Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
395/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
ÓNUS DA PROVA
EXISTÊNCIA DA OBRIGAÇÃO
LETRA DE CÂMBIO
RELAÇÕES IMEDIATAS
RESPOSTA NEGATIVA A UM QUESITO
Data do Acordão: 03/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ILHAVO - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 342º, Nº 2, DO C. CIV. ; 48º DA LULL .
Sumário: I – No domínio das relações imediatas pode o executado opor factos relacionados com a relação obrigacional subjacente ou causal, mas incumbe ao opoente provar que a letra dada à execução foi abusivamente preenchida, isto é, incumbe-lhe provar os factos dos quais se extrai o abuso .
II – O valor probatório da letra terá de ser ilidido por aquele a quem se exige o cumprimento da obrigação, mostrando que essa letra, que foi assinada quando o título estava em branco, não se acha preenchida em conformidade com o ajustado entre o sacador e o aceitante .

III – A inexistência da dívida titulada pela letra e o preenchimento abusivo desta são factos impeditivos do direito invocado pelo exequente, pelo que, nos termos do artº 342º, nº 2, do C. Civ., o respectivo ónus da prova compete ao executado, ou seja àquele contra quem o direito é invocado .

IV – Constitui jurisprudência unânime que da resposta negativa a um quesito da base instrutória nada se pode retirar, tudo se passando como tal facto não tivesse sido sequer quesitado .

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório:
1-1- A..., residente na Rua Cerâmica do Vouga, nº 3, Forca, Aveiro, deduz contra B..., residente na Gafanha da Vagueira, Ílhavo, a presente oposição à execução que lhe é movida por esta, pedindo que seja declarado que nada deve à exequente.
Fundamenta este pedido, em síntese, dizendo que a letra dada à execução havia sido entregue, em branco, à exequente para garantia de um mútuo entre ambos celebrado, a fim de a mesma ser preenchida caso ele, opoente, não cumprisse o estipulado no referido contrato de mútuo. Com a liquidação da dívida, em 17.03.04, a exequente devolveu aquilo que o opoente pensou ser a mesma letra que recebera em garantia, mas que era, afinal, como mais tarde se apercebeu, uma falsificação, sendo que o original figura, precisamente, como título na execução a que se opõe. Conclui sustentando que o preenchimento da letra foi abusivo e que o opoente nada deve à exequente.
Pede ainda a condenação da exequente, no pagamento de uma indemnização não inferior a 5.000,00 euros, como litigante de má-fé
1-2- A exequente contestou, dizendo que letra que o opoente lhe deu em garantia relativamente ao aludido contrato de mútuo ( o qual envolveu o empréstimo de 12.800 euros, pese embora os 7.500 que constam do documento escrito ), foi a letra nº500792887034215018. A letra dada à execução, foi-lhe entregue pelo opoente no âmbito de um acordo mediante os dois combinaram pôr fim a um contrato-promessa de trespasse de um estabelecimento comercial, que haviam celebrado, no qual ela, exequente, figurou como promitente-compradora. Tal acordo previa a entrega da loja, a devolução do sinal já dado e pagamento do investimento feito na loja e despesas bancárias relativamente ao empréstimo para sinalizar o negócio. Em execução do mesmo acordo, o opoente entregou-lhe então a letra dada à execução, em branco, em 09.01.04, por si aceite e avalizada e autorizou o seu preenchimento após o apuramento de todas as despesas e encargos que a loja tinha dado. Nesta medida, ela, exequente, preencheu a letra, ainda em Janeiro de 2004, após prévio acordo com o executado.
Invocando a ausência de fundamento da oposição, conclui pela condenação do opoente como litigante de má-fé, pagando-lhe uma indemnização de valor correspondente ao das despesas a suportar por força da presente oposição.
1-3- O opoente replicou, esclarecendo que a letra nº 500792887034215018 se destinou a garantir um outro contrato de mútuo não escrito, e que o aludido contrato-promessa se encontra em vigor, não tendo implicado a entrega de qualquer letra.
1-4- O processo seguiu os seus regulares termos posteriores, tendo-se proferido despacho saneador, fixado os factos assentes e a base instrutória, realizado a audiência de discussão e julgamento e respondido a esta base, após o que foi proferida a sentença.
1-5- Nesta considerou-se improcedente, por não provada a oposição, não se condenando qualquer das partes como litigante de má fé.
1-6- Não se conformando com esta sentença, dela veio recorrer o oponente, recurso que foi admitido como apelação e com efeito devolutivo.
1-7- O recorrente alegou, tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões que se resumem:
1ª- Deve ser dado como provada a totalidade do quesito 3º, face ao depoimento da testemunha Isabel Fernandes, conjugado com os factos assentes nas als. B) e C) dos factos assentes.
2ª- Do mesmo modo deve ser dado como provado pelas mesmas razões, e pela análise do documento de fls. 7, o quesito 4º.
3ª- A prova da existência da obrigação cabia à exequente, bem como a entrega da letra, nos termos do art. 343º do C.Civil, sendo que como se prova das respostas negativas aos quesitos 12º, 13º e 14º não se provou que tenha havido qualquer acordo quanto à devolução do sinal e pagamento das despesas na loja e bancárias, que o oponente tenha entregue uma letra e autorizado o seu preenchimento após apuramento de despesas e encargos da loja e que, por isso, a letra tenha sido preenchida tal como se mostra junto aos autos.
4ª- Não se provou a existência de qualquer obrigação do oponente para com a exequente, nem se provou que a letra tivesse sido entregue na sequência de qualquer acordo para pagamento de quantia certa, pelo que ficou provada a primeira excepção cambiária invocada, ou seja, a inexistência de qualquer dívida da sua parte para com a exequente.
5ª- Também está provada a segunda excepção cambiária, ou seja o preenchimento abusivo da letra, visto que está provado que “em 06.06.03, exequente e executado outorgaram um contrato de mútuo por escrito particular mediante o qual a exequente emprestou ao executado 7.500 euros, por seis meses, com taxa de juro fixada em 8,5%.” e que “para garantia desse empréstimo, o executado entregou à exequente uma letra em branco aceite e avalizada por ele, autorizando-lhe o respectivo preenchimento”
6ª- Está também provado que “aquando da assinatura da declaração referida em B), a exequente devolveu ao executado uma letra absolutamente igual à que ele subscreveu, a qual se encontrava em branco aceite pelo opoente” apenas se não identificando o nº da letra e na alínea C) dos factos assentes está demonstrado que “o opoente apresentou queixa na PSP de Aveiro contra a exequente anexando à queixa o exemplar da letra que a exequente lhe entregou” e dada a identidade de números entre a letra a que se referem os factos e a letra dada à execução, verifica-se que o que foi entregue ao oponente foi uma cópia da letra.
7ª- Resultando dos autos que não houve outra entrega da letra, para além da que vem dada como provada, pelo que o seu preenchimento deveria ater-se às cláusulas do negócio subjacente à emissão do título, ou seja ao montante do empréstimo de que essa letra era garantia e cabendo ao oponente a prova do preenchimento abusivo da letra, tendo provado o contrato, com base no qual foi entregue à exequente, as cláusulas do contrato de mútuo e nos termos do pacto de preenchimento.
8ª- Não se provou que esse acordo tivesse sido modificado pelas partes e porque a letra foi entregue na sequência de um contrato de mútuo de 7.500 euros, o preenchimento abusivo não interfere na totalidade da dívida, confinando-se aos limites do preenchimento. Por isso, se o subscritor inicial entregou a livrança ( letra ) em branco de quantia e o detentor de imediato a preencher por quantia superior ao convencionado, a livrança ( letra ) vale segundo a quantia inferior, aproveitando-se os actos jurídicos praticados.
9ª- Apesar da data nela aposta ( 9-1-2004 ), poderemos concluir que em 17-3-2004, a letra ainda não estava preenchida, pois resulta dos factos provados que em 17-03-04, exequente e opoente assinaram a declaração junta a fls 6, sendo que também se provou que aquando da assinatura da declaração referida em B), a exequente devolveu ao executado uma letra absolutamente igual à que ele subscreveu, a qual se encontrava em branco aceite pelo opoente ( resposta ao quesito 3º ) e na al. C) está dado como provado que o opoente apresentou queixa na PSP de Aveiro contra a exequente anexando à queixa o exemplar da letra que a exequente lhe entregou.
10ª- Verifica-se o requisito de má fé no preenchimento, pois na data em que foi preenchida a letra já se encontrava paga a obrigação principal que a mesma visava comprovar.
11ª- Se dúvidas não há quanto ao facto de ser o oponente quem tem que provar a existência de preenchimento abusivo da letra, não é verdade que a exequente esteja dispensada de provar a obrigação principal e que a letra tenha sido entregue em execução da mesma.
12ª- Essa obrigação principal é o facto constitutivo do direito invocado pela exequente, sendo certo que ainda é deste facto constitutivo que há-de nascer a entrega da letra ou a alteração do acordo de preenchimento se ela for anterior e a traditio da letra é claramente constitutivo do direito da exequente e motive a entrega da letra deve resolver-se contra a exequente a quem cabia o ónus da prova da existência dos referidos factos, pois a sua obrigação não é literal e abstracta, estando no domínio das relações imediatas.
13ª- Nestes casos, a oposição à execução funciona como acção de simples apreciação negativa, cabendo a prova dos factos, ao R. dessa acção, no caso concreto à exequente contestante, nos termos do art. 343º nº 1 do C.Civil.
14ª- Pelo exposto, deve a sentença recorrida ser revogada, por violar, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos arts. 10º e 17º da L.U.L.L., bem como o art. 342º nºs 1 e 2 e 343º nº 1 do C.Civil, devendo ser substituída por outra que julgue a oposição procedente por provada.
1-8- A parte contrária respondeu a estas alegações sustentando o não provimento do recurso e a confirmação da decisão recorrida.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Uma vez que o âmbito objectivos dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas ( arts. 690º nº1 e 684º nº 3 do C.P.Civil ).
2-2- Após a resposta aos quesitos, fixou-se a seguinte matéria de facto:
1- Mostra-se junto aos autos principais uma letra de câmbio da qual consta o valor de 65.000,00 euros, a data de emissão 04.01.09, data de vencimento 31.03.04, sacada por B... e aceite por A..., com o nº500792887026160633.
2- Em 17.03.04, exequente e opoente assinaram a declaração junta a fls 6.
3- O opoente apresentou queixa na PSP de Aveiro contra a exequente anexando à queixa o exemplar da letra que a exequente lhe entregou.
4- Em 15.10.03, foi celebrado entre exequente e executado um contrato-promessa de trespasse de um estabelecimento comercial que o executado possui na Forca.
5- Em 06.06.03, exequente e executado outorgaram um contrato de mútuo por escrito particular mediante o qual a exequente emprestou ao executado 7.500 euros, por seis meses, com taxa de juro fixada em 8,5%.
6- Para garantia desse empréstimo, o executado entregou à exequente uma letra em branco aceite e avalizada por ele, autorizando-lhe o respectivo preenchimento.
7- Aquando da assinatura da declaração referida em B), a exequente devolveu ao executado uma letra absolutamente igual à que ele subscreveu, a qual se encontrava em branco aceite pelo opoente.
8- A exequente entregou ao executado a título de sinal e princípio de pagamento a quantia de 45.000,00 euros.
9- A exequente encetou a exploração da loja e procedeu à sua remodelação.
10- Tendo a loja ficado aquém das expectativas, exequente e executado chegaram a acordo, pelo menos, no respeitante à entrega da loja.
11- A exequente entregou a loja ao executado em 09.01.04.
12- Do empréstimo que foi pago pelo cheque nº 6941619695, sacado em 11.03.04, não foi celebrado contrato escrito de mútuo.-----------------------------
2-3- Na douta sentença recorrida, para o que aqui importa, considerou-se, em síntese, que estando-se no domínio das relações imediatas, podia o executado opor factos relacionados com a relação obrigacional subjacente, mantendo-se, porém, as regras gerais do ónus da prova, previstas no nº 1 do art.342º do Cód. Civil. Assim sendo, in casu, incumbia ao opoente provar que a letra dada à execução havia sido abusivamente preenchida, ou seja, incumbia-lhe provar os factos dos quais se extrai o abuso. O valor probatório da letra terá de ser ilidido por aquele a quem se exige o cumprimento da obrigação, mostrando que essa letra, que foi assinada quando o título estava em branco, não se acha preenchida em conformidade com o ajustado entre o sacador e o aceitante. No caso do título executivo consistir numa letra de câmbio aceite pelo executado-oponente, incumbe a este, nos termos do art.342º, nº 2, do Cód. Civil, o ónus de prova da inexistência da causa subjacente à mesma relação cartular. Sucede que no caso vertente, nada se provou que contrarie o pacto de preenchimento que resulta do título dado à execução ou a relação subjacente invocada. Por isso, julgou improcedente a oposição.
No recurso, o apelante faz diversas considerações em relação ao ónus da prova, considerando, em síntese, ter esse ónus não ele, oponente, mas sim a exequente (que deveria fazer a prova da existência da obrigação ), tudo da forma como iremos desenvolver mais à frente. Mas antes de se centrar em considerações em relação a este tema, o apelante sustenta que deve ser dado como provada a totalidade do quesito 3º, face ao depoimento da testemunha Isabel Fernandes, conjugado com os factos assentes nas als. B) e C) dos factos assentes, assim como deve ser dado como provado, pelas mesmas razões e pela análise do documento de fls. 7, o quesito 4º.
Começa, pois, o apelante por impugnar a matéria de facto dada como provada na 1ª instância.
Dado que a impugnação efectuada pelo apelante foi, nos termos dos arts. 712º nº 1 al. a) , 690º nº 1 al. a) e b) e nº 2 e 522º C do C.P.Civil, formalmente correcta, teoricamente, a pretendida alteração é possível. Mas será que se justifica no caso vertente?
É esta a questão que nos é submetida para apreciação e decisão.
No quesito 3º perguntava-se se “aquando da assinatura da declaração referida em B), a exequente devolveu ao executado uma letra absolutamente igual à que ele subscreveu, a qual se encontrava em branco aceite pelo opoente e com o nº D 500792887026160633”.
Ao quesito respondeu-se afirmativamente, excepto no que toca ao nº da letra.
Na fundamentação da resposta ( restritiva ) ao quesito, a Mª Juíza referiu que “não se provou, no entanto, que a letra entregue pela garantia do contrato de mútuo cuja cópia foi junta a fls. 4-5 tivesse sido a letra com o nº500792887026160633, nem o contrário, i.e, que não tivesse sido. Neste particular, importa frisar que a testemunha Maria Isabel não corroborou sequer a versão do oponente, nos termos da qual foram entregues duas letras para garantia dos dois montantes. Acresce que esta testemunha não recordava o número da letra, garantindo apenas que a viu rasurada no momento em que foi entregue pela requerida”. Quer dizer, segundo a fundamentação do tribunal recorrido, esta testemunha não referiu o nº da letra, nem sequer confirmou a versão do oponente de que foram entregues duas letras.
Tendo-se ouvido o depoimento dessa testemunha ( Isabel Fernandes ) dele se pode, de facto, inferir que, na altura indicada no quesito, uma letra foi devolvida ao oponente. Todavia, face a esse depoimento e ao depoimento de Dr. Rui Silva (testemunha oferecida também pelo oponente ), somos em crer que não ficou totalmente clarificada qual a letra que foi devolvida ao oponente. Se a letra ( cópia ) que originou a execução, se outra. Inclusivamente, a nosso ver, não ficou esclarecido se lhe foi devolvida uma letra ( original ) se uma mera fotocópia. De sublinhar que, pese embora o apelante diga que, aquando do pagamento do empréstimo, lhe foi devolvida pela exequente “uma letra igual à que subscrevera” ( art. 5º da p.i. ), o certo é que, peremptoriamente, a testemunha Dr. Rui Silva mencionou que o que foi devolvido ao oponente foi uma fotocópia ( uma boa fotocópia como lhe disseram nos bancos que consultou sobre o documento ). Por outro lado, a testemunha Isabel Fernandes, por mais de uma vez, referiu que existiu apenas a entrega de uma letra do oponente à exequente, versão que não coincide com a daquele, que disse, ao ser confrontado com a letra de fls. 26, que a mesma tinha a ver com outro empréstimo ( requerimento de fls. 39 ). É certo que a mesma testemunha também se referiu a outra dívida/empréstimo do oponente à exequente, mas referiu que, em relação a ela ( no montante de 5300 euros ), não existiu qualquer letra. Dadas estas incompatibilidades e discordâncias, também nós entendemos que não se provou que a letra entregue pela garantia do contrato de mútuo ( cuja cópia foi junta a fls. 4 e 5 ) tivesse sido a letra com o indicado número11 Não ficou, pois, provado que a letra ( em fotocópia ) junta a os autos a fls. 7, tivesse sido a letra que foi entregue ao oponente aquando pagou o dito mútuo.. Não se provou isto, nem o contrário, como acertadamente refere a Mª Juíza na sua fundamentação às respostas dos quesitos.
Acrescente-se, por outro lado, que como temos vindo a entender, só quando os elementos dos autos levem inequivocamente a uma resposta diversa da dada na 1ª instância, é que entendemos dever alterar as respostas. É que só nestas circunstâncias estamos perante um erro de julgamento. O mesmo não sucederá quando existam elementos de prova contraditórios, pois neste caso deve valer a resposta dada pelo tribunal recorrido, já que se entra então no âmbito da convicção e da liberdade de julgamento, que não cabe a este tribunal controlar ( art. 655º do mesmo Código ). Isto porque estando o juiz de 1ª instância perante a pessoa que depõe, melhor que ninguém se apercebe da forma como realiza o seu depoimento, da convicção com que o presta, da espontaneidade que revela, das imprecisões que deixa escapar, de tudo enfim, o que serve para fundar a impressão que o depoimento deixa no espírito do julgador e contribui, em menor ou maior grau, para formar a sua convicção. Quer isto dizer que convém continuar a respeitar os princípios de oralidade, imediação e livre apreciação da prova, pelo que, em regra, o uso deste tribunal de controle e sindicabilidade sobre a convicção adquirida pelo juiz de 1ª instância se deve restringir aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão. Como a prova testemunhal é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, há que ser extremamente cauteloso e prudente na avaliação da credibilidade dos depoimentos testemunhais e, nesta avaliação, tem que reconhecer-se que o tribunal de 1ª instância está em melhores condições de a emitir, como já vimos. Na mesma linha deste entendimento, referiu-se no Acórdão de 13-1-01 (in Col. Jur. 2001, tomo 5, 85 ) que “apesar da maior amplitude conferida pela reforma do processo a um segundo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, a verdade é que não se trata de um segundo julgamento, devendo o tribunal reapreciar apenas os aspectos sob controvérsia. Por outro lado, mau grado a gravação magnética dos depoimentos oralmente prestados perante o tribunal a quo, as circunstância que a este tribunal se colocam não são inteiramente coincidentes. Isto para concluir, afinal, que mais do que uma simples divergência em relação ao decidido, é necessário que se demonstre, através dos concretos meios de prova que foram produzidos, que existiu um erro na apreciação do seu valor probatório, conclusão difícil quando os meios de prova porventura não se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo apelante ou quando também eles sejam contrariados por outros meios de prova de igual ou superior valor ou credibilidade” ( neste mesmo sentido ainda, Acs. desta Relação subscritos pelo mesmo relator e 1º adjunto, nas apelações 350/99, 2101/02, 3182/02, 3371/02 , 316/03, 1065/03 e 1756/03 e ainda Ac. de 5-10-00, Col. 2000, tomo IV, 27 ).
No caso vertente, pelas razões de convicção referidas na bem elaborada fundamentação às respostas aos quesitos ( para onde se remete ) e porque existem os elementos contraditórios acima relatados, entendemos manter a resposta ao quesito em questão.
Sustenta também o apelante que a resposta ao quesito 4º deve ser dada como provada.
No quesito perguntava-se se a letra ( indagada no quesito 3º e com o dito número ) “fora inutilizada pela exequente”.
Foi apenas dado como provado que aquando da assinatura da declaração referida em B), a exequente devolveu ao executado uma letra igual à que ele subscreveu, a qual se encontrava em branco.
Evidentemente que quem inutilizou a letra é absolutamente irrelevante para a decisão da causa. De qualquer forma acrescentaremos que, pelas razões já acima referidas, entendemos não dever modificar a convicção que, sobre o assunto, granjeou o tribunal de 1ª instância.
É certo que nos autos consta, a fls. 7, fotocópia ( não autenticada ) de uma letra com o nº D 500792887026160633 e que essa letra se encontra riscada. Não se tendo provado que a letra devolvida ( aquando da assinatura da declaração referida em B) ) fosse a que tinha esse número22 Note-se que a fotocópia da letra tem esse nº D 500792887026160633.
, é evidente que a resposta ao quesito ( na sua parte útil ) não poderia deixar de ser a que foi.
Quer isto dizer que a resposta e este quesito, deve permanecer imutável.
Posto isto, passemos à análise do aspecto jurídico da decisão.
A execução que a presente oposição impugna, tem como título executivo uma letra no valor de 65.000 euros, vencida em 31-3-2004 e em que é aceitante o executado/oponente.
Este interpôs a presente oposição à execução, dizendo que a letra dada à execução havia sido entregue, em branco, à exequente para garantia de um mútuo entre ambos celebrado, a fim de a mesma ser preenchida caso ele, opoente, não cumprisse o estipulado no referido contrato de mútuo. Com a liquidação da dívida, em 17.03.04, a exequente devolveu aquilo que o opoente pensou ser a mesma letra que recebera em garantia, mas que era, afinal, como mais tarde se apercebeu, uma falsificação, sendo que o original figura, precisamente, como título na execução a que se opõe.
Começando por este aspecto, desde logo haverá a sublinhar a forma incorrecta e imprecisa como o oponente se refere à situação. Estamos a referirmo-nos à expressão empregue, de lhe ter sido apenas devolvido uma «falsificação da letra», pois não sabemos ao certo o que pretendeu significar com o termo. Note-se que não estamos a falar de fotocópias ou certidões da letra, visto que o próprio oponente diz, no art. 1º da p.i., que lhe foi devolvida uma letra ( e não uma fotocópia ) absolutamente igual à que ele subscrevera. Se lhe foi devolvida uma letra igual à que subscrevera ( e só subscrevera uma única - vide p.i. -), como explicar o aparecimento da letra dada à execução ?
O oponente explicou esse aparecimento com o facto de a letra que lhe foi devolvida ser uma falsificação da letra original ( art. 8º da p.i. ). Assim sendo, em que consistiu a falsificação do título ? Será uma mera fotocópia ? Assim sendo, porque não disse isso claramente ?
Perante estas interrogações, sem respostas, consideramos, logo de início, a posição do oponente como algo imprecisa e incongruente.
Porém, a relevância do tema é, a nosso ver, limitado porque a apregoada «falsificação» é apenas da letra devolvida e não da letra que serviu de base à execução. Em relação a esta o oponente não impugna a sua autenticidade, dizendo, por exemplo, que a assinatura constante no lugar do sacado/aceitante não é a sua. Nesta conformidade, tudo se reconduz a saber se o oponente é, ou não, devedor da quantia que a letra referencia e se foi abusivo o preenchimento dela.
Como correctamente se referiu na douta sentença recorrida, dado que se está no domínio das relações imediatas ( sacador/sacado-aceitante ), é possível ao executado opor à exequente as excepções derivadas da obrigação causal. Este entendimento tem sido adoptado, segundo cremos, pacificamente, pela jurisprudência (entre muitos, Ac. do STJ. de 28-5-1996, in BMJ, 457º, 401 ). Perde aqui a letra o seu carácter abstracto, literal e autónomo.
Em relação a estes aspectos, somos em crer, que não se levanta qualquer dúvida.
A questão levanta-a o apelante, em relação a quem cabe efectuar a prova no que toca à existência da dívida. Se ao exequente, se ao executado. Quer dizer que tudo se reduz à questão do ónus da prova.
Na douta sentença recorrida considerou-se que incumbia “ao opoente provar que a letra dada à execução havia sido abusivamente preenchida, i. é., incumbia-lhe provar os factos dos quais extrai o abuso. O valor probatório da letra terá de ser ilidido por aquele a quem se exige o cumprimento da obrigação, mostrando que essa letra, que foi assinada quando o título estava em branco, não se acha preenchida em conformidade com o ajustado entre o sacador e o aceitante”. Acrescentou-se ainda que, através de assento de 14.05.96 ( publicado no BMJ 457º-59 ), o S.T.J., determinou que “em processo de embargos de executado é sobre o embargante subscritor do cheque exequendo, emitido com data em branco e posteriormente completado pelo tomador ou a seu mando, que recai o ónus da prova da existência de acordo de preenchimento e da sua inobservância”.
Por sua vez, em contrário, o apelante defende que a prova da existência da obrigação cabia à exequente, bem como a entrega da letra, nos termos do art. 343º do C.Civil, sendo que não logrou provar esses elementos.
Parece-nos que o apelante carece em absoluto de razão. Com efeito, a letra que fundamenta a execução, encerra em si mesma “um mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada”, nos termos do art. 1º da LULL. Pelo aceite, obrigou-se o sacado a pagar a letra à data do vencimento ( art. 28º deste diploma ). Na falta de pagamento, o portador ( mesmo no caso de ser o sacador ), tem contra o aceitante um direito de acção resultante da letra, em relação a tudo que puder ser exigido, nos termos dos artigos 48º e 49º ( mesmo artigo 28º ). Pode, pois, o exequente, baseando-se no próprio título, exigir o pagamento do montante titulado pela letra, do aceitante ( art. 48º ainda da LULL ). Quer isto dizer que o direito da exequente, como portadora da letra, deriva do próprio título.
A inexistência da dívida titulada pela letra e o preenchimento abusivo desta, são, patentemente, factos impeditivos do direito invocado pela exequente. Assim e nos termos do art. 342º nº 2 do C.Civil, o respectivo ónus da prova compete ao executado, ou seja, àquele contra quem o direito é invocado.
Significa isto que a posição que, sobre o assunto, se assumiu na douta sentença recorrida, é correcta. Aliás neste mesmo sentido vai a jurisprudência que pudemos consultar, entre os quais destacaremos, para além do acórdão do S.T.J. supra-referido, os Acs do S.T.J. de 30-9-2004 e de 20-5-2004 ( ambos in www.dsji.pt/jstj.nsf). O próprio assento do S.T.J. indicado na decisão recorrida ( com aplicação específica aos cheques ), perfilha idêntico entendimento.
Como demonstra a factualidade dada como assente, o oponente não logrou provar, como lhe competia, a inexistência da dívida que a letra titula e o alegado preenchimento abusivo. A improcedência da oposição, foi, por conseguinte, correctamente decidida.
De sublinhar que o disposto no art. 343º nº 1 do C.Civil, cuja aplicação defende o apelante, não tem atinência com o caso vertente, visto que não se trata aqui de uma acção de simples apreciação negativa. O direito invocado pela exequente, foi-o em acção executiva, tendo por base a letra posta em causa pelo oponente, através da presente oposição.
A apelação é, portanto, improcedente.
Só mais uma notas, ainda que sintéticas, para responder a outras objecções do apelante.
Sustenta o recorrente que pelas respostas negativas aos quesitos 12º, 13º e 14º, se verifica que não se provou que tenha havido qualquer acordo quanto à devolução do sinal e pagamento das despesas na loja e bancárias, que o oponente tenha entregue uma letra e autorizado o seu preenchimento após apuramento de despesas e encargos da loja e que, por isso, a letra tenha sido preenchida tal como se mostra junto aos autos. Daqui concluiu que não se provou e existência de qualquer obrigação do oponente para com a exequente, nem se provou que a letra tivesse sido entregue na sequência de qualquer acordo para pagamento de quantia certa. Ou seja, no entender do oponente e em suma, ficou demonstrada a inexistência de qualquer dívida da sua parte para com a exequente. Isto é, o recorrente entende que não se tendo provado a materialidade dos ditos quesitos, deve ter-se como demonstrados os factos contrários.
Nada mais erróneo visto que, como é sabido e constitui jurisprudência unânime, da resposta negativa a um quesito, nada se pode retirar. Tudo se passa como tal facto não tivesse sido quesitado ( neste sentido, entre muitos, Ac. do S.T.J. de 18-12-2003 - Proc.03B2518/ITIJ/Net -).
Portanto é absolutamente abusivo dizer-se que se provou a inexistência da dívida.
Defende ainda o recorrente que está provada também, a segunda excepção cambiária, ou seja o preenchimento abusivo da letra, visto que está provado que “em 06.06.03, exequente e executado outorgaram um contrato de mútuo por escrito particular mediante o qual a exequente emprestou ao executado 7.500 euros, por seis meses, com taxa de juro fixada em 8,5%” e que “para garantia desse empréstimo, o executado entregou à exequente uma letra em branco aceite e avalizada por ele, autorizando-lhe o respectivo preenchimento”. Está também provado que “aquando da assinatura da declaração referida em B), a exequente devolveu ao executado uma letra absolutamente igual à que ele subscreveu, a qual se encontrava em branco aceite pelo opoente” apenas se não identificando o nº da letra e na alínea C) dos factos assentes está demonstrado que “o opoente apresentou queixa na PSP de Aveiro contra a exequente anexando à queixa o exemplar da letra que a exequente lhe entregou” e dada a identidade de números entre a letra a que se referem os factos e a letra dada à execução, verifica-se que o que foi entregue ao oponente foi uma cópia da letra. Resultando dos autos que não houve outra entrega da letra, para além da que vem dada como provada, pelo que o seu preenchimento deveria ater-se às cláusulas do negócio subjacente à emissão do título, ou seja ao montante do empréstimo de que essa letra era garantia e cabendo ao oponente a prova do preenchimento abusivo da letra, tendo provado o contrato, com base no qual foi entregue à exequente, as cláusulas do contrato de mútuo e os termos do pacto de preenchimento.
Toda este raciocínio parte de ( algumas ) circunstâncias ( essenciais ) que se não provaram. Estamos, concretamente, a referirmo-nos ao facto de o recorrente considerar que a letra dada à execução, foi a que lhe foi devolvida quando solveu o empréstimo, o que se não pode ter como assente, como já se viu. Igualmente se não pode ter como demonstrado que não houve outra entrega de letra, para além da que titulou o empréstimo. Sublinhe-se, a este propósito, que não é essa a posição da apelada/exequente, sendo que, inclusivamente, com a sua contestação, juntou fotocópia de uma outra letra aceite pelo oponente a fls. 26, essa sim, no seu dizer, relativa ao dito empréstimo. Claro que esta posição se não provou. Mas também é certo que se não demonstrou a contrária, agora aduzida e defendida pelo apelante. De resto, consideramos estranha a versão do apelante ao dizer ( no recurso ) que resulta dos autos que não houve outra entrega da letra ( para além da relativa ao mútuo ), pois, ele próprio, perante a evidência da fotocópia da letra junta a fls. 26, veio aceitar essa existência, afirmando que esse título tinha a ver com um outro empréstimo (requerimento de fls. 39 ).
As conjecturas que o apelante faz em relação ao momento do preenchimento da letra ( e a que se refere a 9ª conclusão acima referida ), são irrelevantes para a decisão da causa, sendo também certo que essa argumentação diz respeito à letra que titula o empréstimo.
Parece-nos erróneo dizer-se que existiu má fé no preenchimento da letra, pois os factos provados o não demonstram. Contra o que o apelante defende, não se indicia que na data em que foi preenchida a letra já se encontrava paga a obrigação principal que a mesma visava comprovar, como aliás já acima referenciámos.
III- Decisão:
Por tudo o exposto nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a douta sentença recorrida.
Custas pelo apelante.