Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
19/08.3 GBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: CRIME DE FURTO
TENTATIVA
LIVRE CONVICÇÃO DO JULGADOR
DIREITO AO SILÊNCIO
PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO REO
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
Data do Acordão: 12/09/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COVILHÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS; 32º DA CRP, 22º E 203º DO CP E 127º, 358º, 359º DO CPP
Sumário: 1.A ratio do instituto do artigo 359.º é a protecção dos direitos de defesa do arguido e este pode defender-se dos factos e da imputação que lhe foi feita, sendo indiferente que se tivesse “passado” de uma co-autoria consumada para uma autoria tentada. Isto é, para um mero minus relativamente ao que constava da acusação.
2.Na apreciação da prova, o tribunal é livre de formar a sua convicção desde que essa apreciação não contrarie as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos.
3.Os Tribunais Superiores têm salientado, una voce, que o recurso em matéria de facto assume fulcral importância para a salvaguarda dos direitos constitucionais de defesa e, para tanto, deve a Relação proceder ao efectivo controlo da matéria de facto provada na 1.ª instância, por confronto desta com a documentação em acta da prova produzida oralmente na audiência.
4.Porém, essa dimensão do recurso não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, como se a decisão da 1.ª instância não existisse, mas sim, e apenas, remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente.
5.Assim, para atingir a completa delimitação do objecto do recurso e obstar à sua utilização apenas para sobrepor uma nova apreciação àquela formulada em 1.ª instância, veio o legislador processual penal da revisão operada pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto, a par da eliminação da exigência da transcrição dos depoimentos, impor ao recorrente em matéria de facto que na motivação proceda a uma tríplice especificação: concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; e ainda, quando o solicitar, concretas provas a renovar.
6. Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: deve o recorrente ter como referência o consignado na acta quanto ao registo áudio ou vídeo das prova prestadas em audiência mas também indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.ºs 4 e 5 do artigo 412.º do CPP).
7.O direito ao silêncio, referido também no artigo 343.º, n.º 1, é uma expressão importante do direito de defesa, no quadro do princípio segundo o qual ninguém pode ser obrigado a depor contra si mesmo (nemo tenetur se detegere).
8.Percebe-se, com efeito, a partir do carácter complexo de que se revestem as declarações do arguido, que este goze do direito ao silêncio e que seja inexigível o cumprimento do dever de verdade em relação aos factos que lhe são imputados, dever que, a existir, poderia inibir o arguido na estruturação da sua defesa.
9. Muito embora o arguido esteja isento do ónus de provar a sua inocência, não podendo ver juridicamente desfavorecida a sua posição pelo facto de exercer o seu direito ao silêncio – de que não é legítimo extrair qualquer consequência, seja para determinar a culpa, seja para determinar a medida concreta da pena –, não é menos verdade que quando é do interesse do arguido invocar um facto que o favorece – e que ele poderá ser o único a conhecer –, a manutenção do silêncio poderá desfavorecê-lo.
10. A dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal.
11. Para a consumação do crime de furto tem-se entendido que é suficiente, por exemplo, a transferência da disponibilidade da coisa do seu titular (usualmente respectivo proprietário) para o agente (normalmente implicando desapossamento do proprietário e sua integração no património do agente), não sendo necessário que este último detenha a coisa de forma pacífica ou em tranquilidade ou sossego. Ou seja: não é necessário a conservação da posse da coisa, em poder do agente, de forma segura (illatio), para que se considere verificada a consumação do crime de furto.
12. Realizados todos os elementos constitutivos do tipo ocorre a consumação formal do crime de furto, ficando este assim perfeito, não sendo necessário que simultaneamente ocorra a sua consumação material, podendo esta, enquanto fase
ulterior, ocorrer posteriormente.

13.No plano normativo, a tentativa constitui um título autónomo de crime, caracterizado pelo evento ofensivo que lhe é próprio (perigo), embora conservando o mesmo nomen juris do crime consumado (tipo) a que se refere e de que constitui execução incompleta. A configuração da tentativa como ilícito autónomo nasce da conjugação das duas normas: a da parte especial que incrimina determinado facto e a do artigo 22.º que estende a incriminação a actos que não representam ainda a consumação do crime a que se referem.
14. O critério legal para a distinção entre actos preparatórios e actos de execução é um critério objectivo; os actos de execução hão-de conter já, eles próprios, um momento de ilicitude, pois ainda que não produzam a lesão do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora do crime consumado, produzem já uma situação de perigo para esse bem.
15. O arguido ao permanecer no local em que foi surpreendido pelos agentes da autoridade nas circunstâncias descritas, não o fazia ele com outra intenção (aliás, mesmo admitida pelo próprio, que aceita alguma participação no subtrair do gasóleo e no encher das 14 vasilhas com o mesmo) que não a de furtar, sendo indiferente que se tenha ou não apropriado dos objectos (aliás, se se tivesse apropriado, tal acto consumaria o assacado crime de furto).
16.Assim, de harmonia com o disposto no já referido artigo 22.º, n.º 2, alínea a), os actos praticados são de execução e constituem – em relação ao crime de furto – uma tentativa: o arguido praticou aqueles actos de execução do crime que decidira cometer, sem este se consumar.
(As notas de rodapé referentes à doutrina e jurisprudência continuam a constar na fundamentação do acórdão)
Decisão Texto Integral: I – Relatório.
1.1. Conjuntamente com um outro, ora não recorrente, o arguido P…, já devidamente identificado, foi submetido a julgamento no Tribunal recorrido acusado pelo Ministério Público da prática indiciária de factos consubstanciadores da co-autoria material consumada de um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal.
Operado o contraditório, em cujo decurso se deu acatamento ao disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal (cfr. acta de fls. 241/2), através de sentença proferida, mostra-se ele condenado, embora sob a mera forma de tentativa, pela prática de um tal tipo de crime, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de € 8,00, ou seja, na multa global de € 560,00.
1.2. É na irresignação com o decidido, que recorre, extraindo da respectiva motivação as conclusões seguintes:
1.2.1. O pedaço individualizado de vida trazido pela acusação foi, na sequência do julgamento, em resultado da matéria de facto dada como provada, totalmente transfigurado, com novos factos, que dão um matiz completamente diferente à actuação imputada ao arguido, pondo em causa a sua defesa.
1.2.2. Estamos, assim, perante uma nova versão dos factos, divergindo claramente a versão da sentença daquela que resulta do texto da acusação.
1.2.3. Tal modificação consubstancia uma verdadeira alteração substancial dos factos contidos na acusação, que o tribunal estava impedido de tomar em conta para efeitos de condenação neste processo, porquanto estamos perante uma valoração distinta dos acontecimentos descritos na acusação e, com isso, surpreende-se o arguido, ora recorrente, com novos factos. Em suma:
1.2.4. Da comparação do quadro factual descrito na acusação com o vertido na sentença recorrida resulta uma alteração substancial dos factos, que não pode ser tomada em conta pelo tribunal para efeito de condenação no processo em curso (artigo 359.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), pelo que, tendo-o sido, a sentença é nula, nos termos do preceituado no artigo 379.º, n.º 1, alínea b) do mesmo diploma.
1.2.5. Quando assim não se entenda – no que não se concede –, afigura-se que o M.mo Juiz a quo incorreu em erro notório erro notório na apreciação da prova tal como sobressai do texto da decisão recorrida.
1.2.6. O princípio da livre apreciação da prova não permite ao julgador um juízo subjectivo, fundado em provas circunstanciais; não lhe permite fazer uma apreciação pessoal; exige-lhe que faça uma apreciação objectiva, segundo as regras da experiência, em termos tais que, face aos elementos de prova objecto desse processo cognitivo, não fique qualquer dúvida de que os factos ocorreram do modo como foram dados como provados.
1.2.7. No caso vertente, não obstante seja concebível admitir a existência de um conjunto de circunstâncias que podem indiciar o que o M.mo Juiz a quo concluiu na sentença recorrida, tais circunstâncias não permitem, porém, dar tal matéria como provada, atento o grau de certeza exigível em direito criminal.
1.2.8. As provas circunstanciais apontadas na sentença recorrida permitem conjecturar que o recorrente pode ter tido alguma ligação a um possível furto de gasóleo, o que não permitem é dar como provada a matéria que o tribunal sindicado deu como assente, sob pena de se ultrapassarem os limites dos princípios da legalidade e da livre apreciação da prova.
1.2.9. É manifesto, assim, que o tribunal valorou e interpretou erradamente a prova produzida nos autos. Finalmente:
1.2.10. Dispõe o n.º 1 do artigo 22.º do Código Penal que “quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se”, estamos perante uma tentativa. Por seu turno, prescreve o n.º 2 do mesmo normativo que “são actos de execução: a) os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime; b) os que foram idóneos a produzir o resultado típico; c) os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.”
1.2.11. Refere, a este respeito, a sentença recorrida que “ (…) o arguido decidiu cometer um crime de furto, que não chegou a consumar-se, tendo praticado um conjunto de actos de execução, designadamente estava preparado para transportar umas bilhas em plástico, as quais (14 delas) estavam cheias de gasóleo, que são idóneos a produzir o resultado típico, a subtracção de coisa móvel.”
1.2.12. Partindo do pressuposto – que se rejeita – de que o arguido decidiu cometer um crime de furto, da matéria de facto dado como assente não resulta que tenha praticado actos de execução desse crime.
1.2.13. Mesmo dando com assente que o arguido decidiu colaborar na subtracção do gasóleo referido nos autos, a sua actuação não passou da mera preparação. Ora,
1.2.14. Consubstanciando a actuação imputada ao arguido a prática dum mero acto preparatório, uma vez que estes não são passíveis de punição, deve o mesmo ser absolvido.
1.2.15. Decidindo nos termos em que o fez, a sentença recorrida violou, assim, o preceituado no citado artigo 359.º, n.º 1, enfermando, por isso, de nulidade, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea b), também mencionado.
1.2.16. Caso assim se não entenda, deverá a dita sentença ser revogada agora por infracção ao estatuído nos artigos 127.º do CPP; 22.º e 203.º, estes ambos do CP.
Terminou pedindo que se decida em conformidade ao alegado.
1.3. Notificado para tanto, o Ministério Público respondeu sustentando o improvimento do recurso.
Proferido despacho de sua admissão, foram os autos remetidos a esta instância.
1.4. Aqui, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente a idêntico improvimento.
Cumpriu-se com o disciplinado pelo artigo 417.º, n.º 2, do CPP.
No exame preliminar a que alude o n.º 6 deste inciso, consignou-se nada obstar ao conhecimento de meritis.
Consequentemente, ordenou-se a recolha dos vistos devidos, o que sucedeu, bem como o prosseguimento do recurso com submissão à presente conferência.
Cabe, então, ponderar e decidir.
*
II – Fundamentação de facto.
2.1. Na sentença recorrida, teve-se por provada (no que respeita ao ora recorrente) a factualidade seguinte:
1. No dia… de …. de 2008, cerca das 21:30 horas, o arguido P… encontrava-se junto às obras do 3.º troço do canal do Aproveitamento Hidroagrícola da Cova da Beira, próximo da localidade de…Z concelho da Covilhã, no veículo automóvel ligeiro de mercadorias, de matrícula …X., marca …., modelo …, pertencente a L….
2. O arguido estava nesse local para transportar, nesse veículo, dezasseis bilhas em plástico: catorze delas estavam cheias de gasóleo, sete das quais com capacidade de vinte litros e sete com capacidade de vinte e cinco litros, sendo que duas estavam vazias, no valor de cerca de € 350,00.
3. Esse gasóleo havia sido retirado dos depósitos de duas máquinas industriais, urna marca Caterpillar e outra de marca Komatsu, que aí estavam estacionadas, pertencentes à sociedade comercial M…, S.A.
4. O arguido P.. sabia que as aludidas bilhas de plástico continham gasóleo que havia sido retirado dessas máquinas industriais pertencentes à sociedade comercial M… S.A.
5. Apesar disso, actuou com o propósito de se apropriar desse gasóleo, não obstante saber que o mesmo não lhe pertencia e que actuava sem o consentimento e contra a vontade da sociedade acima aludida, proprietária do mesmo.
6. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal como crime.
7. O combustível supra aludido foi integralmente recuperado pela firma proprietária, graças à intervenção de agentes da GNR, os quais se deslocaram ao local na sequência de um telefonema realizado por pessoa não apurada.
(…)
12. O arguido P.. é casado e nasceu a …./1971.
13. É técnico de venda e aufere mensalmente cerca de € 900,00.
14. A mulher trabalha e aufere cerca de € 1.000,00.
15. Residem em casa própria.
16. Tem o 11.º ano de escolaridade.
17. Os arguidos não têm antecedentes criminais.”
2.2. Na mesma sentença, mas agora relativamente a factos não provados (e arguido recorrente) exarou-se, por seu turno, que:
Não se provaram quaisquer outros factos susceptíveis de influir na decisão da causa, designadamente, que:
(…).
b) Os arguidos abriram o tampão do depósito de combustível das máquinas industriais aludidas em 3. e introduziram dentro de cada um dos depósitos uma mangueira de plástico e daí retiraram gasóleo aí existente.
c) Os arguidos actuaram em comum acordo e em comunhão de esforços.
d) Os arguidos não se tentaram apropriar de combustível.
e) Os arguidos estavam no local errado, à hora errada, nada tendo a ver com qualquer furto de combustível.
f) Os arguidos são pessoas sérias e honestas e como tal são considerados e respeitados no meio social em que se inserem.”
2.3. Por fim, e no que tange à motivação probatória da sentença sindicada, preceitua ela (mais uma vez para o mencionado arguido/recorrente):
A convicção do tribunal baseou-se na ponderação à luz das regras da experiência do conjunto da prova produzida, nomeadamente:
a) Para a materialidade dada como provada e como não provada contribuiu o seguinte:
A acusação imputa aos arguidos o facto de, no dia … de … de 2008, cerca das 21:30 horas, se terem dirigido às obras do 3.º troço do canal do Aproveitamento Hidroagrícola da Cova da Beira, próximo da localidade de …Z, na Covilhã, fazendo-­se transportar no veículo automóvel ligeiro de mercadorias de matrícula …X., marca …., modelo…, pertencente ao primeiro, com o propósito de se apropriarem de gasóleo existente nos depósitos de máquinas industriais que aí estavam estacionadas, pertencentes à sociedade comercial M… S.A.
A prova produzida na audiência de julgamento permite-nos concluir, desde logo, o seguinte:
No dia …de …. de 2008, cerca das 21:30 horas, perto das obras do 3.º troço do canal do Aproveitamento Hidroagrícola da Cova da Beira, próximo da localidade de Z…, na Covilhã, encontrava-se o veículo automóvel ligeiro de mercadorias de matrícula…X marca…, modelo… – tal factualidade resulta de forma clara da conjugação do auto de apreensão de fls. 16 com as fotografias de fls. 56 a 58 e com os depoimentos dos agentes da GNR que estiveram no local, sejam as testemunhas V.. e L…, que na sequência de uma chamada se dirigiram ao local aludido na acusação e aí encontraram o veículo supra aludido, sejam as testemunhas J… e L M.., elementos do núcleo de investigação da GNR que se deslocaram ao local para investigação e aí observaram o veículo em causa.
Tal veículo automóvel pertence ao arguido P… – vide o certificado de matrícula da aludida viatura que consta de fls. 17 dos autos.
Da declaração de fls. 34 dos autos, da descrição constante dos documentos de fls. 23 a 32, das fotografias de fls. 54 e 58 e dos depoimentos das já citadas testemunhas que estiveram no local, resulta de forma clara que a sociedade M…, S.A. tinha duas máquinas industriais, uma marca Caterpillar e outra de marca Komatsu, nas obras do 3.º troço do canal do Aproveitamento Hidroagrícola da Cova da Beira, próximo da localidade de …Z, na Covilhã.
Dessas máquinas foi retirado gasóleo sem autorização e contra a vontade dessa sociedade – vide os documentos de fls. 23 a 32 dos autos, as fotografias de fls. 54 e 58, onde se vê o acesso ao depósito do combustível dessas máquinas aberto, a mangueira que consta na fotografia de fls. 55, e que as testemunhas, elementos da GNR, que se deslocaram ao local, confirmaram a sua existência no local, que serviu para retirar o gasóleo das máquinas pela “boca” do acesso ao depósito, mas também as vasilhas cheias de gasóleo que se encontravam no local.
No local em causa, portanto, estavam 16 recipientes em plástico, sendo que 7 deles, de cor azul, com capacidade para 25 litros, estavam cheios de gasóleo, outros 7, com capacidade para 20 litros, estavam cheios de gasóleo, e dois deles estavam vazios – vide o auto de apreensão de fls. 16 dos autos.
Para além disso, no local estava uma mangueira com cerca de 3,5 metros de cor creme e uma par de luvas em plástico sujas de gasóleo – vide o auto de fls. 16, o que é visível nas fotografias de fls. 55 e 57 dos autos, o que foi confirmado pelas testemunhas ouvidas em julgamento, nomeadamente L..M ..e V…
Conforme já referimos, no dia supra aludido, no local estava a viatura X….­visível nas fotos de fls. 56 a 58 –, a qual apresentava na sua caixa resíduos de gasóleo ­vide a foto de fls. 56, confirmada por todas as testemunhas –, sendo que os recipientes de gasóleo supra aludidos encaixavam na caixa da carrinha de forma muito exacta, pois conforme esclareceu a testemunha V… na audiência de julgamento: não cabia nem mais uma nem menos uma, encaixava na perfeição, o que, aliás, é visível na fotografia de fls. 66 dos autos.
No local existem rastos dos pneus da aludida viatura, nomeadamente perto dos recipientes – vide a foto de fls. 55 (os rastos), os pneus que constam de fls. 57, mas essencialmente o enquadramento e as explicações, quanto a esta matéria, dadas pela testemunha L … M…, elemento da GNR, que procedeu à análise do local no dia em que ocorreram os factos.
Esta testemunha deixou claro que haviam rastos daquela carrinha desde a estrada até ao local onde estavam os recipientes.
Ao lado da viatura …X. estava um par de luvas plásticas impregnadas em gasóleo – vide a foto de fls. 57 dos autos e o depoimento de V…, confirmado de forma rigorosa e uniforme também por J… e L …M… elementos da GNR que estiveram no local.
Essas luvas eram iguais a outras que estavam dentro da viatura X… – vide as fotografias de fls. 58, as quais foram confirmadas de forma objectiva e uniforme pela testemunha L.. M… e V…
Para além disso, a tampa do depósito da viatura ,,,,X, o qual estava cheio, conforme deixou claro a testemunha V… que transportou a mesma desse local para as instalações da GNR, apresentava resíduos claros no sentido de que a mesma havia sido abastecida no local, na medida em que, quando os agentes da GNR chegaram ao local, esses resíduos, por um lado, ainda estavam frescos – neste sentido, com toda a segurança, o depoimento de V… – e, por outro lado, não apresentavam qualquer resíduo de pó, o que não é minimamente compatível com o abastecimentos fora daquele local já que o mesmo é um terreno em terra batida. Neste sentido claro pode ver-se as fotografias de fls. 56 e 57 e o enquadramento realizado por todas as testemunhas ouvidas na audiência de julgamento.
Portanto, não temos dúvidas em concluir que os recipientes em causa foram transportados para aquele local e eram para ser transportados, cheios de gasóleo, daquele local pela carrinha X
O local em causa é um lugar isolado, ermo – neste sentido, também claro e uniforme, o depoimento de todas as testemunhas ouvidas na audiência de julgamento.
Nesse local, encontravam-se duas viaturas com o tampão do depósito de combustível aberto, estava uma mangueira que é apropriada para retirar combustível das viaturas e aí estavam um conjunto de recipientes cheios de gasóleo.
A conjugação dos elementos supra descritos permite-nos ficar convencidos de que esse gasóleo, que estava dentro dos recipientes, foi retirado das viaturas que se vêm nas fotos de fls. 54 e 58, mas também que a viatura X serviu para transportar esses recipientes para o local.
Ao volante dessa viatura estava, no local, àquela hora da noite, o arguido P…
Conjugando todos os elementos supra referidos – recordo que o local é isolado, a carrinha tinha resíduos de gasóleo na caixa, onde os recipientes cabiam na perfeição, tinha luvas dentro da mesma exactamente iguais à que estava no seu exterior, mesmo junto a uma das portas da viatura (vide a foto de fls. 57) – só podemos concluir que o arguido P… estava naquele local para transportar do mesmo os recipientes supra aludidos.
A prova não nos permite concluir que o arguido em causa tenha introduzido dentro de cada um dos depósitos das viaturas uma mangueira de plástico e daí retirado o gasóleo aí existente para dentro de catorze bilhas de plástico.
Contudo, os elementos probatórios são muito claros e apontam num único sentido: o arguido P… estava no dia aludido na acusação, no local aludido na acusação, ao volante da viatura X, para transportar desse local os recipientes.
Os agentes da GNR que primeiramente chegaram ao local – as testemunhas V..e L.. – descreveram que o arguido estava no carro, no local do condutor, com as luzes apagadas.
Tal facto tem uma explicação: o arguido apercebeu-se da aproximação do veículo da GNR ou, pelo menos, de um veículo.
Na verdade, conforme descreveram as testemunhas ouvidas em julgamento, o acesso ao local faz-se por um caminho de terra.
Portanto, o arguido apercebeu-se, naturalmente, da aproximação de um veículo e desligou as luzes da viatura, tentando esconder-se o melhor que pôde.
O arguido não cheirava a gasóleo, deixou claro a testemunha L.. M…
Desse facto apenas resulta que o mesmo não executou os trabalhos de enchimento dos recipientes e remete-nos, de forma clara, para o facto da intervenção do mesmo (a sua função) ser a de conduzir a carrinha.
O arguido P… sabia que os recipientes estavam ali perto, haviam sido enchidos por alguém que não foi possível apurar em julgamento, contudo, as luvas que estavam mesmo ao pé da porta do veículo ensopadas em gasóleo – exactamente iguais àquelas que estavam dentro da viatura – permitem-nos concluir que o mesmo não podia deixar de ter conhecimento desse facto.
Evidentemente que parece-nos claro que essa luva não teria sido utilizada pelo arguido, mas por outra pessoa.
Apesar disso, considerando a localização da mesma, só podemos concluir que o mesmo estava no local para, pelo menos, retirar de lá os recipientes cheios de gasóleo.
Apenas consideramos provado que o arguido estava no local para transportar os recipientes, na medida em que o mesmo não cheirava a gasóleo o suficiente para se poder concluir que o mesmo tenha colaborado, seja de que forma for, no enchimento dos recipientes.
Ora, valor da prova, a sua relevância, depende fundamentalmente da sua credibilidade, ou seja, da sua idoneidade e autenticidade.
A apreciação da prova – actividade que se processa segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção – não dispensa um tratamento a nível cognitivo por parte do julgador, mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal como a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objecto de deduções e induções, as quais partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência.
In casu, não restam dúvidas que o encadeamento sequencial e lógico dos factos supra descritos devidamente conjugados com todos os elementos de prova recolhidos, não nos permite concluir que o arguido P…, no dia … de … de 2008, cerca das 21:30 horas, se encontrava junto às obras do 3.º troço do canal do Aproveitamento Hidroagrícola da Cova da Beira, para transportar no veículo X dezasseis bilhas em plástico: catorze delas estavam cheias de gasóleo, o qual havia sido retirado dos depósitos de duas máquinas industriais, uma marca Caterpillar e outra de marca Komatsu, que aí estavam estacionadas, pertencentes à sociedade comercial M…, S.A., e que o arguido sabia que as aludidas bilhas de plástico continham gasóleo que havia sido retirado nesses termos dessas máquinas industriais, pelo que actuou com o propósito de se apropriar desse gasóleo, não obstante saber que o mesmo não lhe pertencia e que actuava sem o consentimento e contra a vontade da sociedade acima aludida, proprietária do mesmo.
(…).”
*
III – Fundamentação de Direito.
3.1. O artigo 428.º do Código de Processo Penal faculta a este Tribunal o conhecimento, em recurso, de facto e de direito.
Acresce, conforme jurisprudência corrente, uniforme e pacífica, definir-se o âmbito do recurso através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação Art.ºs 421.º, n.º 1 e 403.º, ambos do CPP. , mas isto sem prejuízo do conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, ainda que não invocados ou arguidas pelos sujeitos processuais Acórdão n.º 7/95, do STJ, publicado no Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.95, em interpretação obrigatória..
In casu, não se vislumbrando emergir algum destes vícios ou nulidades, vendo-se as conclusões do recorrente, resulta que o thema decidendum se atém às questões seguintes:
- A decisão recorrida mostra-se afectada com o vício de nulidade uma vez que procedeu a uma alteração substancial dos factos constantes da acusação (conclusões 1.ª a 5.ª)?
- A prova produzida em audiência mostra-se ponderada com preterição aos princípios do in dúbio pro reo (o que, só por si, cominaria a decisão com o vício de erro notório) e da sua livre apreciação (conclusões 6.ª a 9.ª)?
- Concedendo que o recorrente praticou os actos descritos na sentença recorrida, sempre eles serão simples actos preparatórios, não puníveis, que não actos de execução, tentada, do crime pensado cometer, tal como aí se entendeu (conclusões 10.ª a 14.ª)?
Vejamos de todas elas, salvo eventual prejudicialidade de alguma relativamente às subsequentes:
3.2. Se a decisão recorrida deve ser cominada com o vício de nulidade, pois que procedeu a uma alteração substancial dos factos constantes da acusação (conclusões 1.ª a 5.ª)?
O arguido foi acusado [fls. 99] pela co-autoria consumada de um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal.
Contudo, antecedendo o acto de leitura da sentença, o tribunal a quo porque considerou que do decurso da audiência teriam resultado factos susceptíveis de torná-lo antes agente de um tal tipo de ilícito, mas sob a forma tentada, o que redundaria numa alteração não substancial da acusação, determinou a notificação do mesmo ao abrigo do artigo 358.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal.
Factos e forma pela qual acabou condenado, vimos.
Entende agora o recorrente que se verificou, assim, e pelo contrário, uma alteração substancial visto o regime estipulado no artigo 1.º, alínea f), do Código de Processo Penal, à qual é aplicável o artigo 359.º do mesmo diploma, isto é, que o acto praticado se mostra ferido de nulidade.
Não tem manifestamente razão.
Na verdade, na alínea f) do artigo 1.º mencionado, classifica-se como alteração substancial dos factos, em contraste com a alteração não substancial, aquela que envolva a imputação de crime diverso ou o agravamento da moldura penal.
Ponto é, no entanto, que se verifique uma alteração de factos. Pois, quando os factos se mantiverem intocados e apenas se proceda a uma qualificação jurídica diversa da que constava da acusação, essa alteração é equiparada pelo legislador à alteração não substancial dos factos – n.º 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal – Acórdão do STJ, de 13.02.2008, acessível no site www.dgsi.pt sob o n.º convencional SJ 20080213022133..
Esta a linha de pensamento seguida, v.g., numa situação Acórdão do STJ, de 08.11.2007, subscrito pelo Ex.mo Conselheiro Carmona da Mota, disponível no site aludido sob o n.º convencional SJ 200711080031645. em que mostrando-se o arguido pronunciado de haver cometido um crime qualificado de homicídio no decurso da audiência se ordenou o acatamento agora do artigo 359.º do Código de Processo Penal, no entendimento que dela teria sobrevindo indiciada factualidade integrando antes a prática de um crime ofensas corporais agravado pelo resultado na mesma pessoa.
Escreveu-se, nomeadamente:
Tratando-se de uma modificação da imputação de um crime de homicídio para um crime de ofensas corporais, bastava consignar os novos factos que se consideravam indiciados que permitissem o preenchimento dos elementos constitutivos do crime de ofensas corporais para além dos que já constavam do despacho de pronúncia. A agressão que conduziu à morte da vítima não foi afastada expressa ou tacitamente no novo enquadramento legal, antes se manteve como núcleo essencial da conduta, sem o que, aliás, nem sequer haveria crime de ofensas corporais. Constando do despacho de pronúncia o facto constante do n.º 24 da matéria de facto, e não importando a alteração substancial dos factos uma modificação da agressão, era desnecessária a sua inclusão no despacho que determinou essa alteração.
Em suma, não se verificou qualquer compressão dos direitos de defesa do arguido, que pôde eficazmente defender-se da nova imputação penal que lhe foi feita. Não houve pois violação quer do artigo 358.º quer do artigo 359.º do Código de Processo Penal, nem o acórdão recorrido incorreu na nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º do mesmo diploma.
Refira-se, aliás, que há jurisprudência que considera que, nos casos de convolação de um crime de homicídio para um crime de ofensas corporais, que representa um minus em relação àquele, nada obsta à condenação pelo crime menos grave (acórdãos de 23-03-1992, proc. n.º 42525, CJ, XVII. Tomo II, pg. 9, e de 16-10-1996, proc. n.º 46087).” (sublinhado nosso)
Ou, naqueloutra Acórdão do STJ, de 10/05/2006, prolatado pelo Ex.mo Conselheiro Silva Flor, acessível no mesmo site sob o n.º convencional 200605100012903. em que acusados os arguidos de um transporte de cocaína, para venda a terceiros, entre o local a e o local b e entre este e o local c, apenas se provou que os arguidos, mancomunados, a transportaram – ignorando-se, porém, com que finalidade específica – entre o local b e o local c.
Anotou-se, então:
O que representa não uma alteração mas, simplesmente, uma redução, ou seja, não outros factos mas menos factos. O MP, que ao seu dispor tinha – além de outras provas – as escutas telefónicas mais tarde invalidadas, «sabia» que os arguidos se dedicavam à aquisição, transporte e revenda de cocaína e que, em determinado dia, «iriam concretizar» determinada «transacção», combinando encontrar-se, para o efeito, na «Estrada Exterior da Circunvalação [Porto]» e daqui seguirem ambos para o local da transacção. Porém, o tribunal colectivo, porque entretanto invalidadas as «escutas telefónicas» (15), não pôde ir tão longe (pois que, sem elas, não podia «saber» tanto) e, com base tão só nos autos de vigilância e apreensão e nos depoimentos dos agentes implicados e nas declarações dos arguidos e acompanhante, apenas «comprovou» – de acordo com a sua livre apreciação da prova e as regras da experiência nesse domínio – que os arguidos transportaram (num automóvel conduzido por um deles e numa mala sobraçada pelo outro), entre a Estrada Exterior da Circunvalação e o Bairro do Amial, no Porto, 47,29 g de cocaína.
6.3. Assim sendo, a «redução» dos factos provados em relação aos factos acusados não tinha que «ser comunicada aos arguidos, atento o disposto no art. 358.1 do CPP». «O acórdão da 1.ª instância» não ficou por isso «ferido de nulidade, de harmonia com o disposto no art. 379.1 al. b) do CPP».
6.4. Aliás, visando o disposto no art. 358.1 do CPP conceder ao acusado «o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa» a esse estrito propósito, os arguidos nem sequer ficaram privados de se defender dessa pretensa «alteração», pois que, para dela se defenderem, se prevaleceram no recurso para a Relação da «faculdade a cujo exercício o acto anulável se dirigia» (art. 121.1.c do CPP), assim, de algum modo, «sanando» a nulidade que um deles ao mesmo tempo arguiu, tanto mais que o tribunal ad quem, enquanto última instância em matéria de facto, acabou – respondendo a essa alegação superveniente – por «suprir», nos termos do art. 379.2 do CPP, a eventual «nulidade» de que a condenação pudesse, por «excesso», estar eivada.” (novo sublinhado nosso)
Ainda de anotarmos com interesse ao caso a situação Acórdão do STJ, de 10.10.1996, proferido pelo Ex.mo Conselheiro Silva Paixão e disponível em www.dgsi.pt sob o n.º convencional SJ 199610100003923. decorrente de mostrando-se um agente pronunciado de, em concurso aparente, haver incorrido na prática dos tipos legais dos crimes de extorsão e de abuso de poderes, acabar condenado, com base nos mesmos factos, pela prática dos apurados crimes, mas em concurso real.
Considerou-se na altura:
Segundo o artigo 359.º do Código de Processo Penal, uma “alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, não pode ser tomada em conta pelo tribunal...”.
Face a esta formulação legal, é nítido, assim, que a lei veda a alteração de factos.
Este Supremo, no entanto, coerentemente, firmou jurisprudência no sentido de que já é permitida ao tribunal a “alteração da qualificação jurídica”, mantendo-se intocados os factos.
Como refere Figueiredo Dias, os valores e interesses subjacentes à vinculação temática do tribunal facilmente se apreendem quando se pensa que constitui a pedra angular de efectivo e consistente direito de defesa do arguido, que, assim, se vê protegido contra arbitrários alargamentos da actividade cognitiva e decisória do tribunal, assegurando os seus direitos de contraditoriedade e audiência (cfr. “Direito Processual Penal”, I, página 145).
Com a proibição de uma alteração substancial de factos, a lei pretende, essencialmente, proteger o arguido da situação de, sendo chamado a julgamento acusado da prática de determinados factos, poder vir a ser surpreendido pela discussão e apuramento de outros, com evidente violação dos seus direitos de defesa. De todo o modo, convém realçar que o arguido tem é que se “defender dos factos que lhe são imputados e não das qualificações jurídicas” que deles se fazem. É que, “não pode confundir-se vinculação temática com qualificação jurídica”.
Quanto à qualificação jurídica, uma vez que esta não faz parte do objecto do processo, o tribunal mantém, ao menos em princípio, inteira liberdade, no pressuposto, claro, de que a base factual da acusação ou da pronúncia se mantenha inalterada.” (ainda sublinhados nossos)
No caso concreto, a factualidade que sobressaía da acusação era a de um conduta plural (integrando o recorrente), livre, voluntária e consciente, visando subtrair coisa móvel alheia, como teria sucedido, contra a vontade do dono respectivo.
Feito o crivo da prova o Tribunal viu-se confrontado apenas com uma actuação singular do recorrente, livre, voluntária e consciente, conducente a subtrair coisa móvel alheia, contra a vontade do dono respectivo, mas que não logrou efectivar-se por motivo alheio à sua (do arguido) vontade.
A ratio do instituto do artigo 359.º é, reafirmamos, a protecção dos direitos de defesa do arguido e este pode defender-se dos factos e da imputação que lhe foi feita, sendo indiferente que se tivesse “passado” de uma co-autoria consumada para uma autoria tentada. Isto é, para um mero minus relativamente ao que constava da acusação.
Bem andou pois o M.mo Juiz a quo ao proceder como consta da acta e daí que improceda este fundamento do recurso.
3.3. Se a prova produzida em audiência foi ponderada com preterição aos princípios do in dúbio pro reo e da sua livre apreciação, bem como incorrendo o julgador em erro notório (conclusões 6.ª a 9.ª)?
Os Tribunais Superiores têm salientado, una voce, que o recurso em matéria de facto assume fulcral importância para a salvaguarda dos direitos constitucionais de defesa e, para tanto, deve a Relação proceder ao efectivo controlo da matéria de facto provada na 1.ª instância, por confronto desta com a documentação em acta da prova produzida oralmente na audiência. Porém, essa dimensão do recurso não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, como se a decisão da 1.ª instância não existisse, mas sim, e apenas, remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente Acs. do STJ, de 17 de Maio; 23 de Maio; 14 de Março e 15 de Março, todos do ano de 2007, e disponíveis no site www.dgsi.pt..
Assim, para atingir a completa delimitação do objecto do recurso e obstar à sua utilização apenas para sobrepor uma nova apreciação àquela formulada em 1.ª instância, veio o legislador processual penal da revisão operada pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto, a par da eliminação da exigência da transcrição dos depoimentos O que foi justificado na proposta de lei n.º 109-X de seguinte forma: «No âmbito da motivação, para pôr cobro a uma das principais causas de morosidade na tramitação do recurso, elimina-se a exigência de transcrição da audiência de julgamento. O recorrente pode referir as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida indicando as passagens das gravações; não é obrigado a proceder á respectiva transcrição (artigo 412.º). O tribunal ad quem procede á audição ou visualização das passagens indicadas e das outras que, porventura, considere relevantes»., impor ao recorrente em matéria de facto que na motivação proceda a uma tríplice especificação: concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; e ainda, quando o solicitar, concretas provas a renovar. Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: deve o recorrente ter como referência o consignado na acta quanto ao registo áudio ou vídeo das prova prestadas em audiência mas também indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.ºs 4 e 5 do artigo 412.º do CPP). Esta exigência justifica materialmente a extensão do prazo de recurso de 20 para 30 dias Sem elaborar sobre a necessidade para o exercício da defesa de tal prazo, não pode deixar de se confrontar o mesmo com o prazo concedido pelo legislador para a prolação de sentença nos casos de especial complexidade – 10 dias, nos termos do artigo 373.º – e para a elaboração de projecto de acórdão ou elaboração da decisão – 15 dias, nos termos dos artigos 417.º, n.º 9 e 425.º, n.º 3, ambos do CPP –..
Compulsando-se a motivação e conclusões apresentadas, verifica-se que a recorrente não deu acatamento aos normativos vindos de mencionar.
Com efeito, não escalpeliza os concretos pontos controvertidos, nem as concretas (na dimensão aludida) provas que imporiam decisão distinta da sufragada em 1.ª instância.
Compreende-se, todavia, que pretende modificada a decisão relativamente a toda a materialidade susceptível de preencher os elementos objectivo e subjectivo do crime por que acabou condenado.
Já no que respeita ao segundo dos mencionados pressupostos, o que se nos depara é a sua desconsideração eivada de uma contraposição genérica ao juízo conclusivo do Tribunal a quo.
Sem ponderarmos se a solução era a rejeição do recurso no que concerne ou, antes, se impunha um eventual convite à reformulação das conclusões apresentadas (ut artigo 417.º, n.º 3, do CPP), e sempre limitadas pelo teor omisso da motivação, certo é que a questão assim colocada entronca sobremaneira com a delimitação exacta do alcance do princípio da livre apreciação da prova.
Com arrimo no artigo 127.º do mesmo diploma, nele se determina que “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”
Ou seja, na apreciação da prova, o tribunal é livre de formar a sua convicção desde que essa apreciação não contrarie as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos. De facto, tal apreciação não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Sendo a liberdade de apreciação da prova, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» que tem de ser compatibilizado com as garantias de defesa com consagração constitucional –, impõe a lei (cfr. n.º 2 do artigo 374.º do CPP) um especial dever de fundamentação, exigindo que o julgador desvende o percurso lógico que trilhou na formação da sua convicção (indicando os meios de prova em que a fez assentar e esclarecendo as razões pelas quais lhes conferiu relevância), não só para que a decisão se possa impor aos outros, mas também para permitir o controlo da sua correcção pelas instâncias de recurso.
Dentro dos limites apontados, o juiz que em primeira instância julga goza de ampla liberdade de movimentos ao eleger, dentro da globalidade da prova produzida, os meios de que se serve para fixar os factos provados, de harmonia com o princípio da livre convicção A livre convicção “é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade. É uma conclusão livre, porque subordinada à razão e á lógica, e não limitada por prescrições formais exteriores.” – cfr. idem, ibidem, pág. 298 -. e apreciação da prova. Nada obsta, pois, que, ao fazê-lo, se apoie num certo conjunto de provas e, do mesmo passo, pretira outras às quais não reconheça suporte de credibilidade “ (…) há caos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução, pelo que se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será mais inatacável, já que proferida em obediência á lei que impõe que ele julgue de acordo coma sua livre convicção.” – Ac. RG, de 20 de Março de 2006, processo n.º 245/06-1..
É na audiência de julgamento que este princípio assume especial relevância, encontrando afloramento, nomeadamente, no artigo 355.º do CPP, pois é aí o local de eleição onde existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na recepção directa de prova Como se refere no Ac do STJ, de 20 de Setembro de 2005, disponível no site www.dgsi.pt, “a convicção do tribunal é constituída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e das lacunas, das contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, olhares, “linguagem silêncios a e de comportamento”, coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidades manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos. Elementos de que a reapreciação em recurso não dispõe.”. Só os princípios da oralidade e da imediação “permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.” F. Dias, ob. cit, págs. 233/4.
O Tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova pode exibir perante si.” Cfr. Ac. da RC, de 3 de Outubro de 2000, in CJ, Ano 2000, Tomo IV, pág. 28. Dito de outra forma: “o recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida, e o tribunal de recurso em matéria de exame crítico das provas apenas está obrigado a verificar se o tribunal recorrido valorou e apreciou correctamente as provas.” Cfr. Ac. do STJ, de 7 de Junho de 2006, in processo 06P763.
Verificação assente a mais das vezes com apelo e recurso ao raciocínio lógico. Isto é, aquele raciocínio que, para além de qualquer dúvida razoável, parte de factos conhecidos e revelados para a extracção de factos desconhecidos mas que são, na normalidade do acontecer, a sua natural envolvência, sua experimentada vivência, sua inelutável consequência. Ou seja, da conjugação de provas materiais, concretizadas e objectivadas, com outras indirectas e de cariz meramente indiciário, mostra-se então possível e legítimo formular uma conclusão em termos de determinar o modo como o pedaço da realidade em equação efectivamente sucedeu, sua motivação e intencionalidade e quem são os seus agentes, sem que, com isso, sejam postergadas as regras aplicáveis ao processo subjectivo de formação da convicção do julgador, por um lado, e as garantias constitucionais do arguido, por outro.
No caso vertente, e se bem pensamos, impõem-se-nos, igualmente, parcas considerações sobre o interrogatório do arguido.
Na doutrina discute-se se constitui um meio de prova e/ou o exercício do seu direito de defesa. Germano Marques da Silva In Curso de Processo Penal, II, edição de 2008, pág. 197. reconhece às declarações do arguido, em qualquer das fases do processo, uma dupla natureza: de meio de prova e de meio de defesa.
Face ao CPP vigente (na versão original e nas suas sucessivas revisões), identificamos esta dupla natureza em diversos aspectos da regulamentação específica das declarações do arguido, nomeadamente, nas disposições relativas à confissão (e respectivos efeitos), à ordem de produção da prova, no direito ao silêncio e na inexigibilidade de dizer a verdade.
Quando a confissão era considerada como regina probationum, não era concebível que o arguido tivesse o direito ao silêncio (jus tacendi). O CPP vigente, entre os direitos processuais do arguido, consagra, expressamente, no artigo 61.º, n.º 1, alínea d), o de não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar. Este direito ao silêncio, referido também no artigo 343.º, n.º 1, é uma expressão importante do direito de defesa, no quadro do princípio segundo o qual ninguém pode ser obrigado a depor contra si mesmo (nemo tenetur se detegere).
Percebe-se, com efeito, a partir do carácter complexo de que se revestem as declarações do arguido, que este goze do direito ao silêncio e que seja inexigível o cumprimento do dever de verdade em relação aos factos que lhe são imputados, dever que, a existir, poderia inibir o arguido na estruturação da sua defesa.
Porém, como alertam Simas Santos e Leal Henriques In Código de Processo Penal Anotado, II Volume, 2000, pág. 359, em anotação ao citado artigo 343.º., não se deve confundir “desfavorecer” com o “não favorecer”. A confissão, se espontânea, beneficia a posição do arguido. E se do silêncio do arguido resultar o desconhecimento de circunstâncias que o poderiam favorecer – e de que, porventura, só ele tem conhecimento –, então poderá esse silêncio nitidamente desfavorecê-lo.
O que estes autores salientam é, afinal, a evidência de que, muito embora o arguido esteja isento do ónus de provar a sua inocência, não podendo ver juridicamente desfavorecida a sua posição pelo facto de exercer o seu direito ao silêncio – de que não é legítimo extrair qualquer consequência, seja para determinar a culpa, seja para determinar a medida concreta da pena –, não é menos verdade que quando é do interesse do arguido invocar um facto que o favorece – e que ele poderá ser o único a conhecer –, a manutenção do silêncio poderá desfavorecê-lo A propósito, e com interesse, cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 524/97, relatado pela Ex.ma Conselheira Assunção Esteves, acessível no site www.dgsi.pt/tc, bem como o aresto prolatado neste Tribunal no âmbito do recurso n.º 400/06.2 GCAVR.C1, subscrito pelo Ex.mo Desembargador Jorge Gonçalves..
Atenta a oposição deduzida pelo recorrente, de não olvidarmos também do conteúdo e alcance do princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da CRP.
Sabe-se surgir tal princípio como resposta ao problema da incerteza em processo penal, impondo a absolvição do acusado quando a produção de prova não permita resolver a dúvida inicial que está na base do processo. Muito embora o arguido esteja isento do ónus de provar a sua inocência, não podendo ver juridicamente desfavorecida a sua posição pelo facto de exercer o seu direito ao silêncio – de que não é legítimo extrair qualquer consequência, seja para determinar a culpa, seja para determinar a medida concreta da pena –, não é menos verdade que quando é do interesse do arguido invocar um facto que o favorece – e que ele poderá ser o único a conhecer –, a manutenção do silêncio poderá desfavorecê-lo A propósito, e com interesse, cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 524/97, relatado pela Ex.ma Conselheira Assunção Esteves, acessível no site www.dgsi.pt/tc, bem como o aresto prolatado neste Tribunal no âmbito do recurso n.º 400/06.2 GCAVR.C1, subscrito pelo Ex.mo Desembargador Jorge Gonçalves..
Em todo o caso, convém não olvidar que na aplicação da regra processual da encimada «livre apreciação da prova», não haverá que lançar mão, limitando-a, deste princípio (do in dúbio pro reo), se a prova produzida [Ainda que «indirecta»], depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, não conduzir à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto.
Isto porquanto e com efeito, o in dúbio pro reo «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador». Cristina Líbano Monteiro, In Dúbio Pro Reo, Coimbra, 1997.
A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade. Nessa tarefa, o juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar». E, por isso, é que, nos casos em que as regras da experiência, a razoabilidade e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (suscitando, a propósito, “uma firme certeza do julgador”, sem que concomitantemente “subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto”.), não há lugar à intervenção da contra face (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva que é o in dúbio pro reo (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência de uma firme certeza do julgador»).
Ou seja, não é qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido, mas apenas a chamada dúvida razoável (“a doubt for which reasons can be given”)». Isto porque nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida. Assim, pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais. A dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal.
Resta ponderar, por fim, que a sindicância da matéria de facto pode, ainda (apenas ou mesmo simultaneamente com a impugnação da matéria de facto nos termos acabados de referir), obter-se pela via da invocação dos vícios da decisão (desta, e não do julgamento) – de resto, de conhecimento oficioso, como já mencionado –, que podem constituir fundamento do recurso “mesmo nos casos em a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito” como expressamente permitido no n.º 2 do encimado artigo 410.º.
Esses vícios, os três que vêm enumerados nas alíneas deste preceito (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, e erro notório na apreciação da prova), terão de ser ostensivos e passíveis de detecção através do mero exame do texto da decisão recorrida (sem recurso a quaisquer outros elementos constantes do processo), por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum.
O último deles, invocado pelo recorrente, como referem Simas Santos e Leal-Henriques Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 6.ª edição, 2007, pág. 74 e Acórdão do STJ, de 13 de Outubro de 2007, in processo n.º 07P1779, in www.dgsi.pt., subsiste quando, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, um homem médio facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis.
A infracção ao princípio do in dúbio pro reo tem sido considerada como integrando tal erro.
Na posse destes considerandos revertamos do caso presente.
O arguido no uso pleno do direito ao silêncio não quis prestar declarações. Como antes mencionámos, se esse facto, só por si, não pode “desfavorecê-lo”, certo é que igualmente pode não o ter “beneficiado”.
Aliás, assumamos, o silêncio até pode ter redundado em seu desfavor. Isto no justo ponto em que perante tal postura não resultaram conhecidas circunstâncias que, quiçá, justificariam (?!) a sua presença no local em que foi surpreendido pelos agentes da autoridade ao volante do veículo X.
Por outro lado, como resulta da motivação probatória, o M.mo Juiz a quo arrimou a sua convicção em meios de prova todos legalmente admissíveis (artigo 125.º do CPP).
E, ponderados de acordo com os legais critérios.
Na verdade, partindo de factos conhecidos e revelados [mormente que: 1) No dia … de … de 2008, cerca das 21:30 horas, perto das obras do 3.º troço do canal do Aproveitamento Hidroagrícola da Cova da Beira, próximo da localidade de Z, na Covilhã, se encontrava o veículo automóvel ligeiro de mercadorias de matrícula X, marca …, modelo….– auto de apreensão de fls. 16; fotografias de fls. 56 a 58; depoimentos dos agentes da GNR (testemunhas V… e L…, que na sequência de uma chamada se dirigiram ao local aludido na acusação e aí encontraram o veículo aludido) e das testemunhas J… e L.. M.. (elementos do núcleo de investigação da GNR que se deslocaram ao local para investigação e aí observaram o veículo em causa); 2) A sociedade M… S.A. tinha duas máquinas industriais, uma marca Caterpillar e outra de marca Komatsu, nas obras do 3.º troço do canal do Aproveitamento Hidroagrícola da Cova da Beira, próximo da localidade de Z, na Covilhã (declaração de fls. 34 dos autos; descrição constante dos documentos de fls. 23 a 32; fotografias de fls. 54 e 58; depoimentos das já citadas testemunhas que estiveram no local), 3) Dessas máquinas foi retirado gasóleo sem autorização e contra a vontade dessa sociedade (documentos de fls. 23 a 32; fotografias de fls. 54 e 58; mangueira cuja fotografia consta de fls. 55, e confirmação feita pelas testemunhas, elementos da GNR, que se deslocaram ao local, confirmando a sua existência no local, que serviu para retirar o gasóleo das máquinas pela “boca” do acesso ao depósito, mas também as vasilhas cheias de gasóleo que se encontravam no local); 4) No local em causa estavam 16 recipientes em plástico, sendo que 7 deles, de cor azul, com capacidade para 25 litros, estavam cheios de gasóleo, outros 7, com capacidade para 20 litros, estavam cheios de gasóleo, e dois deles estavam vazios (auto de apreensão de fls. 16); 5) Para além disso, no local estava uma mangueira com cerca de 3,5 metros de cor creme e uma par de luvas em plástico sujas de gasóleo (auto de fls. 16, e o que é visível nas fotografias de fls. 55 e 57 dos autos, além de confirmado pelas testemunhas ouvidas, nomeadamente L.. M …e V..); 6) Os recipientes de gasóleo aludidos encaixavam na caixa da carrinha – caixa que, por sua vez, tinha resíduos de gasóleo (foto de fls. 56, confirmada por todas as testemunhas) –, de forma muito exacta (esclareceu a testemunha V. na audiência de julgamento que não cabia nem mais uma nem menos uma, encaixava na perfeição, o que, aliás, é visível na fotografia de fls. 66); 7) No local existiam rastos dos pneus da aludida viatura, nomeadamente perto dos recipientes (foto de fls. 55 - os rastos -; os pneus que constam de fls. 57; o enquadramento e as explicações dadas pela testemunha L M, elemento da GNR, que procedeu à análise do local no dia em que ocorreram os factos e igualmente referiu que tais rastos iam daquela carrinha desde a estrada até ao local onde estavam os recipientes; 8) Presença ao lado da viatura X… de um par de luvas plásticas impregnadas em gasóleo (foto de fls. 57 dos autos e depoimento de V., confirmado de forma rigorosa e uniforme também por J. e LM, elementos da GNR que estiveram no local); 9) Tais luvas eram iguais a outras que estavam dentro da viatura X (fotografias de fls. 58, as quais foram confirmadas de forma objectiva e uniforme pela testemunha LM e V.); 10) A tampa do depósito da viatura X, que estava cheio, (depoimento da testemunha V.., que transportou a mesma desse local para as instalações da GNR), apresentava resíduos claros no sentido de que a mesma havia sido abastecida no local, na medida em que, quando os agentes da GNR chegaram ao local, esses resíduos, por um lado, ainda estavam frescos (ainda depoimento de V.) e, por outro lado, não apresentava qualquer resíduo de pó (nada compatível com a circunstância de estar num terreno em terra batida); 11) O local em causa é um lugar isolado, ermo (depoimento de todas as testemunhas ouvidas na audiência de julgamento); 12) Se encontravam no local duas viaturas com o tampão do depósito de combustível aberto, estava uma mangueira que é apropriada para retirar combustível das viaturas e aí estavam um conjunto de recipientes cheios de gasóleo; 13) Ao volante da viatura X, com as luzes apagadas, estava, no local, àquela hora da noite, o arguido recorrente], chegou a outros que, na mencionada normalidade do acontecer, apenas podiam ser a sua inelutável consequência.
Alicerçado nestas provas materiais, concretizadas e objectivadas, por apelo a regras da experiência comum e da normalidade, não infirmadas, formulou legítima conclusão que nos dispensamos de reproduzir de novo, mas em termos de determinar o modo como o pedaço da realidade em equação efectivamente sucedeu, sua motivação e intencionalidade e quem era o seu agente (pelo menos um deles, sub-entende-se), tudo sem que, com isso, haja postergado as regras aplicáveis ao processo subjectivo de formação da convicção do julgador, por um lado, e as garantias constitucionais do arguido, por outro.
Acresce tê-lo feito sem que do texto da decisão perpasse qualquer elemento conducente a encontrarmos uma situação de dúvida razoável, ultrapassada em desfavor do arguido/recorrente, isto é, com preterição ao mencionado princípio do in dúbio pro reo.
Pelo contrário, o que antes se nos depara é uma convicção apoiada em provas materiais inultrapassáveis que, devidamente conjugadas, reafirmamos, suportaram a conclusão sufragada.
Em outras palavras, então, a manutenção do acervo factual acolhido, e com ele a improcedência das conclusões 6.ª a 9.ª.
3.4. Se os actos descritos na sentença recorrida como praticados pelo recorrente se mostram simples actos preparatórios, não puníveis, que não actos de execução, tentada, do crime pensado cometer, tal como aí se entendeu (conclusões 10.ª a 14.ª)?
Antes de entrarmos na abordagem do caso sub judice, justificam-se três ordens de considerações: uma primeira, atinente ao que deve considerar-se como “consumação” do crime de furto; outra, respeitante aos elementos que o podem integrar enquanto sob a forma tentada; por último, a respeitante ao que poderão constituir seus meros actos preparatórios.
Como sabido, são elementos constitutivos do crime de furto, a subtracção de coisa móvel alheia (tipo objectivo) e a intenção ilegítima de apropriação (tipo subjectivo).
A subtracção não se esgota com a mera apreensão da coisa alheia (pode mesmo não haver apreensão para que ela se verifique), sendo essencial que o agente a subtraia da posse ou disponibilidade alheia e a coloque à sua disposição ou à disposição de terceiro.
Segundo Faria Costa Citado, a propósito, no Acórdão do STJ, relatado em 27.03.2003 pelo Ex.mo Conselheiro Simas Santos, com profusa enunciação do tema., “a subtracção traduz-se em uma conduta que faz com que a coisa saia do domínio de facto do precedente detentor ou possuidor. Implica, por consequência, a eliminação do domínio de facto que outrem detinha sobre a coisa. (…) A subtracção caracteriza-se, assim e sobretudo, pela finalidade prosseguida, a qual consiste no fazer entrar no domínio de facto do agente da infracção as utilidades da coisa que estavam anteriormente no sujeito que a detinha.”
Para a consumação do crime de furto tem-se entendido que é suficiente, por exemplo, a transferência da disponibilidade da coisa do seu titular (usualmente respectivo proprietário) para o agente (normalmente implicando desapossamento do proprietário e sua integração no património do agente), não sendo necessário que este último detenha a coisa de forma pacífica ou em tranquilidade ou sossego.
Ou seja: não é necessário a conservação da posse da coisa, em poder do agente, de forma segura (illatio), para que se considere verificada a consumação do crime de furto.
Realizados todos os elementos constitutivos do tipo ocorre a consumação formal do crime de furto, ficando este assim perfeito, não sendo necessário que simultaneamente ocorra a sua consumação material, podendo esta, enquanto fase ulterior, ocorrer posteriormente.
Daí que, se considere suficiente a consumação formal do furto (o que supõe o preenchimento dos elementos constitutivos do tipo legal, sendo imprescindível – como diz Faria Costa – que “o agente da infracção tenha adquirido um pleno e autónomo domínio sobre a coisa”, entendendo-se que o domínio do facto pelo agente exige (como diz o mesmo Autor) “um mínimo plausível de fruição das utilidades da coisa.
Porém, isso não significa que se tenha de quantificar ou “medir” esse tempo mínimo (embora, por regra, seja de exigir um mínimo de estabilidade ou uma “tendencial estabilidade”), sendo certo que também não bastará a mera instantaneidade.
Casos ocorrem, porém, em que não se verifica a descrita consumação do ilícito, antes os factos se quedam na sua tentativa
De harmonia com o disposto no artigo 22.º, n.º 1, do Código Penal, há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se.
São actos de execução: a) os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime; b) os que forem idóneos a produzirem o resultado típico; c) os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicados nas alíneas anteriores.
É frequente dizer-se que a tentativa constitui um crime imperfeito, o que é verdade quando se reporta a tentativa ao crime que o agente decidiu cometer e que fica incompleto. Nessa medida, a tentativa é um crime incompleto, um minus relativamente ao crime consumado, mas, do ponto de vista estrutural, a tentativa é um crime perfeito porque apresenta todos os elementos da estrutura essencial do crime em geral. Assim, no plano normativo, a tentativa constitui um título autónomo de crime, caracterizado pelo evento ofensivo que lhe é próprio (perigo), embora conservando o mesmo nomen juris do crime consumado (tipo) a que se refere e de que constitui execução incompleta. A configuração da tentativa como ilícito autónomo nasce da conjugação das duas normas: a da parte especial que incrimina determinado facto e a do artigo 22.º que estende a incriminação a actos que não representam ainda a consumação do crime a que se referem. Há, pois, fusão de duas normas: a da parte especial que prevê determinado tipo de crime que o agente queria cometer e a da parte geral que estende a punição ao comportamento que o agente efectivamente comete Acórdão da Relação do Porto, de 30.01.2008, relatado pelo Ex.mo Desembargador Borges Martins, no processo n.º 0714132, e acessível in www.dgsi.pt..
No iter criminis, ainda de se nos puderem deparar simples actos preparatórios. Destrinçando os conceitos, escreve o Prof. Germano Marques da Silva In Direito Penal, II, 1998, pág. 232., como sendo já actos externos que preparam ou facilitam a execução, mas ainda não são actos de execução. O seu conceito delimita-se, aliás, pela definição dos actos de execução do crime: o critério legal para a distinção entre actos preparatórios e actos de execução é um critério objectivo; os actos de execução hão-de conter já, eles próprios, um momento de ilicitude, pois ainda que não produzam a lesão do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora do crime consumado, produzem já uma situação de perigo para esse bem. Acto executivo, portanto, é o acto dotado de idoneidade (capacidade potencial de produção do evento) plus inequivocidade. E acto preparatório é o acto que, além de inidóneo, deverá apresentar-se como equívoco, isto é, ambíguo (ibidem).
Relativamente ao caso em apreço:
Como resulta mais que óbvio, o arguido não praticou apenas actos preparatórios, mas actos de execução de um crime que, por razões alheias à sua vontade, não se consumou.
Ao permanecer no local em que foi surpreendido pelos agentes da autoridade nas circunstâncias descritas, não o fazia ele com outra intenção (aliás, mesmo admitida pelo próprio, que aceita alguma participação no subtrair do gasóleo e no encher das 14 vasilhas com o mesmo) que não a de furtar, sendo indiferente que se tenha ou não apropriado dos objectos (aliás, se se tivesse apropriado, tal acto consumaria o assacado crime de furto).
Assim, de harmonia com o disposto no já referido artigo 22.º, n.º 2, alínea a), os actos praticados são de execução e constituem – em relação ao crime de furto – uma tentativa: o arguido praticou aqueles actos de execução do crime que decidira cometer, sem este se consumar.
A estrutura do ilícito não impõe o seu exaurimento, como dissemos, e, por outro lado, o arguido recorrente não se limitou a levar a carrinha cheia de vasilhas, mais os tubos, mais as luvas, aí terminando a sua actuação.
Antes praticou verdadeiros actos de execução, rectius de consumação do ilícito (encheu de gasóleo as vasilhas que a isso se destinavam e preparava-se para encher as restantes vasilhas e as colocar na carrinha), o que apenas não logrou face à chegada dos agentes policiais, tudo nos moldes mais descritos na sentença recorrida.
Donde a conclusão do acerto da sentença recorrida, integrando os factos provados enquanto tentativa, e da improcedência, igualmente, das conclusões 10.ª a 14.ª.
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IV – Decisão.
São tudo termos em que se nega provimento ao recurso interposto.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 6 UCs.
Notifique.
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Coimbra, 9 de Dezembro de 2009