Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
23/04.0 TAVNO-C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
REABERTURA
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
Data do Acordão: 04/22/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE OURÉM – 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2º,171º,173º DO CP E 371º-A DO CPP
Sumário: 1. A reabertura da audiência de discussão e julgamento nos termos do art.º371º-A do CPP, tem como pressuposto a sucessão de leis penais no tempo, desde que a nova lei de imediato e em abstracto se revele mais favorável, de tal modo que operando-se um juízo de prognose póstuma, reportado à data da audiência de discussão e julgamento, em que os factos foram apreciados, seja de concluir como provável que o arguido seria condenado de forma menos gravosa se a Lei Nova já então estivesse em vigor.
2. O acto mencionado na al a) nº 3 do art.º 171º do CP, produzido por uma conduta geradora de importunação sexual, pode consistir num acto exibicionista ou num acto de constrangimento/constrição a contacto de natureza sexual.
3. O arguido que agarra a vítima pela cintura, apalpa-lhe o ânus, por duas vezes e tenta tirar-lhe as calças que vestia, tanto, na Lei antiga, como na Lei nova, não pode deixar de ser considerado como acto sexual de relevo e não mero constrangimento a contacto de natureza sexual.
4. A ausência de assentimento por parte da vítima caracteriza a violação, ao contrário do crime do art. 173º actual, que pressupõe um consentimento, ainda que viciado por erro, mas sem sujeição a qualquer tipo de constrangimento por ameaça grave ou uso de violência.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


I. RELATÓRIO.


No 1º Juízo do Tribunal Judicial de Ourém, o arguido J..., viúvo, pedreiro, nascido em F..., Ourém, foi submetido a julgamento em processo comum com intervenção do tribunal colectivo , vindo, por acórdão de 9 de Novembro 2005, já transitado, a ser condenado, como autor material de um crime de abuso sexual de crianças p p pelo artº 172 nº 1 do CP na pena de 2 anos e 6 meses de prisão em concurso com um crime de violação na forma tentada p p pelo artº 164 nº 1 do CP na pena de 2 anos de prisão. Efectuado o cúmulo jurídico foi o arguido condenado na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão. Foi ainda julgado parcialmente procedente por provado o pedido de indemnização civil deduzido pelo menor representado por sua mãe e em consequência foi o arguido condenado na indemnização global de 5 055,08 € , acrescida de juros à taxa legal desde a citação do demandado.
Este acórdão foi confirmado por acórdão da Relação de Coimbra proferido em 12 de Julho de 2006 (cfr. fls. 337 a 348), tendo o arguido recorrido deste para o STJ que, por acórdão proferido em 22 de Fevereiro de 2007 (cfr. fls. 411 a 421), julgou tal recurso legalmente inadmissível.
Nessa sequência, foram emitidos mandados de detenção para cumprimento da pena imposta ao arguido, o que foi feito ao abrigo da Lei 65/2003 de 23.08., em virtude de o arguido se encontrar em França (cfr. fls. 28 do apenso A de execução comum para pagamento de custas; despacho judicial de fls. 493 e 494 destes autos e fls. 520 a 525).
Tal mandado de detenção europeu foi cumprido em 17 de Fevereiro de 2008 (cfr. fls. 538 e fls. 542 a 559);
Em cumprimento da pena, após detenção em execução do referido mandado de detenção europeu, o arguido requereu em 3 de Abril de 2008 - 592 a 601 - a reabertura da audiência de acordo com o disposto no artigo 371°-A, do Código de Processo Penal (redacção introduzida pela Lei n° 48/2007, de 29.08), - pedindo:
“- que lhe sejam aplicadas as alterações do Código Penal introduzidas pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, que lhe são mais favoráveis, pois delas resulta que os factos que integravam o crime tipificado pelo art.172.º, n.º 1 do C.P. na redacção vigente quando foi condenado, agora integram a previsão do art.171.º, n.º3, al. a) do C.P., e os factos que integravam os artigos 164.º, 22.º e 23.º do C.P. na redacção vigente quando foi condenado, agora integram a previsão do art.173.º, do C.P.; e
- que se declare que o arguido sofria de anomalia psíquica ao tempo dos factos, sendo inimputável nos termos do art. 20.º do C.P. e se ordene o seu internamento em estabelecimento adequado, nos termos dos artigos 501.º e 470.º do C.P.P., requerendo para este efeito que seja ouvido , que sejam inquiridas duas testemunhas e realizadas diligências. “
A reabertura realizou-se em 14.05.2008, considerando então o Colectivo como única questão a debater nessa audiência a eventual suspensão da execução da pena já imposta, ante a nova redacção do artigo 50° do Código Penal, resultante da Lei n° 59/2007 (fls. 655 a 660), e foi proferido acórdão que manteve inalterado o antes decidido (fls. 661 a 668).
De tal decisão recorreu o arguido (fls. 680 a 684), recurso provido parcialmente pelo Tribunal da Relação de Coimbra (fls. 737 verso e 738), que revogou a anterior decisão do Colectivo na parte em que não conheceu a questão de saber se os factos pelos quais o arguido foi condenado integram hoje, face às alterações do C.Penal introduzidas pela Lei n° 59/2007, de 04.09, a prática dos crimes dos artigos 171°, n° 3, alínea a), e 173°, do Código Penal.
Reaberta de novo a audiência, na sequência da decisão do Tribunal da Relação de Coimbra, para apreciação da questão de direito em aberto, veio a ser proferido o acórdão de fls. 794 a 810.
Inconformado agora com o acórdão proferido em 19.12.2008, que ante os factos provados considerou manter-se o enquadramento jurídico já antes fixado, mantendo igualmente a condenação nas penas parcelares e pena unitária de 3 anos e 6 meses de prisão, e o seu cumprimento efectivo, de tal decisão recorreu o arguido, - (fls. 814 a - 820), formulando no termo da sua motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“ (…).
a) Acto sexual de relevo é aquele que ofende séria e gravemente a intimidade e liberdade sexual e constitui entrave importante à livre determinação sexual;
b) Apalpar o ânus, por duas vezes, a menor de 14 anos não constitui acto sexual de relevo;
c) Antes, configura constrangimento a contacto de natureza sexual;
d) ) Crê-se incorrectamente aplicado o artigo 171º/1 do C. P.
e) Face aos factos dados como provados em Setembro/2002 a incriminação aplicável é a prevista no artº 171/3 al. - a) e 170º, ambos do C. P.
f) A violência a que se refere o art° 164 do C. P. é a força física;
G) Se a vítima, com um pontapé e um empurrão se consegue libertar, o meio usado é inidóneo ao fim em vista.
h) Os factos ocorridos em Setembro/2003 não configuram tentativa de violação, mostrando-se incorrectamente interpretado e aplicado o art° 164º, 22º e 23º, todos do C. P.
i) Os factos ocorridos em Setembro/2003 tipificam a incriminação prevista no art° 173 C. P.;
j) Ou, quando muito, o crime previsto no artº 163/1 C. P., na forma tentada.
1) Consentindo a lei a suspensão da pena, impõe-se ao Tribunal verificar se estão preenchidos os pressupostos para tal suspensão, ainda que recorrendo às medidas previstas nos artigos 51 e sgs do C. P.
m) Carece de fundamento a decisão de não suspensão da pena, com fundamento no facto de o arguido se continuar a afirmar inocente e não ter ainda indemnizado a vítima ;
n) Neste aspecto crêem-se violados os art°s 50º e sgs do C. P. e o artº 27/1 da Const., cabendo ao Tribunal suspender a pena, e sendo o caso aplicar alguma das medidas previstas no art° 51 e sgs do C. P.
Deve a decisão recorrida ser revogada e substituída, aplicando aos factos os artºs 171/3, al. a) e 173º do C. P. e ordenando a suspensão da pena, nos termos do artº 50 e sgs do mesmo diploma.
(…)”.
*
Respondeu o MP entendendo que o recorrente não tem razão:
Quanto ao enquadramento jurídico dos factos provados, dando-se aqui por reproduzidas as considerações exaradas pelo Ministério Público de fls. 693 a 698, em resposta a anterior recurso, e concordando-se com a leitura jurídica feita a propósito no douto acórdão recorrido, também se entende que analisados à luz da lei penal vigente continuam a configurar os crimes de abuso sexual de crianças e de violação, este na forma tentada, puníveis nos mesmos termos, antes e depois da vigência da Lei n° 59/2007, de 04.09.
Quanto a eventual suspensão da execução da pena imposta, ante a nova redacção do artigo 50°, do Código Penal, e o facto de não ter antecedentes criminais, a verdade é que o arguido não compareceu nas datas de audiência de julgamento, e tendo conhecimento da sentença contra si proferida, que transitou em julgado, teve de ser detido através de mandado de detenção europeu.
No decurso da reabertura da audiência a que se procedeu não assumiu a prática dos factos, não manifestou quaisquer sinais de autocrítica, de arrependimento, e nada fez para reparar o ofendido, não obstante a condenação em indemnização.
Considera-se por isso que, no caso, a simples censura dos factos e a ameaça da prisão não realizam de forma adequada as finalidades da punição, sendo a prisão efectiva justificada por razões de prevenção especial e geral.
Conclusão:
Por não merecer censura deve manter-se todo o decidido.”
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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual se pronunciou pelo confirmação do acórdão recorrido acompanhando inteiramente o entendimento expresso pelo Ex.mo Procurador da República na resposta à motivação constante de fls. 823 a 825 (em que, quanto ao enquadramento jurídico dos factos retoma a posição que já havia defendido a fls. 693-698 em resposta ao recurso interposto da primeira decisão proferida após a reabertura da audiência), igualmente se afigurando que os factos dados como provados no acórdão condenatório de 9-11-2005 (confirmado por acórdão de 12 de Julho de 2006 desta Relação) continuam, após as alterações introduzidas no Código Penal pela Lei n° 59/2007, de 4-9, a integrar os crimes de abuso sexual de crianças e de violação sob a forma tentada, puníveis nos mesmos termos na Lei Antiga e na Lei Nova, sendo que também se afiguram correctos os fundamentos pelos quais, face a todo o circunstancialismo tido em consideração, a decisão recorrida concluiu pela não verificação dos pressupostos para a suspensão da execução da pena de prisão aplicada.
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Foi cumprido o disposto no art 417º, nº 2, do CPP.
Colhidos os vistos e realizada a conferência cumpre decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO.
Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 335, Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, 103, e Acs. do STJ de 24/03/1999, CJ, S, VII, I, 247 e de 17/09/1997, CJ, S, V, III, 173).
Assim, as únicas questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:
- aplicação da lei mais favorável aos factos pelos quais o arguido foi condenado e que integravam os crimes p. e p. pelos art.s 172.º, n.º 1 e 164.º, ( este na forma tentada ) do Código Penal;
- eventual suspensão da pena e aplicação de alguma das medidas previstas no art 51º e segs do C.P.
O Tribunal a quo considerou provada a seguinte factualidade:
“a) Factos provados:
No mês de Setembro de 2002 e em dia que se não determinou o arguido encontrava-se no café denominado “Café F…r” conhecido por “Café das P…” por referência a um anterior proprietário, ele chamado por P… sito no lugar de CP…o, freguesia da F..., deste concelho e comarca.
Nesse café estava também o menor D..., nascido a 30/1/89 então com 13 anos de idade.
A dada altura o menor dirigiu-se a uma casa de banho, no estabelecimento.
O menor foi então para um urinol.
Quando aí se encontrava, surgiu o arguido que se dirigiu a uma sanita, pois no local havia um urinol e uma sanita.
Depois de o menor ter apertado o cinto, o arguido agarrou-o pela cintura e puxou-o para si, apalpando-o no ânus por duas vezes.
Ao mesmo tempo o arguido tentava tirar as calças ao menor, as quais se encontravam desapertadas, pois que o mesmo tinha acabado de urinar.
O menor que tentava afastar-se mas não conseguia, a certo momento deu um pontapé no arguido e empurrou-o acabando por fugir.
Então o menor D...fugiu em direcção ao pinhal, por onde passa um atalho para a sua casa, mas como o arguido seguiu atrás de si, ele escondeu-se.
No entanto o arguido conseguiu surpreendê-lo, aparecendo a pé junto do menor, tendo conseguido agarrá-lo, mas aquele voltou a libertar-se e a fugir do mesmo, uma vez que ele é coxo, tendo uma deficiência numa das pernas o que lhe gera dificuldades em correr.
Quando o menor se tentava libertar do arguido, este disse-lhe por modo sério e determinado que se contasse a alguém o que se havia passado, matava o seu pai, a sua mãe e a sua irmã.
Já junto do urinol o arguido havia proferido as mesmas palavras e pelo mesmo modo, para o menor.
Sucede que o menor tinha o arguido por pessoa violenta.
Nos meses que se seguiram o menor fugia e evitava qualquer contacto com o arguido, mesmo quando ele foi a sua casa o que aconteceu por duas ou três vezes.
Já em Setembro de 2003 em dia que não foi possível determinar, tinha o D...14 anos de idade, o arguido deu-se conta de que pelo atalho que liga o “Café F…” à casa do menor este seguia pelo meio de um pinhal.
Assim num ponto que fica já próximo de sua casa, o arguido surpreendeu o menor, abordando-o.
Então o arguido disse-lhe, quando o mesmo se preparava para voltar para trás e fugir, que não o fizesse pois apenas lhe queria pedir desculpa, dizendo-lhe que o que tinha sucedido há um ano atrás se ficava a dever à circunstância de na ocasião se encontrar embriagado.
Nesse contexto o menor aceitou as desculpas e inclusivamente um aperto de mão.
Porém quando o arguido lhe apertou a mão, as calças do arguido caíram, tendo o mesmo ficado com o pénis erecto.
Acto contínuo o arguido agarrou o D...pelas calças e tentou tirar-lhas, rebentando-lhe o cinto, pelo que as suas calças caíram para os joelhos.
No entanto o menor conseguiu puxar as calças para cima, deu um pontapé e um empurrão ao arguido, conseguindo soltar-se e afastar-se.
O arguido vendo a reacção do menor tirou um volumoso maço de notas do bolso e disse-lhe: “dou-te este dinheiro todo se me deixares ir-te ao cu!”
Em face desta situação, o menor assustado fugiu para casa.
Após estes factos o arguido deixou de ir a sua casa, tendo deixado de lhe dirigir a palavra na rua e quando se cruzava com o menor, montado na sua motorizada, dirigia-se na sua direcção, dando a ideia de que o iria atropelar, acabando por se desviar.
Numa dessas vezes o arguido disse para um rapaz que se encontrava junto de um café: “ando à procura de putas, paneleiros e da bófia!”.
Em Dezembro de 2003 o arguido dirigiu-se a casa do D... e apercebeu-se que o mesmo se encontrava lá sozinho, pelo que o chamou do pátio para que fosse ter com ele.
Mais uma vez o arguido, embora nada tenha dito quanto ao seu propósito, queria abordá-lo para os mesmos fins o D… ..
Este entrou em pânico e fugiu para cima do telhado, através de uma escada.
O arguido revoltado atirou em direcção ao menor um dos martelos apreendidos nos autos, estando aquele em cima do telhado.
O arguido deixou o local montado na sua motorizada em virtude de passados poucos instantes (um minuto ou minuto e meio) se ter ouvido o barulho do carro da mãe do menor.
Após estes factos o arguido voltou a casa do D...ainda mais duas ou três vezes escondendo-se sempre aquele na casa de banho enquanto o arguido permanecia na dita residência.
Só depois de visto na televisão casos semelhantes o menor ganhou coragem para contar os factos à sua família, o que sucedeu depois de todas estas situações.
O arguido era casado com uma prima do D...em primeiro grau e frequentava habitualmente a casa daqueles.
Sabia o arguido que em Setembro de 2002 praticava actos que pela sua natureza tinham significado na área do comportamento sexual e que por essa mesma natureza e tipo do acto, destinado à estimulação para a actividade sexual, bem como, atenta a idade do menor o mesmo o poderia afectar, de modo sério e grave, no seu processo de crescimento, em termos de salvaguarda da sua autodeterminação sexual.
Sabia o arguido em relação aos factos de Setembro de 2003 que praticava factos que visavam a penetração do ânus do menor D...com o seu pénis, ou seja, a prática de sexo anal com o mesmo, o que fez por meio do uso da força e também oferecendo dinheiro, o que só não conseguiu por factos alheios à sua vontade.
Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente.
Sabia que a sua conduta lhe estava vedada por lei e não obstante quis agir daquele modo.
Mais se provou que a demandante civil levou o seu filho D...a uma consulta médica a Coimbra no que gastou 55,08 €.
Em consequência destes factos e com medo do arguido o menor durante o ano de 2003/04 faltou às aulas e perdeu o ano.
O menor teve medo do arguido.
O menor sentiu-se muito envergonhado com tudo o que sucedeu.
O D...é um adolescente normal que não apresenta sintomatologia do foro psiquiátrico e não parece estar actualmente muito traumatizado com os actos de que foi vítima.
Não parece necessitar de qualquer apoio especial.
Até ao presente o arguido beneficiava de uma imagem positiva não lhe sendo atribuídos comportamentos desadequados similares aos descritos acima.
Na vida do arguido não há referências a condutas ou experiências desviantes.
b) Factos não provados.
Não se provou que o arguido no decurso de uma contenda tenha partido uma garrafa e com ela cortado um primo do menor; que os urinóis fossem dois.”
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No acórdão recorrido destacou-se ainda a seguinte factualidade:
“1. Em 9 de Novembro de 2005, o arguido foi condenado como autor material, em concurso real, de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 172º nº 1 do CP, na pena de dois anos e seis meses e de um crime de violação, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 164º nº 1; 22º; 23º e 73º do CP, na pena de dois anos de prisão e, em cúmulo jurídico destas penas parcelares, na pena única de três anos e seis meses de prisão;
2. Os factos integradores de tais crimes foram praticados em dia não apurado do mês de Setembro de 2002 e em Setembro de 2003;
3. Na mesma decisão, foi condenado a pagar ao lesado a quantia de € 5.055,08, a título de compensação por danos não patrimoniais e de indemnização por danos patrimoniais;
4. O arguido foi julgado na ausência;
5. Estando, à data do julgamento efectuado nestes autos, a viver em França;
6. Embora tenha tomado conhecimento, quer da realização da audiência de discussão e julgamento, quer da condenação que se lhe seguiu;
7. Porque, segundo o que ele próprio referiu, «nunca levou este caso a sério»;
8. Ainda não efectuou quaisquer diligências, no sentido de iniciar o pagamento da indemnização que lhe foi imposta, nestes autos;
9. Continua a afirmar-se inocente;
10. Trabalha desde os 12 anos de idade;
11. Tendo estado a trabalhar, durante quatro anos, em Angola, num estabelecimento de café;
12. Durante cerca de dez anos, em França, em contratos sazonais, para prestação de trabalhos agrícolas;
13. Após o que esteve emigrado na Alemanha, durante cerca de quatro anos;
14. Onde trabalhou, na construção civil;
15. Regressou a Portugal, onde viveu durante algum tempo, após o que regressou a França, desta feita, para trabalhar como pedreiro;
16. Voltou a Portugal, passados três meses, em virtude de a sua mulher ter adoecido;
17. Tendo aqui permanecido, para lhe dar assistência;
18. Até à morte desta, em Maio ou Junho de 2005;
19. Logo após o que voltou para França;
20. Onde foi detido, para cumprir a pena que lhe foi imposta, neste processo;
21. Começou a consumir álcool quando tinha 19 anos de idade;
22. Bebia, em média, por dia, entre 3 a 5 litros de vinho;
23. Entretanto, deixou de beber;
24. Situação em que se mantém, desde há dois anos e meio;
25. Vive com uma companheira e com a filha desta, de 16 anos, desde há um ano e dois meses;
26. Antes de preso, havia retomado a sua actividade de pedreiro;
27. Auferindo cerca de 1300 euros, por mês;
28. Completou a 4ª classe;
29. Sabe ler e escrever;
30. Após o falecimento da sua mulher, passou por um período de desorientação pessoal e profissional;
31. É respeitado na F...;
32. Sendo alvo de estima e respeito pelas pessoas que o conhecem;
33. É considerado pessoa trabalhadora.”
Enquadramento jurídico
Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais grave do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido - art. 29º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa.
Por efeito deste princípio constitucional, para as hipóteses de descriminalização, estabelece nº 2 do art. 2º, nº 2, do C. Penal, que o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número de infracções; neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais.
Contudo, na aplicação retroactiva da lei nova mais favorável, constatava-se a inobservância do mencionado princípio constitucional, por efeito do respeito pelo caso julgado, pois o nº 4 daquele art 2º, na sua primitiva redacção, dispunha que quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado ( sublinhado nosso).
“Esta ressalva final, estabelecendo a intangibilidade do caso julgado, tornava a lei ordinária mais restritiva do que o texto constitucional, dando por isso origem a críticas, quer da doutrina, quer da jurisprudência. Assim, pronunciaram-se pela prevalência da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável ao caso julgado, os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa, Anotada, Vol. I, 4ª Edição Revista, 496), e pela inconstitucionalidade da ressalva, os Profs. Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 330), e o Prof. Taipa de Carvalho (Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais, PUC, 2003, 239 e ss.). Já o Prof. Figueiredo Dias (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2004, 189 e ss.) se pronunciou em sentido oposto. Também o Tribunal Constitucional (Ac. nº 169/2002, de 17/04/2002, DR II, de 16 de Maio de 2002) se pronunciou no sentido da inconstitucionalidade do nº 4 do art. 2º do C. Penal, se bem que não em toda a sua extensão.
Na Proposta de Lei nº 98/X, que deu origem à Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro que, como se sabe, alterou o C. Penal, no segmento da Exposição de Motivos, ponto 3 pode ler-se, «No Título I da Parte Geral, referente à lei penal, reforça-se a aplicação retroactiva da lei mais favorável, em cumprimento do disposto no artigo 29.º, n.º 4, da Constituição. Assim, mesmo após o trânsito em julgado da sentença condenatória, cessarão a execução e os efeitos penais quando o arguido já tiver cumprido uma pena concreta igual ou superior ao limite máximo da pena prevista em lei posterior (artigo 2.º, n.º 4). Esta solução é materialmente análoga à contemplada no nº 2 do artigo 2.º para a hipótese de a lei nova descriminadora ou despenalizante e a sua efectivação prescinde de uma reponderação da responsabilidade do agente do crime à luz do novo regime sancionatório mais favorável.».
Desta forma, e para pôr termo à questão, a Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, alterou o art. 2º, nº 4, do C. Penal, dispondo este agora que, quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior. “– Ac Rel Coimbra de 4.02.2009.
Adequando a lei processual penal ao novo regime, a Lei nº 48/2008, de 29 de Agosto, a aditou ao C. Processo Penal o art. 371º-A, com a seguinte redacção:
“Se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime.”.
Resumindo: a reabertura da audiência de discussão e julgamento, tem como pressuposto a sucessão de leis penais no tempo, desde que a nova lei de imediato e em abstracto se revele mais favorável, de tal modo que operando-se um juízo de prognose póstuma, reportado à data da audiência de discussão e julgamento, em que os factos foram apreciados, seja de concluir como provável que o arguido seria condenado de forma menos gravosa se a Lei Nova já então estivesse em vigor.
Não se pense porém que a reabertura contempla a possibilidade da repetição do julgamento. O art.º 371.º n.º 1-A , do CPP , “ao permitir a reabertura da audiência, com eventual produção de prova, não se traduz num irrestrito novo julgamento e, menos, ainda da matéria de facto, que deixa intocável, mas apenas um julgamento parcelar da questão em manifesto benefício do arguido para determinação, no confronto de leis em sucessão, do regime penal que lhe é mais benéfico, ou seja proporcionar nova sanção e não a discussão da culpabilidade.” - Ac. do STJ de 05.11.2008 e Ac. da Relação do Porto de 10.12.2007.
Nos autos, o recorrente foi condenado, como autor material de um crime de abuso sexual de crianças p. p. pelo artº 172º, nº 1, do CP, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão. Entende porém o arguido que face aos factos dados como provados em Setembro/2002 a incriminação aplicável é a prevista no artº 171/3 al. - a) e 170º, ambos do C. P.
O Artigo 172º do C.P. sob a epígrafe “ Abuso sexual de crianças “ aplicável à data da prática dos factos, estabelecia:
“1. Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
As diversas situações típicas previstas no referido artigo 172º, do Código Penal, tutelam o mesmo bem jurídico, qual seja a autodeterminação sexual de menor de 14 anos de idade - protecção da sexualidade e do livre desenvolvimento da personalidade (Cf. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, 541/542 e Mouraz Lopes, Os Crimes Contra a Liberdade e a Autodeterminação Sexual no Código Penal, 81/82).
Actualmente, após a alteração operada pelo n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro,( com entrada em vigor a 15-09 ), o artigo 171º, do C.P., sob idêntica epígrafe “ Abuso sexual de crianças”, dispõe:
1 - Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.
2 - Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
3 - Quem:
a) Importunar menor de 14 anos, praticando acto previsto no artigo 170.º; ou
b) Actuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa, escrito, espectáculo ou objecto pornográficos;
é punido com pena de prisão até três anos.
O acto mencionado na al a) daquele nº 3 e previsto no artigo 170º do CP, produzido por uma conduta geradora de importunação sexual, pode consistir num acto exibicionista ou num acto de constrangimento/constrição a contacto de natureza sexual.
Com efeito, o art 170º estabelece queQuem importunar outra pessoa praticando perante ela actos de carácter exibicionista ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal - (Artigo 170.º alterado pelo artigo 1.º da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, Vigésima terceira alteração ao Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro (DR 4 Setembro).

Vigência: 15 Setembro 2007)
Importa esclarecer qual o âmbito do elemento objectivo do tipo de ilícito em causa – a conduta – no segmento reportado ao contacto de natureza sexual. Constranger outrem a suportar um contacto sexual é obviamente a conduta de um agente que envolve a vítima numa situação de natureza sexual sem a sua anuência.
José Mouraz Lopes, sublinha que “...é de pressupor que só um acto sexual, que possa ser objectivamente entendido como tal, pode estar em causa” – Os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual no Código Penal 4ª edição, pág 108. E apelando à discussão na doutrina e na jurisprudência sobre o que não era considerado “acto sexual de relevo” conclui que os actos que desta figura exorbitem, integrarão o domínio do contacto de natureza sexual para efeitos deste tipo de crime.
E explicita afirmando “É o caso do “apalpão” ou o “roçar” ou pressionar partes do corpo contra partes do corpo da vítima, por exemplo nos transportes publicos ou em espaços fechados, que podem consubstanciar uma situação de “froteurismo ( de frotter). “

Ilustra bem o critério da relevância ético-social do bem jurídico e da modalidade da conduta que o pode lesar, por pressupor uma valoração social negativa, o caso de “Maria” ... bonita e loira, vestia uma mini de cabedal preto e um blusão de pêlo branco e caminhava só na rua, ao pé do Cais do Sodré, a caminho de casa. Quando estava a 300 metros do destino, um grupo de três rapazes de vinte anos apareceu-lhe à frente. O primeiro mandou-lhe a mão ao rabo, o segundo imitou-o. O terceiro encostou-a à parede e passou-lhe revista. A Maria gritou, empurrou, debateu-se, deu pontapés, mas não conseguiu rechaçá-lo. Quando os rapazes a largaram, ficou parada a insultá-los, aos gritos, até ficar rouca, mas eles riram e não voltaram para trás.” – in http://redejovensigualdade.org.pt/blog.

Mais grave e por isso de relevo, o «Acto sexual de relevo é aquele que, não sendo de cópula ou de coito anal, esteja relacionado com o sexo, perturbe seriamente a autodeterminação sexual de uma criança e, objectivamente, ocasione, pelo menos, tanto ou mais perturbação que o «acto exibicionista» (perante menor de 14 anos) ou mesmo a mera «conversa obscena», «escrito, espectáculo de objecto pornográfico», referidos no nº 3 do art. 172º do CP/revisto» [Ac. R.L. de 26/5/97, in CJ-XXII-Tomo III-148].
O "acto sexual" a que alude a previsão típica do art. 172º do Código Penal é o que tem, de um ponto de vista predominantemente objectivo, natureza e conteúdo directamente relacionados com a sexualidade e assume o significado "de relevo" quando constitua ofensa séria e grave à intimidade e liberdade do sujeito no domínio da sexualidade.
Não é, pois, qualquer acto de natureza, conteúdo ou significado sexual que se integra naquele conceito e serve ao espírito da previsão normativa, "mas apenas aqueles actos que constituam uma ofensa séria e grave à intimidade e liberdade sexual do sujeito passivo e invadam, de uma maneira objectivamente significativa, aquilo que constitui a reserva pessoal, o património íntimo, que no domínio da sexualidade, é apanágio de todo o ser humano" – Ac STJ de 12/07/2005.
Delimitando o conceito pela negativa e citando o Prof. FIGUEIREDO DIAS (em Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 448/449) acentua que é de excluir do conceito de "acto sexual de relevo" não apenas os actos «insignificantes ou bagatelares», mas também aqueles que não representem «entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima», como por exemplo, os «actos que, embora "pesados" ou em si "significantes", por impróprios, desonestos, de mau gosto ou despudorados, todavia, pela sua pequena quantidade, ocasionalidade ou instantaneidade, não entravem de forma importante a livre determinação sexual da vítima».
Na opinião do arguido apalpar o ânus, por duas vezes, a menor de 14 anos não constitui acto sexual de relevo, antes, configura constrangimento a contacto de natureza sexual.
Porém, não foi uma situação de mero “apalpão no rabo”do menor que resultou provada. Provado foi que “o arguido agarrou-o pela cintura e puxou-o para si, apalpando-o no ânus por duas vezes. Ao mesmo tempo o arguido tentava tirar as calças ao menor, as quais se encontravam desapertadas, pois que o mesmo tinha acabado de urinar. O menor que tentava afastar-se mas não conseguia, a certo momento deu um pontapé no arguido e empurrou-o acabando por fugir.”
Acto sexual de relevo é aquele que ofende séria e gravemente a intimidade e liberdade sexual e constitui entrave importante à livre determinação sexual.
Para Leal Henriques e Simas Santos, nas suas anotações ao Código Penal, "não é qualquer acto sexual que serve o espírito do artigo, mas apenas aqueles actos que constituam uma séria e grave ofensa à intimidade e liberdade do sujeito passivo e invada, de uma maneira objectivamente significativa, aquilo que constitui a reserva pessoal, o património íntimo, que, no domínio da sexualidade, é apanágio de todo o ser humano» integra, sem dúvida, o conceito de acto sexual de relevo.
Foi neste pressuposto e correctamente que no acórdão proferido em primeira instância, em 9 de Novembro de 2005, o crime de abuso sexual de criança foi enquadrado no nº1 do antigo art. 172º do CP, porque como supra se realçou, o arguido agarrou a vítima pela cintura, apalpou-lhe o ânus, por duas vezes e tentou tirar-lhe as calças que vestia, o que tanto, na Lei antiga, como na Lei nova, não pode deixar de ser considerado como acto sexual de relevo e não, mero constrangimento a contacto de natureza sexual. Acresce ter resultado provado que “Sabia o arguido que em Setembro de 2002 praticava actos que pela sua natureza tinham significado na área do comportamento sexual e que por essa mesma natureza e tipo do acto, destinado à estimulação para a actividade sexual, bem como, atenta a idade do menor o mesmo o poderia afectar, de modo sério e grave, no seu processo de crescimento, em termos de salvaguarda da sua autodeterminação sexual.”
Como se faz notar no acórdão recorrido, o crime de abuso sexual de criança, tanto à data da prática dos factos, como actualmente, é tipificado de modo em tudo idêntico, tanto no que se refere aos respectivos elementos constitutivos do tipo, como em relação às respectivas penas e molduras abstractas, como facilmente se percebe da mera comparação literal entre os arts. 172º, antigo e o actual art. 171º.
Assim sendo, o crime praticado pelo arguido, em dia não apurado do mês de Setembro de 2002, continua a ser o de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art. 171º nº 1 e não pelo nº 3 al. a).
Pretende, ainda, o arguido que os factos praticados em Setembro de 2003 são integradores de um crime de actos sexuais com adolescentes e não de um crime de violação, ainda que na forma tentada.
O art 164º nº 1, do CP na anterior redacção dispunha Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.”
Actualmente o art 164º, do CP, dispõe:
1 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.
2 - Quem, por meio não compreendido no número anterior e abusando de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho, ou aproveitando-se de temor que causou, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;
é punido com pena de prisão até três anos.
( Artigo 164.º alterado pelo artigo 1.º da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, Vigésima terceira alteração ao Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro (DR 4 Setembro).

Vigência: 15 Setembro 2007)
Com tal incriminação visa-se proteger a liberdade e autodeterminação sexual, ou da liberdade do trato sexual, como refere F. Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 466 e Acórdãos do STJ, de 20/02/97 e de 26/02/98, in CJ, STJ, 1, 227 e BMJ 474 – 184, respectivamente.
O respectivo tipo de ilícito em termos objectivos, consiste em o agente constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral, a sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, por meio de violência, ameaça grave ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir.
Ora, um dos meios típicos de coacção é a violência, em que manifestamente se integra a força física, utilizada pelo arguido, tal como acima descrito, tudo com vista a sujeitar, como pretendia, o ofendido à prática de coito anal - cf. F. Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág.s 452 a 454 e 471 e 472. (sobre o conceito de violência e sobre os demais elementos constitutivos do crime de violação cfr., por todos, Figueiredo Dias, Comentário Conimbricence, cit., Tomo 1, págs. 453- 454 e 466-473
O art 173º do CP, sob a epígrafe Actos sexuais com adolescentes, estipula o seguinte:
1 - Quem, sendo maior, praticar acto sexual de relevo com menor entre 14 e 16 anos, ou levar a que ele seja por este praticado com outrem, abusando da sua inexperiência, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.
2 - Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito oral, coito anal ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
Secção II do capítulo V do título I do livro II alterada pelo n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, Vigésima terceira alteração ao Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro (DR 4 Setembro), passando a ser composta pelos artigos 171.º a 179.º, todos alterados pelo artigo 1.º.


Sobre a evolução histórica do artigo veja-se José Mouraz Lopes ob cit, pag 134 e segs. Segundo este autor “trata-se de um crime de abuso sexual de adolescentes com a especificidade de exigir para a sua ocorrência, cumulativamente o abuso da inexperiência da vítima…”. E acrescenta que inexperiente será a pessoa que não se mostra capaz de formular um juízo ético sobre a actividade sexual e as suas consequências, pelo que não se exige o desconhecimento “das coisas do sexo” sob o aspecto teórico. “Assim não se exige que a vítima seja alheia à vida social, totalmente inocente ou ingénua”.
Afigura-se que o legislador de 2007 pretendeu pôr fim à diferente valoração fundada unicamente na natureza do acto homossexual de relevo, e, de harmonia com tal orientação, a Lei 59/2007 de 04.09 criou um único tipo que continua a exigir, a sedução como meio de execução para levar o adolescente a «consentir» na prática do acto sexual.
Desde logo, este tipo legal distingue-se da violação, quanto aos modos de acção típica.
A ausência de assentimento por parte da vítima caracteriza a violação, ao contrário do crime do art. 173º actual, que pressupõe um consentimento, ainda que viciado por erro, mas sem sujeição a qualquer tipo de constrangimento por ameaça grave ou uso de violência.
Reportando-nos aos factos praticados pelo arguido em Setembro de 2003, quando o menor D...já tinha 14 anos, aquele a pretexto de lhe pedir desculpa pelos factos anteriores e de lhe apertar a mão, com as suas calças já despidas e o pénis erecto, agarrou, mais uma vez o menor, pela cintura, tentando tirar-lhas, a ponto de o cinto se ter rebentado, o que não pode deixar de ser considerado de violência. Actos que visavam a penetração do ânus do menor, expressamente verbalizada quando tendo o menor conseguido soltar-se e afastar-se, o arguido vendo a reacção do menor tirou um volumoso maço de notas do bolso e lhe disse: “dou-te este dinheiro todo se me deixares ir-te ao cú!”
Aliás resultou provado que o arguido em relação aos factos de Setembro de 2003 sabia que praticava factos que visavam a penetração do ânus do menor D...com o seu pénis, ou seja, a prática de sexo anal com o mesmo, o que fez por meio do uso da força e também oferecendo dinheiro, o que só não conseguiu por factos alheios à sua vontade.
Entende o arguido que a violência referida no art° 164 CP respeita à força física "idónea a vencer a resistência efectiva ou esperada da vitima" e como o menor deu um pontapé e um empurrão ao arguido conseguindo soltar-se e afastar-se, evidencia a inidoneidade da força física usada para o fim em vista.
Sobre o conceito de violência exigida pelo art 164º, entendemos que tem de traduzir-se na prática de actos de utilização de força física contra a pessoa da vítima com a finalidade de impedir a sua resistência, o que não exclui o “consentimento” da vítima apenas e tão só para evitar o mal maior, porque obviamente tal consentimento não é totalmente livre.
A conduta do arguido atentou frontalmente contra a liberdade e intimidade corporal, sexual, do menor, que foi por colocado propositadamente numa situação de temor e inferioridade, para com ele manter contacto corporal com vista a obter excitação e prazer sexual, determinado que estava a introduzir o seu pénis no anus do D…, e só não concretizou o coito anal, por motivos alheios à sua vontade
Concluindo, também os factos ocorridos em Setembro de 2003 continuam a integrar o crime de violação, p. e p. pelo actual art. 164º do CP, que manteve intactos, os elementos constitutivos do tipo já exigidos no antigo art. 164º assim como as mesmas penas e respectivas molduras.
Da suspensão da pena
Em cúmulo jurídico foi imposta ao arguido a pena única de três anos e seis meses de prisão.
Constitui princípio fundamental do sistema punitivo do Código Penal (art. 40º) o da preferência fundamentada pela aplicação das penas não privativas da liberdade, consideradas mais eficazes para promover a integração do delinquente na sociedade e dar resposta às necessidades de prevenção geral e especial.
Nos termos do art. 50º nº 1 do CP, segundo a Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, «o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
O art. 50.º do CP consagra um poder-dever, ou seja um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos.
Sendo uma medida penal de conteúdo reeducativo e pedagógico - Maia Gonçalves (Código Penal Português, 18.ª Edição, pág. 215 -, cujo pressuposto material consiste, na “… adequação da mera censura do facto e da ameaça da prisão às necessidades preventivas do caso, sejam elas de prevenção geral, sejam de prevenção especial…não pode o tribunal afastar a suspensão da execução da pena de prisão com base em considerações assentes na culpa grave do arguido - Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal, Univ. Católica Editora, 2008, pág. 195.
“Para esse efeito, é necessário que o julgador, reportando-se ao momento da decisão e não ao da prática do crime, possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição; este juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido pode assentar numa expectativa razoável de que a simples ameaça da pena de prisão será suficiente para realizar as finalidades da punição e, consequentemente, a ressocialização (em liberdade) do arguido - Ac STJ 27-01-2009.
E a ponderação das condições pessoais do arguido, da sua personalidade e conduta anterior e posterior aos factos, bem como as circunstâncias em que estes foram praticados, estão directamente associadas a finalidades de prevenção especial e não a quaisquer factores relacionados com o grau de culpa do agente, cuja sede própria de apreciação é a escolha e determinação concreta da pena, constituindo o limite máximo e inultrapassável desta.
A suspensão da execução da pena que, embora efectivamente pronunciada pelo tribunal, não chega a ser cumprida, por se entender que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para realizar as finalidades da punição, deverá ter na sua base uma prognose social favorável ao réu, a esperança de que o réu sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime (Ac. do STJ de 25.10.2007, in http://www.dgsi.pt).
O tribunal deverá correr um “risco prudente”, uma vez que, como sugestivamente já há muito anotaram Leal-Henriques e Simas Santos, em anotação ao art. 50.º do CP, “…esperança não é seguramente certeza…”, mas, subsistindo dúvidas sobre a capacidade do arguido para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, então, deverá a prognose ser negativa.
São as razões de prevenção geral, traduzidas nas exigências mínimas e irrenunciáveis de salvaguarda da crença da sociedade, na manutenção e no reforço da validade da norma incriminadora violada, que determinam a possibilidade de reinserção social em liberdade que inspira o instituto da suspensão da execução da pena.
Mesmo que aconselhada à luz das exigências de socialização do condenado, a suspensão da execução da pena não poderá ter lugar, se a tal se opuserem a tutela dos bens jurídicos violados e as expectativas comunitárias, quanto à capacidade dos mecanismos e das instituições previstos na ordem jurídica para repor a validade e a eficácia das normas que a integram e de as fazerem respeitar.
Uma tal medida (de suspensão de execução da pena de prisão) em nada pode ser influenciada por considerações, seja de culpa, seja de prevenção especial.
É certo que os crimes por que o arguido foi condenado, nestes autos, suscitam fortes e intensas preocupações ao nível da prevenção geral.
Como se escreve no acordão recorrido “do ponto de vista dos bens jurídicos violados, atento o seu carácter conatural à dignidade da pessoa humana e essencial ao convívio social, são fortes as exigências de prevenção geral quer, no que se refere à indesejável e preocupante proliferação da prática de crimes sexuais, tanto a nível do país, como, especialmente, na área desta comarca, quer no que se refere ao forte alarme social que crimes desta natureza, sobretudo, quando as vítimas são crianças, geram no seio da comunidade.”
A ponderar, o comportamento do arguido, após a prática dos crimes, com atitudes de desforço e intimidação da vítima, com tentativas de atropelamento e de outras formas de agressão física, conforme resulta dos factos provados. Por outro lado nem sequer reparou as consequências dos crimes por si cometidos, pagando a compensação fixada à vítima pelos danos não patrimoniais.
Até ao presente o arguido beneficiava de uma imagem positiva não lhe sendo atribuídos comportamentos desadequados similares aos descritos acima.
Na vida do arguido não há referências a condutas ou experiências desviantes.
“21. Começou a consumir álcool quando tinha 19 anos de idade;
22. Bebia, em média, por dia, entre 3 a 5 litros de vinho;
23. Entretanto, deixou de beber;
24. Situação em que se mantém, desde há dois anos e meio;
25. Vive com uma companheira e com a filha desta, de 16 anos, desde há um ano e dois meses;
26. Antes de preso, havia retomado a sua actividade de pedreiro;
27. Auferindo cerca de 1300 euros, por mês;
28. Completou a 4ª classe;
29. Sabe ler e escrever;
30. Após o falecimento da sua mulher, passou por um período de desorientação pessoal e profissional;
31. É respeitado na F...;
32. Sendo alvo de estima e respeito pelas pessoas que o conhecem;
33. É considerado pessoa trabalhadora.”
Em resumo, o arguido venceu a sua dependência de bebidas alcoólicas e conseguiu reorganizar a sua vida, a nível familiar, desfrutando de uma boa imagem, junto das pessoas que integram a comunidade de onde é natural e reside, quando se encontra em Portugal.
Não obstante, tal como no tribunal recorrido, entendemos que tais factos são insuficientes para fundamentar um juízo de prognose favorável quanto à capacidade de reinserção social do arguido.
Desde logo, como se salienta no acordão recorrido, atendendo a que este tipo de criminalidade, tem frequentemente como agentes indivíduos sem antecedentes criminais e até gozando de alguma consideração social.
O arguido não compareceu a julgamento, facto que não o prejudicando, o impediu de recolher um eventual benefício caso revelasse ter interiorizado o mal do crime; assim, não exteriorizou qualquer acto revelador de arrependimento, pelo que não só não é admissível a formulação de um juízo de prognose positivo sobre o seu comportamento futuro, como o sentimento jurídico da comunidade exige que o mesmo cumpra em clausura a pena que lhe foi cominada, pois só assim se cumprem as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico
Decididamente, a pena de prisão efectiva impõe-se, ao menos, em nome destas últimas exigências de restabelecimento da confiança da comunidade, na validade dos valores ético-jurídicos subjacentes à incriminação contida nos arts. 172º e 164º do CP.
Assim, a pena de prisão efectiva impõe-se, ao menos, em nome destas últimas exigências de restabelecimento da confiança da comunidade, na validade dos valores ético-jurídicos subjacentes à incriminação contida nos arts. 172º e 164º do CP.
III - DECISÃO
Por tudo o exposto, decide-se julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido e, consequentemente, confirmar o acordão recorrido.
E condenar o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 5 (cinco) Uc’s.
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Coimbra, 22/04/09
Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – art 94, do CPP.

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Isabel Valongo

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João Trindade