Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
579/08.9TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: ACÇÃO DECLARATIVA
ACÇÃO DE CONDENAÇÃO
PRESTAÇÃO DE CONTAS
NULIDADE DE SENTENÇA
Data do Acordão: 01/19/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA DE COMPETÊNCIA MISTA DE COIMBRA – 2ª SECÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTºS 668º, Nº 1, AL. E), DO CPC
Sumário: I – Se numa acção em que tenha sido peticionado, exclusivamente, a condenação da Ré no pagamento de determinada quantia com fundamento na sua apropriação ilícita, mesmo que da prova ressuma a existência da obrigação desta última prestar contas ao autor, não pode o tribunal na sentença converter a acção em prestação de contas e determinar a obrigação da Ré as prestar, porque tal, nesse contexto, constitui uma condenação em objecto diferente do pedido e nulidade prevista no artº 668º, nº1, al. e), do CPC.

II – Se a decisão a proferir pelo Tribunal da Relação nos termos do artº 715º do CPC resultar directamente dos fundamentos da acção (pedido e causa de pedir) como a configurou o autor e que foi objecto de discussão, é desnecessário ouvir as partes antes de proferir tal decisão.

III – Quando o objecto do pedido é a condenação da ré em determinado montante, por se dizer que se apropriou ilegitimamente dessa quantia, a prova de que a ré recebeu os montantes peticionados em virtude de uma administração dos bens do autor, acordada com este, tal impede a sua condenação nessa acção.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

    

Relatório

Na 2ª secção da Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Coimbra, A... propôs a acção declarativa de condenação sob a forma ordinária contra B...., pedindo a condenação desta a restituir-lhe a quantia de € 37.390,91, acrescida de juros vincendos à taxa legal a contar da citação, alegando, em síntese, que a Ré é sua filha, tendo ela assumido cuidar dos “pertences e haveres” dele A. enquanto o mesmo cumpriu pena de prisão, assim vindo a mesma a receber as suas pensões de reforma na € 2.390,91, a que acresceram outros valores (numerário e cheque), com os quais se locupletou, sendo que quando ele A. dela reclamou a correspondente devolução, a mesma adiou tal, apesar de ter chegado a reconhecer deter indevidamente tais quantias, pelo que, na medida em que a mesma não devolve os ditos valores, tornou necessário e indispensável a propositura da presente acção, a qual o mesmo conclui formulando pedindo de condenação da Ré na restituição do montante supra aludido.

A Ré contestou impugnando expressa e motivadamente a causa de pedir apresentada pelo A., sustentando que de nenhuma quantia de seu pai se apropriou, antes sempre a mesma esteve e se colocou à disposição de seu pai para o solicitada foi, nem tão-pouco nunca reconheceu algo lhe dever, prosseguindo por alegar que o A. está a litigar de má fé, tendo-lhe provocado danos morais com a propositura desta acção, face ao que conclui no sentido da improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido e com o pedido de condenação do A. como litigante de má fé em multa e indemnização nunca inferior a € 2.000,00, bem como a pagar-lhe uma indemnização por danos morais de valor nunca inferior a € 600,00.

O A. respondeu defendendo a absolvição do pedido contra si deduzido e bem assim do de litigância de má fé, termos em que conclui em conformidade e quanto ao demais como o havia feito na p.i..

Proferido despacho saneador e seleccionada a matéria de facto assente e a que compõe a base instrutória, realizou-se julgamento e, por sentença decidiu-se “operando a adequação formal do processado, decide-se, a final, que a Ré está obrigada a prestar contas ao A., ficando notificada para as apresentar dentro de 20 dias, sob pena de não lhe ser permitido contestar as que o A. apresente.

As custas serão suportadas provisoriamente por A. e Ré nesta fase, operando-se o acerto a final.

Não se vislumbra litigância de má fé por qualquer das partes, atentos os requisitos constantes de uma qualquer das alíneas do nº 2 do art. 456º do C.P.Civil.”.

Inconformada com esta decisão dela interpôs recurso a Ré concluindo que:

[…………………………………………………………………]

Nas contra alegações o recorrido sustentou o acerto da decisão recorrida.

Cumpre decidir.

 … ...

Fundamentação

O tribunal de primeira instância deu como provada a seguinte matéria de facto

[………………………………………………………………….]

… …

Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (arts.684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do CPCivil) nem criar decisões sobre matéria nova, o objecto do presente recurso sustenta-se na impugnação da matéria de facto fixada como provada e não provada pelo tribunal a quo; e na alegação de ter havido erro na forma de processo quando o tribunal a quo converteu na sentença a acção declarativa em acção de prestação de contas.

Começando a apreciação do mérito do recurso por esta última questão, que prefere lógica e cronologicamente às outras uma vez que a sua decisão, a ser positiva, prejudica o conhecimento daquelas, diremos em primeiro lugar que o Autor, com a propositura da acção pretendia obter da ré, sua filha e ora recorrente, determinado montante de que esta se teria apropriado indevidamente e isto porque havia sido acordado que, durante o período em que ele estivesse detido, ela cuidaria dos pertences e haveres que a ele pertenciam.

Porque tal teria sido acordado, o Autor com a acção o que visa é que lhe seja restituído o montante integral das pensões de reforma que ela terá recebido durante o tempo em que esteve detido; o valor de 10.000,00 €, correspondente à comissão por venda de um imóvel, venda essa realizada pelo autor; a quantia de 5.000,00 € referente à venda pela Ré de uma auto-caravana que àquele pertencia e, ainda, 500,00 € de um cheque destinado a reembolsar o autor de um empréstimo que havia feito a um seu amigo.

O sentido inequívoco, e único, da acção, traduzido na causa de pedir e no pedido, é o de que se considere que o significado do acordo estabelecido entre Autor e Ré era o de esta receber e entregar integralmente, àquele, o valor das pensões e de todas as quantias que a ele fossem destinados.

Por sua vez, na contestação, a ré nega ter sido celebrado qualquer acordo ou ter recebido qualquer importância pertencente ao autor.

Tendo sido dado como provado que a Ré assumiu cuidar da gestão dos interesses patrimoniais do Autor e prover ás suas necessidades aquando do cumprimento da pena por este, cai desde logo pela base, em nosso entender, toda a possibilidade da procedência da acção.

O que verdadeiramente importava, não era saber se a Ré recebeu ou não determinadas quantias pertencentes ao Autor mas sim se o contexto desse recebimento era o de tais quantias deverem ser entregues integralmente a este, figurando ela, exclusivamente, como instrumento funcional desse recebimento, sem qualquer poder de gestão de tais importâncias, devendo, depois, entregar na totalidade o recebido.

Era esta a formulação do Autor: como ele se encontrava preso seria a filha a, materialmente, levantar a sua pensão de reforma e a receber de terceiros quantias que lhe eram devidas que depois lhe seriam entregues na totalidade.

A prova de que o acordo firmado entre Autor e Ré reportava “à gestão dos interesses patrimoniais” daquele e ao “provimento das suas necessidades”, altera em absoluto o quadro da definição fáctico-jurídico formulado pelo demandante, deixando revelada a existência, pelo menos contratual, de uma “gestão de interesses” e de um “provimento de necessidades” que enuncia uma administração de bens alheios e a possibilidade de movimento de crédito e de débito. O sentido do acordado traduziu-se pois num mandato (art. 1157 CC) que, no seu termo, obriga à prestação de contas[1] (art. 1161 al. d) CC).

A esta conclusão não obsta a circunstância de a Ré ter negado, quer a existência de qualquer acordo, quer o recebimento de quaisquer quantias, e isto porque, cabia ao Autor alegar e provar que a Ré se havia apropriado de quantias suas sem qualquer justificação, as quais deveria restituir na totalidade, e por isso sem necessidade de prestação de contas, sendo que, afinal, a prova realizada, não permite outro enquadramento que não o de se entender a existência de um negócio jurídico em virtude do qual existe uma obrigação da Ré prestar contas.

E se esta mesma é a posição defendida pela sentença recorrida quando configura uma administração de bens alheios por parte da recorrente, geradora do dever de prestação de contas, a transformação da presente acção em acção de prestação de contas com aproveitamentos do processado, entendemo-la sem fundamento legal.

Ao pedido de prestação de contas corresponde uma forma de processo especial (art. 1014 e ss. do CPC) e retemos de imediato que nele se exige que seja pedida uma prestação de contas, sendo o processado subsequente determinado por essa especificidade, bastando observar que a citação para contestar deverá conter a advertência de que no prazo de 30 dias deverão as contas ser apresentadas ou contestado o fundamento da sua prestação, com a cominação de que se o não fizer não poderá apresentar contestação ás contas que venham a ser apresentadas pelo requerente) art. 1014 - A nº1 CPC).

Acresce ainda que, segundo os termos do processo de prestação de contas, havendo contestação à obrigação de prestar as contas e fixada por decisão judicial essa obrigação a decisão que tal ordene, deve notificar o obrigado a fazer a apresentação das contas no prazo de 20 dias com a cominação de não lhe ser permitido contestar as que venham a ser apresentadas (vd. art. 1014 - A nº3, 4 e 5 do CPC).

Do que deixamos dito resulta que na presente acção o autor nunca pediu a prestação de contas por parte da Ré mas apenas a restituição de quantia que diz pertencer-lhe e da qual ela se teria apropriado sem causa.

Entendeu no entanto a sentença recorrida que tendo ficado provado que a Ré administrou bens alheios, sem que tenham sido apuradas as despesas realizadas, no provimento das necessidades do Autor, existindo estas, só através da prestação de contas tal se poderia conseguir. E na mesma linha de raciocínio, considerando que a decisão a proferir nestes autos “não deixa de constituir uma decisão tipo no quadro do art. 1014-A, n 5 do mesmo do C.P.Civil, isto é, a decisão interlocutória numa acção de prestação especial de prestação provocada de contas que “ab initio” foi contestada e que por isso nesse enquadramento já seguiria os termos do processo comum …”, “ à luz dos bons princípios da economia processual e aproveitamento dos actos praticados numa acção declarativa comum de condenação” decidiu, ao abrigo do disposto no art. 265-A do CPC, “ que a Ré está obrigada a prestar contas ao A., ficando notificada para as apresentar dentro de 20 dias, sob pena de não lhe ser permitido contestar as que o A. apresente.”.

Isto é, o tribunal a quo converteu, na sentença, uma acção declarativa com forma de processo comum ordinário, em que se pedia a condenação da Ré no pagamento de determinada quantia, com determinados fundamentos, numa acção especial de prestação de contas, sem que nenhuma das partes tenha pedido a prestação de quaisquer contas.

O art. 265-A do CPC, determina que “quando a tramitação processual prevista na lei não se adequar às especificidades da causa, deve o juiz oficiosamente, ouvidas as partes, determinar a prática dos actos que melhor se ajustem ao fim do processo, bem como as necessárias adaptações”.

Sobre o fundamento deste preceito, refere Lebre de Freitas[2] que, para lá de contrariar o princípio da legalidade das formas processuais que estabelecia que a forma de processo era rigidamente determinada pela lei, não podendo em princípio ser afastada a não ser nos casos previstos na própria lei, o citado normativo baseou-se no parecer de Antunes Varela segundo o qual, quando fosse manifesto que o processo comum não se adaptasse às exigências específicas da acção, o juiz poderia ordenar oficiosamente as diligências que melhores garantias oferecessem ao apuramento dos factos ou de acerto da decisão, mandando observar sempre as formalidades previstas em situações análogas.

Não podemos esquecer que o normativo em apreço (o art. 265-A) se encontra inserido no capítulo que tem por epígrafe “a instância” e na secção referente ao começo e desenvolvimento da mesma.

Tal secção começa com a fixação do princípio do dispositivo (art. 264) consagrando o primado da vontade das partes atribuindo-lhes o poder de fixarem os factos que constituem a causa de pedir e, dizemos nós, também o que pretendem com a acção, não tendo o juiz a possibilidade de fundar a decisão em factos não alegados pelas partes nem a de condenar em pedido diferente, quer em quantidade superior quer em objecto diferente (art. 668 nº1 al.e) do CPC).

Com a referência a este princípio do dispositivo e pela sua colocação sistemática, cremos que “a liberdade de adequação da providência está limitada à relação jurídica invocada e representada pelo conjunto de factos alegados pelas partes nos articulados, pelos factos essenciais que resultem da instrução e discussão e cujo aproveitamento seja requerido, por serem complementares ou concretizadores de outros alegados (artº 264º n.º 3) e ainda pelos factos instrumentais também resultantes da instrução da causa e oficiosamente recolhidos pelo juiz para fundar a sua decisão (artº 264º, n.º 2).”[3], sem esquecer a limitação decorrente da definição do pedido deduzido pelas partes.

Com esta interpretação concluímos que o juiz estando obrigado a verificar a conformidade da forma processual resultante do pedido e da causa de pedir, de acordo com os arts. 460 a 466 do CPC, está-lhe vedado criar ele mesmo uma forma de processo diferente das estabelecidas na lei, que entenda ser a mais adequada, não obstante poder, isso sim, no respeito pela forma de processo legalmente fixada determinar a prática de alguns actos que melhor se ajustem ao fim do processo, quando os termos deste não se adequem às especificidades da causa. Não se trata pois de alterar a forma de processo mas, dentro da fixada, poder determinar alguns actos que melhor realizem o fim daquele.

Esta previsão tem-se por diferente da que ocorre nos casos em que de acordo com o pedido e a causa de pedir exista erro na forma de processo.

O erro na forma de processo constitui numa nulidade de conhecimento oficioso que deve ser apreciada até ao despacho saneador, ou até a decisão final se não tiver havido despacho saneador (art. 199, 202 e 206 nº2 do CPC), que importa a anulação dos actos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se aqueles que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime quanto possível da forma estabelecida pela lei, não devendo aproveitar-se actos já praticados de que dependa uma diminuição das garantias do réu.

Podendo falar-se ainda de adequação formal[4], o modo como se reconverte uma acção com uma forma errada à sua forma correcta e aquele outro como, numa forma correcta, se acrescentam alguns actos necessários à especificidade do seu fim, embora não se confundindo, têm pelo menos em comum o pressuposto de que a causa de pedir e o pedido são de todo respeitados, sendo eles que direccionam no sentido sobredito a adequação que haja de realizar-se. 

No caso em estudo, com tributo de diferente entendimento, cremos que tal não ocorre.

O autor pediu a condenação da ré em determinada quantia com base na alegação desta se ter apropriado ilicitamente da mesma, tendo a ré na contestação negado em absoluto o que o demandante afirmava.

Findo os articulados não foi feito ao Autor qualquer convite a aperfeiçoar a sua petição inicial, nomeadamente no sentido de esclarecer se, afinal, não pretendia antes uma prestação de contas e determinou-se o prosseguimento da acção, não se considerando haver erro na forma de processo nem que a tramitação processual da acção declarativa comum não fosse adequada ás especificidades da causa como o pedido e a causa de pedir a figuravam.

E foi na observância estrita dos termos processuais da acção declarativa comum ordinária que veio a ser proferida sentença.

Como afirmámos anteriormente, é na própria sentença que o tribunal a quo entendeu que, independentemente de qualquer questão referente à forma ou à adequação formal do processo, na apreciação de que havia ficado provado que a ré assumiu cuidar da gestão dos interesses patrimoniais do autor e prover às suas necessidades enquanto aquele esteve preso, a acção deveria ser a de prestação de contas, devia declarar-se a obrigação da Ré as prestar e determinar-se o prosseguimento dos ulteriores termos desse processo especial.

Ora, a decisão proferida pretendendo que a acção pudesse ter uma finalidade útil, atribuindo um significado à pretensão do autor, acabou por condenar num pedido diferente do formulado pelo demandante. De facto, pedindo este, exclusivamente, a condenação da Ré no pagamento de determinada quantia por dela se ter apropriado ilicitamente, o que veio a ser fixado na sentença recorrida foi a obrigação de prestação de contas.

Em síntese, cremos que se verifica a nulidade da sentença prevista no art. 668 nº1 al.e) do CPC por ter havido condenação em objecto diferente do pedido, o que se decide.

Nos termos do disposto no art. 715 nº1 do CPC “ainda que declare nula a decisão que põe termos ao processo o tribunal de recurso deve conhecer o objecto da apelação” e, antes de ser proferida decisão, o relator ouve cada uma das partes pelo prazo de 10 dias (vd. nº3 do preceito).

A observância deste contraditório tem por finalidade evitar decisões surpresa e garantir que o tribunal não resolve um conflito de interesses sem audição dos interessados, na observância do determinado pelo art. 3. nº1 do CPC.

Este normativo surgiu com a reforma introduzida pelo do DL n.º 329-A/95, de 12.12 e tinha a seguinte redacção: O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenha tido a possibilidade de, agindo com a diligência devida, sobre elas se pronunciarem.

Foi justificado no respectivo preâmbulo, nos seguintes termos: “Assim, prescreve-se, como dimensão do princípio do contraditório, que ele envolve a prolação de decisões surpresa, não sendo lícito aos tribunais decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente haja sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem…”.

Com o Decreto-Lei n.º180/96, substituiu-se a expressão “agindo com a diligência devida”,

pela de “salvo manifesta desnecessidade”, ficando o preceito assim redigido: O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo casos de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

Como se observa a este propósito no ac. do STJ de 4 de Junho de 2009 no proc. 09B0523, in dgsi.pt., e que pela sua exemplaridade reproduzimos  “…o instituto da proibição de decisões surpresa é, entre nós, muito recente exigindo a sua ponderação uma atenção, ainda que sumária, sobre o que se vem considerando no país donde dimanou e tem longo historial, ainda que se venham a constatar importantes diferenças de regime.

Como refere Lebre de Freitas (Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto, página 96), “a esta concepção [do princípio do contraditório], válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do rechtilches Gehör germânico, entendida como garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo.”

O rechtliches Gehör, como o próprio autor transcreve em nota de pé de página, está previsto no artigo 103.º, 1, da Lei Fundamental Alemã, cuja melhor tradução pensamos ser e seguinte:

Perante o tribunal todos têm direito a ser ouvidos.

Este princípio constitucional tem seguimento nos §§139 e 278, n.º 3 da Zivilprozessordnung (o Código de Processo Civil) e deles vemos que o legislador germânico lhe confere uma dimensão que vai muito para além do que comporta, mesmo em interpretação extensiva, a lei portuguesa.

Logo no n.º1 do primeiro daqueles parágrafos, se determina que o tribunal tem de “discutir” (erörtern) com as partes a vertente factual e jurídica do litígio, para, no n.º2, se estatuir que quando uma das partes (ou ambas) tenham ignorado ou menosprezado, claramente, um ponto de vista, que não respeite a questão acessória, o tribunal só pode fundamentar a sua decisão depois de a(s) esclarecer e de lhe(s) dar a possibilidade de se pronunciarem.

O seguimento prático destas normas não traduz, contudo, o que delas, numa primeira análise, poderia resultar. Assim, como refere Othmar Jauernig (Direito Processual Civil, edição da Almedina, página 169), o tribunal “não é obrigado sem mais a apresentar à discussão das partes, antes da decisão, o seu parecer jurídico”, limitando-se o autor a referir que o tribunal “fará bem em dar a conhecer oportunamente às partes a sua concepção jurídica, para que elas se possam manifestar quanto a isso… procedendo o tribunal assim, poupa-se à difícil verificação de uma das partes tomar um aspecto jurídico manifestamente como irrelevante.”

Trata-se, pois, apenas dum aconselhamento em ordem a poupar a diligência que aquele n.º2 do § 139 impõe. Como “exemplo modelar” de decisão surpresa exemplifica, agora a páginas 143, a que foi tomada pelo tribunal supremo, no sentido da aplicação (não anteriormente discutida) do direito estrangeiro a um caso que as instâncias haviam conhecido aplicando o direito alemão. Um caso extremo em que toda a construção jurídica do tribunal assentou em ordem jurídica diferente da que vinha sendo tida em conta.

Cotejando o regime legal português, com o regime germânico, logo vemos que estamos longe do que, ali, a lei contempla.

Assim, a estrutura do nosso processo civil não prevê que o tribunal “discuta” com as partes o que quer que seja. Podemos admitir o avanço de Lebre de Freitas, no sentido de que terá perdido actualidade a discussão duma parte contra outra, com o juiz, acima delas, a decidir, estando agora aberto o caminho para que elas “influenciem directamente” a decisão. Mas a mais a nossa lei não chega.

Outrossim, inexiste, entre nós, preceito correspondente àquele n.º2 do §139 da ZPO. Pelo contrárioque o legislador chegou a introduzir, no texto legal, a expressão “agindo com a diligência devida”, que veio a retirar, substituindo-o pela “manifesta desnecessidade”, mas tal não significará - até ante os princípios gerais que enformam o nosso código - que tivesse aliviado as partes de usarem a diligência devida para alcançarem as questões que vêm a ser, ou podem vir a ser, importantes para a decisão que virá a ser tomada (neste sentido, Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, I, 33 e Abílio Neto também em anotação ao artigo 3.º)

Repare-se aliás, que, na nossa lei, existem muitos preceitos que apontam para a ideia de, à discussão – nas vertentes factual e jurídica - se suceder a apreciação e decisão pelo tribunal, deixando a convicção de que, quanto a esta, o tribunal decide - aproveitando ou não o teor dessa mesma discussão - sem que se abra nova disputa, ainda que situada em campo diferente. Não precludem eles, é certo, que tal se abrisse – e casos há em que tem mesmo de ser assim - mas não se adequam bem a tal. Vejam-se os artigos 664.º (o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito…), 658.º (concluída a discussão do aspecto jurídico da causa, é o processo concluso ao juiz, que proferirá sentença dentro de 30 dias), 659.º, n.º2 (seguem-se os fundamentos – da sentença – “devendo o juiz … interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes”) e 690.º n.ºs 2 e 3 (enquanto impõe ao recorrente que indique as normas jurídicas violadas e o sentido com que devem ser interpretadas e aplicadas, sem que se preveja que constitua deficiência a omissão do que vier a ser relevante na decisão).”

No caso em estudo cremos que embora o tribunal a quo tenha decido em objecto diferente do pedido, como anteriormente decidido daí, resultando a nulidade da decisão e , por força do art. 715 nº1 do CPC a obrigação de este Tribunal da Relação conhecer do objecto da apelação, não se impõe que se devam ouvir as partes por tal, no caso, se tratar de uma manifesta desnecessidade salvaguarda no art. 3º nº3 do CPC.

Como dissemos, o autor fundou o seu pedido de condenação da ré em determinada quantia na alegação de que esta teria assumido cuidar dos seus “pertences e haveres” enquanto cumpria pena de prisão e que teria recebido as suas pensões de reforma no valor de € 2.390,91, e outros valores (numerário e cheque), com os quais se locupletou.

Por seu turno, a ré contestou impugnando sustentou que de nenhuma quantia de seu pai se apropriou, concluindo no sentido da improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido.

A discussão ao longo de todo o processo incidiu pois sobre saber se a ré se tinha ou não apropriado de qualquer quantia do autor, para saber se haveria lugar à sua condenação ou não e, na própria sentença recorrida, o tribunal a quo acaba por implicitamente reconhecer que não se fez prova dessa apropriação. Só que, em vez de absolver a ré com esse fundamento declarando que o processo próprio para obter da ré alguma quantia seria o da prestação de contas e que a absolvição não precludia a possibilidade de o autor propor essa acção (vd. art. 673 do CPC), o tribunal a quo, pretendendo atribuir à acção alguma utilidade, num excesso de generosidade (diga-se que motivado pelas melhores razões de justiça) acabou por implicitamente absolver a ré do pedido mas, transformando na sentença a acção proposta numa outra configurou a existência de uma prestação de contas e acabou por condenar a ré a prestar contas e que estas são devidas.

Neste contexto, observamos que este Tribunal da Relação, anulando a decisão do tribunal a quo, deve substituir-se-lhe proferindo decisão e pode fazê-lo desde já, sem audição das partes porque tal decisão não constitui surpresa alguma uma vez que ela incide sobre o próprio objecto da acção proposta e seus fundamentos relativamente aos quais a Ré se defendeu, acrescentando-se que tal decisão a proferir está implícita já na decisão proferida pelo tribunal a quo e de que constitui pressuposto. Ou seja, o tribunal a quo não poderia ter decidido como decidiu se antes não tivesse considerado que se impunha a absolvição da ré do pedido deduzido.

Nesta conformidade, renovando o que dissemos anteriormente, a prova de que a ré assumiu, aquando do cumprimento de pena de pena do A., cuidar da gestão dos interesses patrimoniais deste e prover às suas necessidades. (resposta ao quesito 1º da Base Instrutória) retira à acção fundamento de procedência uma vez configura não uma situação apropriação ilegítima mas uma outra de administração de bens alheios que, no seu termo, obriga à prestação de contas (art. (art. 1157 e 1161 al. d) CC).

A prova do recebimento por parte da ré de determinadas quantias pertencentes ao autor estão cobertas por essa administração e delas não resulta a sua condenação na entrega de tais montantes como apropriados ilicitamente mas sim, ao contrário, que venha a ser apurado pelo processo devido ( a prestação de contas) que montantes devem ou não ser restituídos.

Nesta conformidade, entende-se que a ausência de prova sobre qualquer apropriação ilícita por parte da ré dos montantes que recebeu e que pertenciam ao autor impõe a improcedência da acção e como tal, se decide o desfecho da acção.

Nos termos do disposto no art. 713 nº7 do CPC., sumariando a decisão proferida, deixa-se expresso que:

- se numa acção em que tenha sido peticionado, exclusivamente, a condenação da Ré no pagamento de determinada quantia com fundamento na sua apropriação ilícita, mesmo que da prova ressuma a existência da obrigação desta última prestar contas ao autor, não pode o tribunal na sentença converter a acção em prestação de contas e determinar a obrigação da Ré as prestar, porque tal, nesse contexto, constitui uma condenação em objecto diferente do pedido e nulidade prevista no art. 668 nº1 al. e) do CPC..

- Se a decisão a proferir pelo Tribunal da Relação nos termos do art. 715 do CPC resultar directamente dos fundamentos da acção (pedido e causa de pedir) como a configurou o autor e que foi objecto de discussão, é desnecessário ouvir as partes antes de proferir tal decisão.

- Quando o objecto do pedido é a condenação da ré em determinado por montante por se dizer que se apropriou ilegitimamente dessa quantia, a prova de que a ré recebeu os montantes peticionados em virtude de uma administração dos bens do autor, acordada com este, tal impede a sua condenação nessa acção   

… …

Decisão

Pelo exposto acorda-se em julgar procedente a Apelação e, em consequência anular a sentença recorrida.

Nos termos do disposto no art. 715 nº1 do CPC substituindo-nos ao tribunal de primeira instância, acorda-se em julgar a acção improcedente por não provada e, em consequência , absolver a ré do pedido.

Custas pelo Apelante.


[1] Independentemente do o mandato ser oneroso ou gratuito (art. 1158 cc) a prestação de contas tem sempre lugar uma vez que esta não depende da onerosidade do mandato bastando que existam despesas.
[2] In CPC Anotado, 2ª edição, Vol. II p. 512/513

[3] Abrantes Geraldes in Temas da Reforma do Processo Civil, vol. III, 3ª edição, 335 e 336.
[4] Vd. Pedro madeira de Brito , in Aspectos do Novo processo civil p. 48