Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2489/05.2TBVIS
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VÍTOR
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
SERVIDÃO POR DESTINAÇÃO DO PAI DE FAMÍLIA
MÁ FÉ
Data do Acordão: 11/18/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 1547.º, N.º 1 E 1549.º DO CÓDIGO CIVIL; ARTIGO 456.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. São elementos caracterizadores da constituição da servidão de passagem por destinação de pai de família: a) O acto constitutivo propriamente traduzido na separação jurídica de dois prédios; b) Que os prédios em causa tenham pertencido, unitária ou fraccionadamente, ao mesmo proprietário; c) Que, aquando da separação predial, nada se tenha estipulado em contrário; d) Que existam pré-existentes a tal separação, sinais visíveis e permanentes colocados pelo anterior proprietário ou por algum dos seus antecessores.
2. No tocante à existência de sinais visíveis e permanentes não se impõe que os mesmos tenham um cariz de acabamento de caminho perfeito; a lei basta-se com a existência de sinais que ali tenham sido colocados intencionalmente pelos anteriores proprietários e que revelem o caminho de um prédio para o exterior através de outro.
3. Tais sinais devem reportar-se inequivocamente a actos praticados pelos antecessores do actual proprietário quando os prédios constituíam uma unidade vincando-se assim (e aqui reside a particularidade do instituto) o intuito dos anteriores proprietários em que houvesse uma dependência entre os dois prédios, ainda que os sinais em análise existam apenas num deles.
Provando-se que os AA. intentaram a acção de constituição de uma servidão por usucapião, sabendo perfeitamente que no prédio suposto serviente não existia o respectivo caminho que no entanto delinearam com pormenor nos seus articulados; e ainda que se arrogaram exercício de um direito próprio de passagem pelo aludido prédio quando o fizeram esporadicamente com autorização dos respectivos proprietários, litigaram de má-fé, justificando-se plenamente que sejam sancionados com a multa de 4 UC acrescida de indemnização à parte que obteve vencimento na acção
Decisão Texto Integral: Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra.

A.....e mulher B.....propuseram a presente acção declarativa sob a forma de processo sumário contra C.....e mulher D....., pedindo que, pela procedência da mesma, sejam os Réus condenados:

– a reconhecerem que o seu prédio está onerado com uma servidão de passagem, adquirida por via da usucapião, a favor do prédio dos Autores identificado no art. 1º da p.i. pelo caminho existente no terreno destes que se situa a nascente da sua casa de habitação identificada no artº 2º da p.i., saindo da estrada municipal a norte e seguindo para sul com uma largura de oito metros numa extensão de cerca de 15 metros e aí, flectindo para poente, a sul da casa dos Réus, numa extensão de cerca de 7 metros e de largura de 3,5 m, prolongando-se no terreno dos Autores que se situa a sul da sua casa de habitação,

- a pagarem aos Autores uma indemnização a fixar em execução de sentença pelos danos causados e que continuam a causar.

Para tal, alegam, no essencial, que são donos do prédio identificado no art. 1º da p.i., que os Réus são donos do prédio identificado no artº 2º da p.i., que tais prédios resultaram da divisão de outro prédio, que os Autores têm acesso ao seu prédio através de um caminho existente no prédio dos Réus desde que foi efectuada tal divisão há mais de 20 anos, por onde os Autores sempre passaram sem oposição, à vista de toda a gente, convictos de sobre o mesmo gozarem de uma servidão de passagem para o seu prédio.

Mais alegam que há cerca de 3 anos, os Réus impedem os Autores de utilizar aquele caminho, tendo realizado obras que impedem os Réus de passarem com tractor para o seu prédio, causando-lhes prejuízos.

Na contestação apresentada, vieram os Réus impugnar de forma motivada a factualidade alegada pelos Autores e deduzir reconvenção, pedindo que, pela procedência da mesma, seja reconhecido o direito de propriedade sobre o prédio identificado nos art. 2º da p.i. e 67º da contestação, seja reconhecido que sobre esse prédio inexiste qualquer servidão de passagem ou quaisquer outros encargos a onerar o prédio dos reconvintes, sejam os Autores condenados a pagarem uma indemnização por litigância de má fé em quantia não inferior a 5.000 €.

Para tal, alegam, no essencial, que são donos do prédio identificado nos art. 2º da p.i. e 67º da contestação, que cada um dos prédios de AA. e RR confronta com a via pública, à qual têm acesso directo, que os Autores apenas passaram pelo prédio dos Réus por 2 ou 3 vezes durante os últimos 20 anos, com permissão dos Réus, que não existe qualquer servidão a onerar o seu prédio.

Na resposta apresentada, vieram os Autores requerer a condenação dos Réus como litigantes de má fé numa multa e indemnização a fixar pelo Tribunal.

Efectuado o registo da acção, foram convidados os Autores a aperfeiçoar a alegação dos factos, nos termos mencionados a fls. 68, sendo que aqueles juntaram a fls. 72 e seg. dos autos novo articulado de petição inicial aperfeiçoado, relativamente ao qual os Réus exerceram o contraditório a fls. 76 e seg.

Foi proferido despacho saneador a fls. 84 e segs., com selecção da factualidade assente e elaboração da base instrutória, o qual não foi objecto de reclamação.

Procedeu-se a julgamento e acabou por ser proferida sentença que:

I - Julgou a acção improcedente sendo que totalmente procedente a reconvenção e daí:

- Absolveu os Réus C.....e mulher D..... dos pedidos formulados pelos Autores A.....e mulher B….

- Declarou que os Réus reconvintes C.....e mulher D..... são proprietários do prédio referido no ponto 2 da factualidade apurada, condenando os Autores reconvindos a absterem-se da prática de qualquer acto que perturbe, limite ou impeça o exercício do direito de propriedade dos Réus reconvintes sobre esse prédio,

- Declarou que sobre o prédio referido no ponto 2 da factualidade apurada não impende qualquer servidão de passagem, ou quaisquer outros encargos, em benefício do prédio referido no ponto 1 da factualidade apurada.

II - Julgou totalmente improcedente o incidente de litigância de má fé suscitado pelos Autores reconvindos e procedente o incidente de litigância de má fé suscitado pelos Réus reconvintes e, em consequência:

– Absolveu os Réus reconvintes do pedido de condenação em multa e indemnização, por litigância de má, formulado pelos Autores reconvindos,

– Condenou os Autores reconvindos, com fundamento em litigância de má fé, numa multa de 4 UC (quatro unidades de conta), ao abrigo do disposto nos artº 102º, alínea a) do CCJ e 456º, nº 2, alínea a) do CPC, e numa indemnização aos Réus a liquidar em momento ulterior, nos termos do artº 457º, nº 2 do CPC.

Daí o presente recurso de apelação interposto pe­los AA., os quais no termo da sua alegação pediram que "se revogue a sentença recorrida admitindo-se a reclamação impugnada com as consequências legais daí advenientes e anulando-se liminarmente por falta de fundamento legal a condenação dos AA. como litigantes de má-fé".

Foram para tanto apresentadas as seguintes,

Conclusões.

1) Na presente acção os AA. reivindicam uma servidão de passagem, a pé e de tractor, pelo prédio dos RR.

2) Servidão essa adquirida, não só por usucapião, mas também e fundamentalmente por destinação de pai de família.

3) Elaborado o despacho saneador, os AA. reclamaram nos termos supra-alegados.

4) A referida reclamação foi indeferida por despacho de fls. 108.

5) Tal indeferimento impediu os AA. de procederem à prova do supra referido em 2, isto é, de que, quando AA. e RR. procederam à divisão do prédio, o caminho em lide já existia e dava acesso a ambos.

6) Logo, o deferimento da reclamação em causa, permitiria aos AA., com a naturalidade da verdade dos factos, provar que, quando os prédios de AA. e RR. eram um só, este era servido somente pelo caminho reivindicado por aqueles.

7) O indeferimento impugnado no presente recurso, ao abrigo do disposto no artº. 511º do CPC, inviabilizou aos AA. a prova da questão central da lide vertente, raiando, em nosso entendimento e, mais uma vez, com o devido respeito, a denegação de justiça.

8) Ademais, tal deferimento possibilitaria, ainda, com toda a clareza e legitimidade, afastar qualquer indício de litigância de má-fé.

9) Mesmo no actual estádio dos autos, constitui um autêntico atropelo à legalidade e à justiça condenarem-se os AA. como litigantes de má-fé, quando estes apenas se limitaram, com a acção em apreço, fazer valer um direito que, convictamente, crêem estar contido na sua esfera jurídica.

10) A condenação dos AA. como litigantes de má-fé, proferida pela Sra. Juiz a quo, é manifestamente abusiva e injusta, violando os pressupostos da verdade material e processual.

11) A sentença ora recorrida violou o normativo nela invocado e demais legislação aplicável.

Não houve contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

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2. FUNDAMENTOS.

O Tribunal deu como provados os seguintes,

2.1. Factos.

2.1.1. Os Autores são donos e senhores do seguinte prédio: uma casa de habitação de rés-do-chão e andar, com a área coberta de 95 metros quadrados e terreno pegado, com a área de 465 metros quadrados, sito na povoação de Vila Corça, freguesia de Povolide, concelho de Viseu, que no todo confronta do norte com a estrada municipal, sul com José Marques Gonçalves, nascente com os Réus, poente com João da Costa Marques, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 1631/19990121 e inscrito na matriz sob o artigo urbano 1014 – A.

2.1.2. Os Réus são donos e senhores do seguinte prédio: uma casa de habitação de rés-do-chão e andar, com a área coberta de 95 metros quadrados e terreno pegado, com a área de 235 metros quadrados, sito na povoação de Vila Corça, freguesia de Povolide, concelho de Viseu, que no todo confronta do norte com a estrada municipal, sul com José Marques Gonçalves, nascente com Eleutério V. do Carmo Loureiro, poente com os Autores, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 1632/19990121 e inscrito na matriz sob o artigo urbano 1026 – B.

2.1.3. Os terrenos dos AA. e RR., onde construíram as suas habitações, eram um só, o qual foi dividido há mais de 20 anos, tendo ambos efectuado escrituras de justificação das respectivas fracções em 19-11-1998 – C.

2.1.4. Os Réus, por si e antepossuidores, vêm possuindo o prédio referido em 2) consecutivamente há mais de 20, 30 anos, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, sempre na convicção de exercer um direito, habitando-o, melhorando-o, pagando a contribuição autárquica (hoje IMI), retirando da área descoberta os proventos de que é susceptível, tal como frutos hortícolas e praticando os demais actos normais de proprietários – D.

2.1.5. Os prédios referidos em 1) e 2) têm áreas descobertas na parte sul que se destinam à agricultura de hortícolas e árvores de fruto e têm entradas autónomas e independentes – E.

2.1.6. Há anos, os Autores, por si e através de terceiros ao seu serviço, passaram algumas vezes com tractor pelo logradouro do prédio referido em 2) até à parte sul do prédio referido em 1), com autorização dos Réus – resp. aos ques. 12º, 23º, 24º.

2.1.7. Os Autores procederam da forma referida em 6) à vista de toda a gente – Resp. ao ques. 13º.

2.1.8. Os Autores procederam da forma referida em 6) sem oposição de quem quer que seja - resp. aos quesitos. 15º.

2.1.9. Os Réus não autorizam mais os Autores a passarem pelo prédio referido em 2) para acesso ao prédio referido em 1) – resp. aos ques.17º.

2.1.10. Os Réus aplicaram argamassa de cimento e areia na área descoberta do prédio referido em 2) situada a poente da casa existente nesse prédio, no sentido norte – sul – resp. aos ques.18º.

2.1.11. Na estrema poente do seu terreno com o terreno dos Autores, os Réus colocaram uns paus ao alto com arames suportados nos mesmos, em toda a extensão na parte em que confinam - 19º.

2.1.12. O referido em 11) impede que o acesso à área descoberta sita a sul da casa existente no prédio referido em 1) possa vir a ser feito através do prédio referido em 2) – resp. aos ques. 20º e 21º.

2.1.13. A casa sita no prédio referido em 1) tem duas aberturas viradas para norte que permitem a entrada a partir da via pública, existindo ainda uma passagem na área descoberta do prédio referido em 1), a poente dessa casa, que se desenvolve no sentido norte-sul e que dá acesso, a partir da via pública, ao quintal sito nas traseiras da casa em questão - resp. aos ques. 22º.

2.1.14. Nas traseiras da casa sita no prédio referido em A) existe, nesse mesmo prédio, uma área cultivada com produtos hortícolas com a forma de um trapézio cujos lados têm as seguintes dimensões: 8 m 10,70 m × 3,70 m × 11,50 m – resp. aos ques. 25º.

2.1.15. Existe uma passagem na área descoberta do prédio referido em 1), a poente da casa nele implantada, que se desenvolve no sentido norte-sul, que dá acesso, a partir da via pública, ao quintal sito nas traseiras da casa em questão e por onde os Autores podem passar a pé e com veículos de largura inferior a 1,68 metro – resp. aos ques. 26º.

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2.2. O Direito.

Nos termos do preceituado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

- Dos requisitos da constituição da servidão por destinação de pai de família.

- Serão os factos alegados pelos AA. idóneos a permitir, se provados a constituição de uma servidão desta natureza?

Ampliação da matéria de facto?

                                                                       

- Da condenação dos AA. como litigantes de má-fé.

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2.2.1. Dos requisitos da constituição da servidão por destinação de pai de família e os factos alegados pelos AA..

Do que os RR. alegaram, antolha-se-nos que pretendem ver anulado o julgamento a fim de que seja ampliada a matéria de facto de molde a que possam ser aditados factos à Base instrutória, que em seu entender serão susceptíveis, se provados, de abrir a possibilidade de concluir pela constituição da servidão de passagem a favor do seu prédio e através do dos RR., ambos identificados nos pontos da Base Instrutória. Referem os AA. que mais do que a constituição da servidão por via da usucapião que também arvoraram como causa de pedir, a presente acção procuraria fazer vingar a sua pretensão através do instituto primeiramente referido.

Nos termos do preceituado no artigo 1 549º do Código Civil " Se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas fracções de um só prédio, houver sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas fracções do mesmo prédio, vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento". São assim elementos caracterizadores da constituição da servidão de passagem por destinação de pai de família: a) O acto constitutivo propriamente traduzido na separação jurídica de dois prédios; Que os prédios em causa tenham pertencido, unitária ou fraccionadamente, ao mesmo proprietário; b) Que, aquando da separação predial, nada se tenha estipulado em contrário; c) Que existam pré-existentes a tal separação, sinais visíveis e permanentes colocados pelo anterior proprietário ou por algum dos seus antecessores[1].

Para a constituição da servidão nos moldes supra-enunciados não levanta grandes problemas a interpretação e concretização das duas primeiras exigências legais. Já a questão dos sinais visíveis e permanentes é mais delicada constituindo também a pedra de toque da presente acção; justifica por isso mais alargadas considerações.

Começaremos por dizer que a exigência de sinais visíveis e permanentes não impõe que os mesmos tenham um cariz de acabamento de caminho perfeito; a lei basta-se com a existência de sinais que ali tenham sido colocados intencionalmente pelos anteriores proprietários e que revelem o caminho de um prédio para o exterior através de outro .

Tais sinais devem reportar-se inequivocamente a actos praticados pelos antecessores do actual proprietário quando os prédios constituíam uma unidade, vincando-se assim (e aqui reside a particularidade do instituto) o intuito dos anteriores proprietários em que houvesse uma dependência entre os dois prédios, ainda que os sinais em análise existam apenas num deles[2].

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2.2.2. Serão os factos alegados pelos AA. idóneos a permitir, se provados a constituição de uma servidão desta natureza?

Ampliação da matéria de facto?

Os AA. intentaram a acção invocando duas causas de pedir: a usucapião e a destinação de pai de família.

Efectuado o julgamento incidindo de forma exclusiva sobre o primeiro instituto supra referido a acção foi julgada improcedente pelo facto de as testemunhas serem praticamente unânimes quanto à inexistência dos sinais visíveis e permanentes de passagem e bem assim dos factos correspondente ao animus caracterizadores da usucapião nas servidões.           

Coloca-se agora a questão de saber se os factos alegados pelos AA. serão susceptíveis de conduzir à constituição de uma servidão por destinação de pai de família sobre o prédio dos RR.. Os AA. referem que tal seria possível se a reclamação que fizeram à Base Instrutória tivesse obtido provimento e se fossem quesitados os pontos 9º, 17º e 18º da resposta à reconvenção.

Vejamos: No quesito 9º da Base instrutória perguntava-se se desde a divisão referida em C) sempre existiu o caminho referido de 1) a 8)?

Na dita alínea consagra-se que "os terrenos dos AA. e RR. onde construíram as suas habitações eram um só, o qual foi dividido há mais de 20 anos tendo ambos efectuado escrituras de justificação das respectivas fracções em 19/11/1998".

Na reclamação que deduziram quanto à Base instrutória os AA. reconhecendo muito embora terem sido infelizes ao redigirem o ponto 8º da sua resposta de onde emerge o citado quesito, referem "que o que pretenderam e pretendem dizer é que "quando procederam à divisão do prédio o caminho em causa já existia".

Essa reclamação foi indeferida pelo Sr. Juiz com o fundamento de que o quesito tal como se encontra redigido corresponde aos termos em que foi alegado nos articulados. E bem, diga-se desde já. Na verdade ainda vigora no Direito Processual Civil o princípio da autoresponsabilidade que em conexão com o princípio do dispositivo estatui que as partes conduzem em princípio o processo redundando como refere Manuel de Andrade "a negligência ou inépcia das partes em seu prejuízo"[3].

Por outro lado também o princípio da preclusão estatui que existem no processo momentos processuais próprios para a prática dos actos e assim para a correcção ou aditamento das posições tomadas, exceptuadas as hipóteses previstas nos artigos 273º, 489º nº 2 e 524º do Código de Processo Civil. No caso concreto seria durante a fase dos articulados que os AA. poderiam ter feito, sob pena de preclusão, os aperfeiçoamentos que se impunham e não após a Base Instrutória, momento em que o Juiz terá que cingir-se ao que é alegado pelas partes.

Também a matéria alegada sob os artigos 17º e 18º da resposta à contestação viu recusada a respectiva inclusão na Base Instrutória referindo-se inexistência de fundamento para tanto.            

Alegava-se no ponto 17º que "o caminho em causa já existia quando os anteriores proprietários eram donos do terreno que foi dividido em lotes" e no Ponto 18º referia-se "donos esses que eram os mesmos, como se vê das escrituras juntas com a Petição Inicial".

Também é nosso entendimento que o Sr. Juiz agiu correctamente quando indeferiu a quesitação de tal matéria; e isto porque tais factos seriam insusceptíveis de por si sanar a falta de alegação dos que também porque indispensáveis, permitiriam conduzir à procedência da acção e assim a declarar-se constituída sobre o prédio dos RR. uma servidão por destinação de pai de família. Referimo-nos àquela factualidade de que demos conta do ponto 2.2.2. deste aresto, ou sejam os sinais visíveis e permanentes colocados em ambos os prédios por iniciativa do anterior ou anteriores proprietários do prédio primitivo que demonstrassem sem margem para dúvidas a dependência entre os dois prédios. E não se diga que esta questão se bastaria com a alegação de que existência do caminho seria bivalente no sentido de poder integrar a usucapião servindo simultaneamente de esteio à destinação de pai de família. É que independentemente de se ter provado a inexistência do caminho, esta última servidão exige algo mais: a marca da relação de dependência ali colocada pelo/s proprietários do todo predial primitivo vincando aquela relação de vinculação relevante juridicamente à data do fraccionamento predial, até para que eventuais compradores do prédio serviente não possam alegar desconhecimento sobre os ónus que sobre o mesmo recairiam.

Faltando em absoluto tais factos claro está que a ampliação da matéria de facto e subsequente julgamento seriam actos inúteis[4].

Deste modo a acção que soçobrou de forma inequívoca tendo como causa de pedir a usucapião, de igual forma não pode poderá proceder arvorando como causa de pedir a destinação de pai de família tendo como sustentáculo um quadro factual tão franzino.

Pelo exposto a apelação terá nesta parte que improceder.

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2.2.3. Da condenação dos AA. como litigantes de má-fé.

Insurge-se a Autora contra a sentença de 1ª instância na medida em que não condenou os RR. como litigantes de má-fé.

Estatui o artº 456º nº 2 do Código de Processo Civil que "diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:

a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão".

Da análise do citado preceito legal constata-se o alargamento das situações a que poderá caber a litigância de má-fé aos casos de negligência grave. Trata-se de um postulado do “princípio da cooperação” previsto nomeadamente no artº 266º-A do Código de Processo Civil onde se lê que "as partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior". É que o direito de acção, constitucionalmente consagrado no artº 20º da CRP, tem como contrapolo o dever de as partes no respectivo exercício, se responsabilizarem, nomeadamente pelas suas declarações, acautelando-se não apenas contra factos expendidos que sabem não ser verdadeiros como ainda absterem-se de emitir declarações comprometedoras sem que minimamente se assegurarem da sua veracidade. Este último comportamento, que integra o conceito de negligência grosseira, não era sancionado antes da reforma do processo civil e passou a sê-lo após o Dec-Lei nº 329-A/95 de 12 de Dezembro.

Mas a litigância de má-fé supõe a alegação de determinados factos reconhecidamente inverídicos e que tal seja feito com dolo ou negligência grave. Assim não integra uma coisa nem outra a mera improcedência de razões expendidas pela parte devido unicamente ao facto de a parte não ter logrado prova daquelas.           Nos termos do artigo 457º do Código de Processo Civil “ 1 – A indemnização pode consistir:

a) No reembolso das despesas a que a má-fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários dos mandatários ou técnicos;

b) No reembolso dessas despesas e na satisfação dos restantes prejuízos sofridos pela parte contrária como consequência directa ou indirecta da má-fé.

O juiz optará pela indemnização que julgue mais adequada à conduta do litigante de má-fé, fixando-a sempre em quantia certa.

2 – Se não houver elementos para se fixar logo na sentença a importância da indemnização, serão ouvidas as partes e fixar-se-á depois, com prudente arbítrio, o que parecer razoável, podendo reduzir-se aos justos limites as verbas de despesas e de honorários apresentados pela parte.

3 – Os honorários são pagos directamente ao mandatário, salvo se a parte mostrar que o seu patrono já está embolsado”.

Revertendo ao caso concreto optou por sancionar os AA. como litigantes de má-fé na multa de 4 UC e bem assim na indemnização os RR. a liquidar em execução de sentença.

Vejamos: os únicos elementos para aquilatar da justeza do decidido neste particular são as respostas à Base Instrutória e de certo modo a respectiva fundamentação.

Assim em sede de usucapião alegaram os AA. nos artigos 8º que sempre existiu no local um caminho bem delineado e nomeadamente sobre o mesmo passaram sem oposição convictos de que sobre ele adquiriam uma servidão de passagem para o seu prédio. Deu-se como provado que nunca ali existiu qualquer caminho através do depoimento das testemunhas António Marques. Jorge Pires Belém, Maria de Lurdes de Jesus Póvoas, José Manuel Cabral Lopes e José Marques Gonçalves. À mesma conclusão chegou o Tribunal através da inspecção que fez ao local concluindo que "não existe qualquer realidade física no prédio dos Réus susceptível de ser designado por caminho ou que revele a passagem continuado de pé e veículos do prédio dos RR. para o prédio dos AA., sendo certo que a parte do prédio dos RR. por onde os AA. alegam ter acesso ao seu prédio configura o logradouro da casa dos RR. e o acesso à garagem dos RR. a partir da via pública".

No que toca ao animus de exercício de direito próprio, está o mesmo negado expressamente no depoimento da testemunha José Marques Gonçalves, primo das partes e proprietário do terreno existente nas traseiras do prédio dos RR. que "os AA. não têm nem nunca tiveram acesso ao seu prédio pelo prédio dos RR. e que nunca existiu qualquer caminho no prédio dos RR. a dar acesso ao prédio dos AA..

Perante estes factos, não há dúvida que os AA. agiram com má-fé ao litigarem pela declaração de constituição de uma servidão por usucapião a que claramente sabiam não ter direito. Agiram pois com dolo a) deduzindo pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não deviam ignorar; b) Alteram a verdade dos factos, actuando pois com dolo, justificando-se assim plenamente a condenação como litigantes de má-fé e sendo a multa para litigantes de má-fé variável entre um mínimo de 2 UC e 100 UC – artigos 102º alínea a) do CCJ e 456º nº 2 do Código de Processo Civil - é perfeitamente razoável a importância de 4 UC imposta aos AA. na 1ª instância àquele título.

Nada há também, face à lei e aos factos provados, a alterar quanto à condenação dos AA. em indemnização a liquidar em execução de sentença a título de prejuízos provocados pela demanda.

A apelação improcede também no que a esta parte se refere.

A sentença irá integralmente confirmada.

Poderá assim concluir-se:

1) São elementos caracterizadores da constituição da servidão de passagem por destinação de pai de família: a) O acto constitutivo propriamente traduzido na separação jurídica de dois prédios; b) Que os prédios em causa tenham pertencido, unitária ou fraccionadamente, ao mesmo proprietário; c) Que, aquando da separação predial, nada se tenha estipulado em contrário; d) Que existam pré-existentes a tal separação, sinais visíveis e permanentes colocados pelo anterior proprietário ou por algum dos seus antecessores.

2) No tocante à existência de sinais visíveis e permanentes não se impõe que os mesmos tenham um cariz de acabamento de caminho perfeito; a lei basta-se com a existência de sinais que ali tenham sido colocados intencionalmente pelos anteriores proprietários e que revelem o caminho de um prédio para o exterior através de outro.

3) Tais sinais devem reportar-se inequivocamente a actos praticados pelos antecessores do actual proprietário quando os prédios constituíam uma unidade vincando-se assim (e aqui reside a particularidade do instituto) o intuito dos anteriores proprietários em que houvesse uma dependência entre os dois prédios, ainda que os sinais em análise existam apenas num deles.

4) E não se diga que esta questão se bastaria que a alegação da existência do caminho seria bivalente no sentido de poder integrar a usucapião servindo simultaneamente de esteio à destinação de pai de família. É que independentemente de se ter provado a inexistência do caminho, esta última servidão exige algo mais: a marca da relação de dependência ali colocada pelo/s proprietários do todo predial primitivo vincando aquela relação de dependência relevante juridicamente à data do fraccionamento predial até para que eventuais compradores do prédio serviente não possam alegar desconhecimento sobre os ónus que sobre o mesmo recairiam

5) No direito processual civil ainda vigora o princípio da auto-responsabilidade que em conexão com o princípio do dispositivo estatui que as partes conduzem em princípio o processo redundando como refere Manuel de Andrade a negligência ou inépcia das partes em seu prejuízo.

6) Acresce que também o princípio da preclusão estatui que existem no processo momentos processuais próprios para a prática dos actos e assim para a correcção ou aditamento das posições tomadas, exceptuadas as hipóteses previstas nos artigos 273º, 489º nº 2 e 524º do Código de Processo Civil.

7) No caso concreto seria durante a fase dos articulados que os AA. poderiam ter feito, sob pena de preclusão, os aperfeiçoamentos que se impunham à sua tese e não após a Base Instrutória, momento em que o Juiz terá que cingir-se ao que é alegado pelas partes.

8) Faltando a alegação nos articulados dos elementos essenciais à procedência da acção não tem sentido proceder à ampliação da matéria de facto e subsequente julgamento.

9) Provando-se que os AA. intentaram a acção de constituição de uma servidão por usucapião, sabendo perfeitamente que no prédio suposto serviente não existia o respectivo caminho que no entanto delinearam com pormenor nos seus articulados; e ainda que se arrogaram exercício de um direito próprio de passagem pelo aludido prédio quando o fizeram esporadicamente com autorização dos respectivos proprietários, litigaram de má-fé, justificando-se plenamente que sejam sancionados com a multa de 4 UC acrescida de indemnização à parte que obteve vencimento na acção.

                                                 *

3. DECISÃO.

Pelo exposto acorda-se em julgar a apelação improcedente assim confirmando a sentença apelada.

Custas pelos apelantes





[1] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela "Código Civil Anotado" III, 2ª Edição, pags. 631 ss; Mota Pinto "Direitos Reais", Almedina, pags. 222 ss. Carvalho Fernandes "Lições de Direitos Reais" Quid iuris, Lisboa 1996, pags. 392 ss. José Alberto C. Vieira "Direitos Reais" Coimbra Editora, 2008, pags. 851 ss. José Alberto González "Direitos Reais e Direito Registal Imobiliário" Lisboa, 2005, 3ª edição pags. 195 s.

Na Jurisprudência cfr. por todos Acs. do S.T.J. de 15-5-2008 (P. 1524/2007) in www.dgsi.pt\stj; de 14-1-1998 (P. 907/97) in Bol. do Min. da Just., 473, 484; desta Relação de de 18-5-1993 (R. 10 879) in Col. de Jur., 1993, 3, 36.

[2] Cfr. desde logo quanto ao relevo da intenção do anterior proprietário Cunha Gonçalves "Tratado de Direito Civil" XI, pags. 662 ss. Pires de Lima "Direitos Reais" Coimbra Editora 3ª Edição pags. 322, nota 1. Ainda com aplicação ao nosso Direito positivo Ángel Rebolledo Varela "Tratado de Servidumbres" Aranzadi Madrid 2002, pags. 218. Anotação de A. Varela in RLJ Ano 115, pags. 218 ss. Na Jurisprudência cfr. Acs. do S.T.J. de 15-3-2005 (R. 287/2005) in Col. de Jur., 2005, I, 146; de 14-1-1998 (P. 907/97) in Bol. do Min. da Just., 473, 484; de 4-12-1997 (P. 386/97) in Bol. do Min. da Just., 472, 471. Desta Relação de 2-11-1988 (R. 411/88) in Col. de Jur., 1988, 5, 65.


[3] Cfr. A. citado "Noções Elementares de Processo Civil" Coimbra Editora, 1976, pags. 376.
                       
[4] Só se pode mandar ampliar a averiguação fáctica - lê-se no Acordão do STJ de 14-1-1998 supracitado – "quando tal é possível, perante o que foi articulado e não investigado, e é necessário para se decidir, ou seja, quando o circunstancialismo de que se dispõe não é suficiente".