 03/02/2009 a arguida apresentou no Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, I.P. – Delegação Distrital de Viação de Aveiro, guia de entrada de documentos para pedido de carta de condução (carta de condução 0801677762, país emissor Brasil), constando que tal guia substitui a carta/título de condução até 04/05/2009.
15. Do certificado de registo criminal da arguida consta que a mesma já foi condenado pelo Tribunal Judicial de Ílhavo, por sentença datada de 16 de Novembro de 2006, transitada em julgado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, praticado a 26 de Junho de 2006, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de € 4,00.
16. Mais consta do certificado de registo criminal da arguida que a mesma já foi condenado pelo Tribunal Judicial de Ílhavo, por sentença datada de 24 de Janeiro de 2007, transitada em julgado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, praticado a 8 de Janeiro de 2007, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 7,00.
17. Ainda consta do certificado de registo criminal da arguida que a mesma já foi condenado pelo Tribunal Judicial de Ílhavo, por sentença datada de 30 de Janeiro de 2008, transitada em julgado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, e 121.º, n.º 1 e 122.º, n.º 2, do Código da Estrada, praticado a 21 de Janeiro de 2008, na pena de 4 meses de prisão, suspensa por um ano, mediante a condição de a arguida no prazo de 6 (seis) meses demonstrar nos autos que se encontra inscrita numa escola de condução, com a obrigação de frequentar as aulas teóricas e práticas até final.
2. 2. Na mesma sentença, mas relativamente a factos não provados, consignou-se que:
Provaram-se todos os factos com relevo para a decisão da causa, não havendo por isso factos não provados a enunciar.”
2.3. Por fim, a motivação probatória mais inserta na apontada decisão determina:
No apuramento da factualidade provada o Tribunal formou a sua convicção com base na confissão integral e sem reservas da arguida e nas suas declarações complementares quanto à respectiva situação económica, familiar e profissional.
Na factualidade dada como provada em 13) e 14), o Tribunal atendeu às declarações da arguida que nos mereceram credibilidade, bem como aos dois documentos ora juntos pela arguida.
Foi ainda tido em conta o teor dos demais documentos juntos aos autos.”
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III – Fundamentação de Direito.
3.1. Como é consabido, o âmbito dos recursos define-se através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação (artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), mas isto sem prejuízo do conhecimento, inclusive oficioso, dos vícios ou nulidades respectivamente elencado/a (s) no artigo 410.º, n.ºs 2 e 3, do mesmo diploma, conforme entendimento sufragado no Ac. do STJ n.º 7/95, em interpretação obrigatória.
Sendo assim, visto que se nos não antolha interceder fundamento para qualquer conhecimento oficioso nos moldes referidos, decorre das conclusões da recorrente constituírem questões decidendas ponderarmos se a decisão recorrida padece do vício de contradição insanável da fundamentação ou de erro notório na apreciação da prova, bem como se incorreu em preterição ao princípio consignado no artigo 127.º, do Código de Processo Penal, ou, por outro lado, se é caso de aplicação do regime decorrente do citado artigo 43.º, n.º 1, ou, ainda, de suspensão de execução da pena detentiva cominada.
Vejamos.
3.2. Conforme resulta de profusa jurisprudência de que nos dão nota, v.g., Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, II Volume, Editora Rei dos Livros, 2.ª edição, 2000, págs. 739 e segs., só existe contradição insanável quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que a fundamentação apresentada justificaria uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados.
Por outro lado, o erro notório na apreciação da prova, além de ocorrer quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou da legis artis, igualmente se descortina quando se retira de um facto provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida.
Vícios ambos, sabe-se, a terem de emergir do texto da decisão recorrida, por si só, sem recurso a quaisquer elementos externos.
A recorrente comina a decisão recorrida com tais vícios no justo ponto em que deu como provado no item 14 que “A 03/02/2009 (…) apresentou no Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, I.P. – Delegação Distrital de Viação de Aveiro, guia de entrada de documentos para pedido de carta de condução (carta de condução 0801677762, país emissor Brasil), constando que tal guia substitui a carta/título de condução até 04/05/2009. (sublinhado agora): e fundamentou (de Direito): “Cumpre referir que embora a arguida (…) ter apresentado a 03/02/2009 no Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, I.P – Delegação Distrital de Aveiro guia de entrada de documentos para pedido de carta de condução (carta de condução 0801677762, país e Brasil), constando que tal guia substitui a carta/título de condução até 04/05/09, o certo é que a arguida não possui carta de condução válida.” (também sublinhado nosso)
Ora, considerando a estruturação dos vícios começada por fazer-se, facilmente se intui do malogro desta alegação: com efeito, “a alegada contradição entre as duas afirmações por ela referidas não existe, uma vez que à Recorrente foi entregue uma guia precisamente porque ela não possuía (ainda) carta de condução válida (para o nosso país), ou seja, a guia substituía a carta de condução brasileira entregue no I.M.I.T e não a carta de condução portuguesa, que ainda não havia sido emitida sequer. As duas afirmações alegadamente em contradição estão no seguimento uma da outra” (sic parecer apropriado do Ex.mo PGA).
Por outro lado, a alegação sobre o pretenso erro notório não se mostra por qualquer forma precisado, antes parecendo associado a uma alegação violação agora ao artigo 127.º indicado.
Sucede, porém, também que além de uma mera divagação conceptual sobre o que deve ser o seu conteúdo, nada de fundado opõe a recorrente para que se pudesse ponderar da sua eventual preterição.
Donde a conclusão de manutenção do acervo factual acolhido e com ele a adequada condenação pela prática do ilícito ocorrido em 29 de Novembro de 2007.
3.3. Questão subsequente a dirimir a da verificação de fundamento para a aplicação de uma pena de substituição.
Aqui, indo novamente de encontro ao parecer emitido nesta instância pelo Ex.mo PGA, já propendemos, pelo contrário, a anuir à pretensão da arguida.
Na verdade, resultando do invocado artigo 43.º, n.º 1, que a substituição da prisão é o regime regra e a sua execução a excepção, só uma razão suficientemente forte deve fazer sobrepor esta àquela. Define-a o mesmo normativo, indicando que tem ela de ser ditada pela “necessidade de prevenir futuros crimes.”
Ora, se, aquando da prolação da primitiva sentença, tínhamos apenas o passado criminal da recorrente – que bem justificava um juízo de prognose negativo em relação ao seu comportamento futuro (tanto mais que, sem carta de condução, era proprietária de um veículo automóvel…), ­na sentença agora em crise a situação mostra-se com outros contornos, por virtude dos factos assentes nos itens n.ºs 13 [Desde o dia 08/01/2007, a arguida está inscrita na Escola de Condução “Evoluir” para obtenção da carta de condução para a categoria B, frequentando as aulas teóricas com assiduidade desde Fevereiro de 2008, sendo que há cerca de seis meses que não frequenta as aulas teóricas.] e 14 [A 03/02/2009 a arguida apresentou no Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, I.P. – Delegação Distrital de Viação de Aveiro, guia de entrada de documentos para pedido de carta de condução (carta de condução 0801677762, país emissor Brasil), constando que tal guia substitui a carta/título de condução até 04/05/2009.]
Deles decorre que quando ela praticou o crime aqui em análise, já estava inscrita numa escola de condução e, mais do que isso, quando foi submetida a julgamento, já tinha entregue no I.M.T.T. vários documentos, entre os quais a sua carta de condução brasileira, para obter um título de condução nacional válido.
A conjugação destes factos dão-nos uma perspectiva bastante diferente – e para melhor – da personalidade da recorrente e do que se espera dela em termos de comportamento futuro, porque, afinal, já não pode dizer-se que de nada serviram as condenações anteriores, ou, como se escreve na sentença impugnada, que ela demonstra “insensibilidade às penas em que foi condenada” (fls. 181), já que, pelo menos, se inscreveu numa escola de condução e diligenciou por trocar a sua carta de condução brasileira por uma portuguesa.
Atento este novo circunstancialismo, não se descortina necessidade de manutenção da pena detentiva, que apenas a prevenção especial imporia.
Acresce que por esta forma se obstará, como bem opina o Ex.mo PGA, a que se escreva: “Nem sempre a regra da substituição tem sido posta em prática com correcção. Um arbitrário, erróneo e perverso exagero da ideia preventiva, mais ou menos distorcida, às vezes desfigurada, tem conduzido, muitas vezes, à postergação daquela. Importa, por conseguinte, pôr as coisas no seu lugar, para que não se persista a fazer repressão em nome da prevenção.” Sá Pereira e A. Lafayete, in Comentário penal Anotado e Comentado, 2008, pág. 162.
Cabe, então, substituir a pena de prisão cominada por pena de multa. Sucede, porém, interceder a pergunta: mas que pena de multa? A “correspondente” ao número de dias de prisão arbitrado, ou outra?
Ao contrário do que acontecia com o Código Penal de 1982, sua versão originária, cujo artigo 43.º previa que a pena de prisão não superior a 6 meses era substituída pelo número de dias de multa correspondente, com as alterações que lhe foram introduzidas através do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, tal correspondência deixou de estar prevista expressamente. Na verdade, passou a dispor o n.º 1 do artigo 44.º do Código Penal (versão então introduzida), correspondente àquele artigo 43.º, que “A pena de prisão aplicada em medida não superior a 6 meses é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 47.º”.
A Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, ora vigente, sabemos, manteve intocada esta redacção no artigo 43.º (que corresponde ao artigo 44.º, na versão do Código Penal de 1995), no que diz respeito a este ponto concreto.
Donde a dita pergunta: apesar da supressão expressa do termo “correspondente”, deve continuar a entender-se que aquela norma prevê a correspondência aritmética entre o número de dias de pena de prisão e o número de dias da pena de multa de substituição?
A questão não é pacífica, como nos dá nota o Ac. da Relação do Porto, de 10 de Dezembro de 2008, relatado pelo Ex.mo Desembargador Pinto Monteiro, que acompanharemos.
Assim, no sentido afirmativo, o Acórdão da Relação de Guimarães, de 24.09.07, processo n.º 1423/07-1, que pode ser consultado em www.dgsi.pt.; Maia Gonçalves, na anotação n.º 3 ao art.º 43.º do Código Penal, 9.ª edição, pág. 299; Leal-Henriques e Simas Santos, in Noções Elementares de Direito Penal, 2.ª edição, 2003, pág. 179.
Em sentido inverso, opinam, entre outros, o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1.ª edição, 1993, págs. 366 e seguintes; Adelino Robalo Cordeiro e Odete Maria de Oliveira, in Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal, edição do CEJ, volume II, respectivamente a págs. 65 e seguintes e 73 e seguintes.
O Acórdão da Relação de Guimarães estriba-se na anotação ao art.º 44.º do Código Penal de Maia Gonçalves e na obra de Leal-Henriques e Simas Santos supra citados.
Maia Gonçalves, na obra citada, embora numa edição muito anterior à referida no Ac. RG, mas em todo o caso posterior à data da entrada em vigor das alterações ao Código Penal introduzidas pelo D/L n.º 48/95, refere na nota n.º 3 que “A pena de prisão aplicada em medida não superior a 6 meses é (obrigatoriamente) substituída por igual número de dias de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes.” Não dá, porém, qualquer explicação para o facto de defender que a pena de prisão é substituída por igual número de dias de multa, quando, na data da edição daquela obra, já tinham entrado em vigor as referidas alterações ao Código Penal. A ausência de qualquer referência às alterações introduzidas ao Código Penal pelo D/L n.º 48/95 permite concluir que a dita anotação teve por referência a versão do Código Penal de 1982 e que, em face das alterações entretanto introduzidas, não foi actualizada.
Por sua vez Leal-Henriques e Simas Santos, na obra supra citada, numa edição de 1999, a fls. 133, referem, a respeito da substituição da pena de prisão por multa, no que aqui interessa, o seguinte:
Optando nítida e preferencialmente por censuras criminais que não impliquem a privação da liberdade, o legislador foi ao ponto de impor a regra de que a pena de prisão aplicada deve, em certas circunstâncias, ser substituída por outra reacção criminal menos gravosa.”
Assim acontece quando a execução da prisão aplicada não for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes”.
Daí o art.º 44.º do Código, que no seu art.º 1.º prevê a substituição da pena de prisão “aplicada em medida não superior a 6 meses” “por igual número de dias de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável”, excepto se exigências de prevenção impuserem o cumprimento daquela primeira pena”.
Também nesta obra não foi adiantada qualquer explicação para o facto de se defender que a pena de prisão é substituída por igual número de dias de multa, quando é certo que a mesma foi editada quando já estava em vigor o Código Penal com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei n.º 48/95. As razões para tal omissão assentarão também, provavelmente, tal como no Código Penal de Maia Gonçalves, na falta de actualização da obra face às alterações ao Código Penal anteriormente introduzidas neste.
Refere o Prof. Figueiredo Dias, na obra supra citada, que se o art.º 43.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, na sua versão originária, por um lado oferece um critério que prima pela clareza e pela facilidade de utilização e que tem ademais por ele a tradição do nosso direito – o critério automático de conversão dos dias de prisão pelo número de dias de multa correspondente –, por outro lado, de um ponto de vista político-criminal, é errado, acabando por originar as maiores dúvidas ou mesmo as mais graves injustiças.
Como exemplos destas dúvidas ou injustiças cita o caso de o art.º 43.º, n.º 2, impor que, se o crime for punido com pena de prisão não superior a 6 meses e multa, seja aplicada uma só multa, equivalente à soma da multa directamente imposta e da que resultar da substituição da prisão, e a circunstância de, face ao critério da conversão de 1 dia de prisão por 1 dia de multa, tornar incompreensível o significado do n.º 3 do art.º 43.º, quando dispõe que é aplicável à multa que substituir a prisão o regime do art.º 46.º.
Refere mais a propósito desta questão que “O sistema só poderia funcionar sem contradição se pudesse supor-se que, no pensamento legislativo, os limites da moldura penal prevista para um crime suporiam uma total correspondência entre o número de dias de multa e o de dias de prisão. Uma tal suposição seria, porém, manifestamente infundada, tanto nos casos em que a lei prevê uma punição alternativa em prisão ou multa, como naqueles em que apenas prevê uma punição em prisão. Basta ponderar que a multa, devendo ser a alternativa-regra para a punição da pequena e média criminalidade (prisão até 3 anos, ou seja, até 1095 dias), tem como limite máximo 300 dias. E na PE não há um único caso em que, cominando-se a alternativa de prisão ou multa, o número de dias equivalha ao daquela!”.
Face às dificuldades supra referidas na aplicação do sistema, propõe a seguinte solução:
A solução deveria, pois, ser outra. Se o tipo legal cominasse multa em alternativa, o tribunal deveria remeter-se à moldura penal da multa daquele constante; se não cominasse pena de multa alternativa, o tribunal deveria remeter-se ao limite geral da multa constante do art.º 46.º-1, podendo justificar-se o agravamento, que como regra daqui poderia resultar, pela circunstância de o legislador não ter, em princípio, considerado adequada a punição com multa do tipo de crime respectivo. Dentro da moldura penal da multa assim obtida, o tribunal mover-se-ia, em seguida, de acordo com os restantes critérios de medida da pena constantes do art.º 46.º”.
Refere mais, a propósito desta questão, o seguinte:
Resta saber se esta doutrina – que temos, pelas razões expostas, como mais exacta – só pode defender-se de jure condendo ou deve já sufragar-se de lege lata. No último sentido fala a referência do art.º 43.º segundo a qual é aplicável à multa que substituir a prisão o regime do art.º 46.º; devendo então entender-se que, quando no art.º 43.º-1 se fala em “número de dias de multa correspondente”, a correspondência em causa não é aritmética, mas normativa”.
Quanto à questão da determinação concreta da pena de multa de substituição, o artigo 43.º do Código Penal de 1982 – ao preceituar que a pena de prisão seria substituída pelo número de dias de multa correspondente e ao estabelecer que se aplicaria à pena de multa de substituição o regime constante dos arts. 46.º e 47.º relativos à pena pecuniária principal – levantava algumas dúvidas sobre a natureza, aritmética ou normativa, daquela correspondência.”
E se é verdade que o critério da correspondência directa – um dia de prisão substituído por um dia de multa – tinha a seu favor a simplicidade da utilização, o facto é que, ao longo de todo o Código, não existia disposição donde resultasse a referida correspondência.”
Adelino Robalo Cordeiro, na obra citada, pág. 52, refere a este propósito que “O art.º 44.º não preceitua agora expressamente, como o anterior artigo 43.º, que a prisão seja substituída pelo número de dias de multa correspondente, antes remetendo-nos para o art.º 47.º e, por via deste, para o art.º 71º. Fica, assim, claro – uma vez por todas – que a correspondência entre as duas penas não se obtém necessariamente pela igualação das respectivas medidas, senão pela determinação destas por recurso a igual critério.”
Por sua vez, Odete Maria de Oliveira, na obra citada, págs. 73 e 74, embora criticando a bondade da opção do legislador por ter afastado o recurso automático a qualquer tipo de correspondência, acaba por aceitar que com a redacção dada ao artigo 44.º deixou de se verificar a correspondência entre o número de dias de prisão e o número de dias de multa.
Escreveu, a propósito, o seguinte:
O art.º 44.º, n.º 1, já não alude à substituição pelo número de dias de multa correspondente.
Como já vimos, determina-se agora, na parte final desse número, ser correspondentemente aplicável o disposto no art.º 47.º.
Assim, na fixação da medida concreta da pena de multa de substituição, o Tribunal deverá mover-se dentro da moldura legal prevista no art.º 47.º, n.º 1 – em regra o limite mínimo de 10 dias e o máximo de 360 dias – de acordo com os critérios constantes do n.º 1 do art.º 71.º.”
Atendendo a que na reforma de 1995 a redacção do antigo artigo 43.º (que passou a artigo 44.º e que hoje é novamente artigo 43.º) foi alterada no sentido de eliminar essa conversão automática, e que foi o Prof. Figueiredo Dias quem presidiu à Comissão de Revisão, que praticamente consagrou, em letra de lei, todas as críticas que no seu livro se faziam ao regime das consequências jurídicas do crime, parece-nos que o que se pretendeu foi, precisamente, consagrar o entendimento de que na fixação da pena de multa de substituição haveria que trabalhar com a moldura prevista para essa pena (10 a 360 dias), abandonando a ideia de que o número de dias de multa deveria corresponder exactamente ao período temporal da pena de prisão substituída.
Temos assim como acertada a conclusão de que o citado n.º 1 do artigo 43.º do Código Penal não consente a interpretação segundo a qual o número de dias da pena de multa de substituição deve corresponder ao número de dias da pena de prisão.
A sufragar-se interpretação contrária manter-se-iam as mesmas dúvidas e dificuldades referidas pelo Prof. Figueiredo Dias. Com efeito, a título de exemplo, se um arguido fosse condenado numa pena de um ano de prisão substituída por multa, o que o n.º 1 do artigo 43.º do Código Penal agora permite, e se se fizesse a correspondência automática, deparar-nos-íamos com a seguinte situação: por um lado, a pena de multa correspondente a um ano de prisão teria de ser de 365 dias, mas, por outro lado, o tribunal não podia fixar a pena de multa de substituição naquele número de dias por a isso obstar o n.º 1 do artigo 47.º, que prevê que o limite máximo da pena de multa é de 360 dias!
Assim sendo, e porque o n.º 1 do artigo 43.º manda aplicar correspondentemente o artigo 47.º e este remete para o art.º 71.º, são estas as disposições legais que devem ser aplicadas na determinação da medida concreta da pena de multa.
Nos termos do n.º 1 do artigo 47.º do Código Penal, a pena de multa é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 do artigo 71.º, sendo, em regra, o limite mínimo de 10 dias e o máximo de 360. Temos assim que o critério para a determinação do número de dias de multa resultante da substituição da pena de prisão não tem necessariamente de corresponder ao número de dias desta, embora nada obste a isso, devendo a sua determinação ser feita em conformidade com o estabelecido no artigo 71.º do Código Penal.
Nos termos deste normativo, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal, na determinação da medida concreta da pena, atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais do agente e a sua situação económica e a sua falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
No caso, depara-se-nos ilícito de natureza dolosa; são acentuadas as exigências de prevenção, quer geral, tendo em conta o grande número de situações similares que vão chegando à barra dos Tribunais, quer especial, haja em vista o iter delinquente da recorrente.
Importa, por outro lado, atender à sua postura em audiência, assumindo a autoria dos factos; a sua situação pessoal e inexistência de outros antecedentes criminais conexionados com distinto tipo de crimes.
Tudo conjugado, mostra-se proporcionada uma pena situada em limiar ligeiramente acima da média da moldura abstracto cominada, ou seja, uma pena de 200 dias de multa.
De acordo com o n.º 2 do artigo 47.º do Código Penal, a determinação do quantitativo diário da multa deve ser fixado em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.
A situação económica e financeira da arguida é de dificuldade, como resulta dos factos provados. Por isso que se justifica a sua aplicação no limiar mínimo legal de € 5,00.
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IV – Decisão.
São pois termos em que no provimento parcial da impugnação, mantendo-se o demais decidido em 1.ª instância se substitui todavia a pena de prisão aí aplicada pela pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros).
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 3 UCs.
Notifique.
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Coimbra, 23 de Setembro de 2009