Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
782/1996.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
Data do Acordão: 09/11/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 276.º, 1, C) E 284.º, 1, A) DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. A culpa, na versão que veio a ser acolhida no Código Civil (artigo 487.º nº 2), afere-se em abstracto, a partir do critério universal do homem médio posicionado nas precisas coordenadas de tempo, modo e lugar em que se verificou o facto.
2. Agir com culpa significa actuar de forma que merece a reprovação ou censura do direito. Coisa que se verifica quando se concluir que o lesante, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia ter agido de outro modo.
3. Não provada a culpa do condutor de um rebanho de ovelhas, bem pode concluir-se pela sua responsabilidade pelo risco, dado que quem utiliza em seu proveito os animais, que, como seres irracionais, são quase sempre uma fonte de perigos, deve suportar as consequências do risco especial que acarreta a sua utilização.
4. É de admitir que, perante o risco de circulação de um motociclo, seja maior o da presença de rebanho nas imediações da via (para o respectivo dono) do que o respeitante à mera circulação do veículo (para o responsável pela direcção efectiva e utilização no próprio interesse, nos termos do artigo 503, nº 1 do CC)
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... intentou acção declarativa com processo sumário contra B... e mulher C... pedindo a condenação dos réus no pagamento da quantia de Esc. 3.988.256$00, acrescida de juros legais desde a data da citação até integral pagamento.
Para tanto, alega que ocorreu um acidente entre o motociclo que conduzia e um rebanho de ovelhas, pertencente aos réus e dirigido pelo filho destes, o qual lhe surgiu de forma inesperada na faixa de rodagem; acidente que foi causa de diversos danos patrimoniais – - danos no motociclo, perdas salariais e IPP – e danos não patrimoniais – dores e abalo físico e psicológico – nos montantes, respectivamente, de Esc. 3.488.256500 e 500.000$00.
Os Réus contestaram, imputando o acidente ao Autor, por circular a mais de 90 km/h quando o limite fixado para o local de 50 km/h, e por se ter descontrolado foi embater na última ovelha do rebanho; impugnam, ainda, os danos por aquele alegadamente sofridos; e, em reconvenção, peticionam o pagamento de Esc. 120.000$00 a título de danos patrimoniais sofridos com a morte das ovelhas e de Esc. 100.000$00 a título de danos não patrimoniais.
Os Autores/reconvindos responderam, pugnando pela sua absolvição do pedido reconvencional com fundamento na factualidade invocada na petição inicial.

O processo seguiu os seus termos e a final foi proferida sentença julgando:
a) "a acção parcialmente procedente por provada (…)" e os RR. condenados "a pagarem ao autor, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais por ele sofridos por causa do acidente em causa nos autos, a quantia de 1.894.128$00 (contra-valor de € 9.447,87), acrescida de juros de mora à taxa legal que, em cada momento for devida, desde a data de citação dos réus até efectivo e integral pagamento, no mais absolvendo os réus do pedido;
b) (…) o pedido reconvencional parcialmente procedente, por provado" e o Autor condenado "a pagar aos réus/reconvintes, a título de danos patrimoniais por eles sofridos por causa do acidente em causa nos autos, a quantia que se vier a liquidar, acrescida de juros de mora à taxa legal que em cada momento for devida, desde a citação até efectivo e integral pagamento, no mais os absolvendo do pedido.
c) Absolver o autor do pedido de condenação como litigante de má fé".

Inconformados, recorreram os Réus, recurso admitido como apelação, com efeito meramente devolutivo.

Nas respectivas alegações formulam as conclusões delimitadoras do objecto do recurso em que apenas se suscitam as seguintes questões:

1º - Se deve ser alterada a decisão de facto (respostas aos nºs 23 a 25, 29, 30 e 33 a 40, e 1, 2 e 3 da B.I.) – conclusões 1ª a 25ª;
2º - Se ocorre nulidade da sentença por falta de fundamentação de facto e de direito, oposição parcial entre os fundamentos e a decisão e omissão de pronúncia sobre questões levantadas pelos RR. - conclusões 39ª a 40ª.
3º - Se a responsabilidade do acidente, é exclusivamente imputável ao A., a título de culpa, em função da velocidade excessiva que imprimia ao motociclo e ao desgoverno deste, ou ao menos a título de risco, inerente à direcção efectiva que àquele cabia – conclusões 26ª a 39ª.

O A. contra-alegou, pugnando pela confirmação da sentença.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

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São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância:

A) No dia 18/08/1995, pelas 21 h e 45 m ocorreu um acidente de viação no lugar de Lameiria, freguesia de Colmeias, concelho e comarca de Leiria em que foram intervenientes o motociclo de passageiros de matrícula TU-04-85, conduzido pelo autor e sua pertença e um rebanho de ovelhas, pertencente aos réus.
B) O Autor na altura do acidente circulava no sentido Serra do Branco-Colmeias, mais propriamente no entroncamento com a Av. 14 de Julho.
C) O D..., filho dos réus, nasceu a 25/08/79.
D) O autor seguia a uma velocidade não concretamente apurada.
E) Quando o rebanho supra aludido surge na faixa de rodagem por onde seguia o TU.
F) O rebanho apareceu do lado direito, atento o sentido de marcha levado pelo autor.
G) Na altura do acidente estava anoitecer.
H) O local do acidente situa-se dentro da povoação de Lameiria.
I) Em data posterior ao acidente em causa foi colocada no lugar de Lameiria um sinal limitativo de velocidade de 40 km.
J) Em consequência do acidente resultaram danos materiais no motociclo, orçamentados em 1.107.576$00.
L) Em consequência do acidente o autor sofreu fractura do fémur esquerdo e sub-luxação acrânio clavicular à esquerda.
M) Foi operado ao fémur, tendo feito osteosíntese com placa.
N) Actualmente apresenta fractura do fémur com calo ósseo.
O) O autor apresenta uma atrofia dos músculos da coxa esquerda de 3 cm.
P) O autor sente uma artrose pós traumática do ombro esquerdo.
Q) Foi atribuída ao autor uma IPP de 8%.
R) O autor sofreu dores.
S) O autor foi submetido a intervenção cirúrgica.
T) O autor era uma pessoa saudável, alegre e com vontade de viver.
U) O autor na altura do acidente trabalhava na Automecânica da Confraria, Lda. aí exercendo a profissão de pintor-auto, auferindo 100.000$00/mês.
V) O autor tem ainda de se sujeitar a uma nova intervenção cirúrgica, a fim de lhe ser retirado o material de osteosíntese.
X) O autor com o embate na ovelha pertencente aos réus, causou a morte desta.
Z) O valor da ovelha não foi concretamente apurado.
AA) O autor nasceu no dia 6/05/1969.

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Por não ter sido impugnado adita-se à matéria de facto ainda estoutro:
AB) O rebanho referido em A era, na altura do acidente, dirigido por D..., filho dos RR.

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1ª Questão.

A alteração da decisão de facto.

Batem-se os RR. pela modificação das respostas dadas aos nºs 1, 2, 3, 23, 24 e 25 da B.I..
Nestes pontos estavam em causa a velocidade do veículo do A. e a forma como a este se deparou o rebanho.
Ora tendo-se procedido à audição dos registos magnéticos dos invocados depoimentos de António Queirós, Arminda Passos e Manuel Queirós Coelho, não se justifica a modificação das respostas em função da patente falta de seriedade e consistência que os caracteriza.
É certo que todos eles convergem na indicação de uma velocidade acentuada do motociclo – o António Queirós alude a 90 Km/hora, a Arminda Passos a marcha com "muita força", o M. Coelho a uma velocidade "em demasia" – e na afirmação de que o condutor do rebanho se teria certificado das condições de segurança. Mas tais depoimentos não convencem, tal como não convenceram a 1ª instância, necessariamente com uma percepção mais abrangente do comportamento daqueles depoentes.
É que, para além do dos dois primeiros se terem revelado compadres dos RR., sendo o terceiro um neto destes que circunstancialmente também auxiliava a condução das ovelhas dos RR. na altura do acidente, enfermam os respectivos depoimentos de graves incongruências, nomeadamente quanto à hora da ocorrência: a alusão colectiva à presença da luz solar, quando está assente acidente ocorreu cerca das 21h e 45 m do dia 18 de Agosto, isto é, já com a noite a cair.

Por seu turno, as restantes testemunhas referenciadas como meios probatórios de divergência nada acrescentam, quer à matéria do circunstancialismo do acidente acima identificada, quer à matéria dos danos (nºs 33º a 40º).
Na verdade, Manuel Ferreira não assistiu ao momento crítico do acidente nem aos acontecimentos que imediatamente o precedem, visto que se achava dentro de casa; Henrique Gonçalves nada sabe; Jaime dos Santos nem sequer foi ouvido à matéria em apreço; Elísio Capitão, não viu o embate pois que quando dele se apercebeu encontrava-se 30 metros afastado a falar com umas pessoas.
Não se mostrando assim evidenciados "concretos meios probatórios (…) que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida" também não seriam eles idóneos à detecção dos "pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento" que justificaram o 2º grau de jurisdição em matéria de facto.
Improcedem desta forma as conclusões 1ª a 25ª, mantendo-se intacta a decisão de facto.



2ª Questão.

As pretensas nulidades da sentença.

Praticamente esgotando as cinco categorias de nulidades da sentença elencadas no nº 1 do art.º 668 do CPC – na verdade para isso apenas faltou arguir a nulidade relativa à condenação em objecto diverso do pedido - os RR. imputam àquela os vícios da falta de fundamentação de facto e de direito, de oposição entre os respectivos fundamentos e omissão de pronúncia (alíneas b), c) e d) do nº1 do art.º 668 do CPC).
Começando por este último, deve logo dizer-se que os recorrentes acabam por não explicitar a questão ou questões que não teriam sido tratadas. Questões e argumentos são coisa diversa; no entanto as questões da culpa e do risco foram abordadas na sentença em relação à responsabilidade na intervenção no acidente de A. e RR..
Relativamente aos fundamentos de facto e de direito estes mostram-se profusamente abordados e desenvolvidos na peça em apreço, não se verificando, ademais, qualquer contradição entre a decisão – funcionando como conclusão do silogismo judiciário – e os pressupostos fácticos e jurídicos explanados, verdadeiras premissas da mesma. A incorrecta subsunção dos fundamentos de facto ao quadro jurídico aplicável, a confirmar-se, configura, não o vício conducente à nulidade da sentença, mas um verdadeiro erro de julgamento.
Pelo que não se verificando nenhuma das apontadas nulidades, improcedem as atinentes conclusões.


3ª Questão.

A responsabilidade pelos danos a título de culpa ou risco.

Começando pela culpa.

A culpa, na versão que veio a ser acolhida no C.Civil (art.º 487 nº 2 do CC), afere-se em abstracto, a partir do critério universal do homem médio posicionado nas precisas coordenadas de tempo, modo e lugar em que se verificou o facto.
"Agir com culpa significa actuar de forma que merece a reprovação ou censura do direito. Coisa que se verifica quando se concluir que o lesante, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia ter agido de outro modo" .
A matéria concernente a este pressuposto da responsabilidade extracontratual, que pelos RR. vinha imputada ao A. achava-se retratada na dinâmica dos nº s 23, 24 e 25 da base instrutória, cujo teor era o seguinte:

23
O A. circulava a mais de 50Km/hora?
24
Quando o A. acabou de descrever a curva á direita que antecede o local do acidente em 40 m já vinha em completo descontrolo com a moto?
25
E embateu na última ovelha do rebanho que já havia atravessado a rua da direita para a esquerda atento o sentido de marcha do A.?

Não se tendo dado como provado qualquer dos factos perguntados – que inculcavam excesso de velocidade, imperícia ou desatenção – faltou indiscutivelmente qualquer alicerce fáctico para a formulação do juízo sobre a culpa do A., reportada esta à violação dos deveres legais e regulamentares que especificamente se impõem à condução de veículos na via pública.
Pelo que têm necessariamente de improceder as conclusões do recurso sob este aspecto (conc. 25ª a 30ª).

O risco.

Sustentam os apelantes que "a sentença interpretou mal o disposto no art.º 503 do Código Civil uma vez que não existem nos autos prova que se possa atribuir a culpa do acidente aos Réus" (conc. 33ª) e que "Na sentença recorrida, não se diz de forma clara e precisa, como é que sobre os Réus recai a presunção de culpa derivada do artigo 503° do Código Civil" (conc. 42ª).
Só pode haver aqui um equívoco dos recorrentes.

Dado que aquela não concluiu pela culpa dos RR.-apelantes – seja efectiva seja presumida – mas antes pela respectiva responsabilidade com base no risco, ancorada no disposto no art.º 502 do CC. De resto, fê-lo claramente depois de ter explanado as razões pelas quais, em seu entender, os RR. não podiam ser responsabilizados com culpa presumida nos termos do art.º 493 do Código.
Na verdade, o aresto ora impugnado, depois de afirmar que o Autor não logrou "provar a factualidade constante dos n.ºs 2, 3 (estes parcialmente), 5 e 6 da base instrutória, de onde resultaria a culpa do filho dos réus no acidente por má condução do rebanho", viria por fim a ponderar:

"Sendo os réus proprietários do rebanho tinham, nos termos do artigo 1305.° do Código Civil, o direito de uso, fruição e disposição sobre a coisa, não resultando dos autos nenhuma circunstância que indicie o contrário. Um dos perigos especiais que qualquer ovelha pode provocar é, enquanto anda na estrada, poder causar um acidente de viação. Do exposto, entendo que o regime a ter em conta para a situação "sub judice" é o previsto no artigo 502.° do Código Civil".
Ora, ao que se vê, os recorrentes não atacam – nem ao menos genéricamente - os requisitos que levaram à respectiva condenação pelo risco, ainda que em concorrência como o risco que também foi atribuído ao A. pela condução do motociclo TU, nos termos dos art.ºs 503, nº 1 e 506 do CC.
Apesar de tudo, interpretando a vontade dos recorrentes como sendo a de rebater a fonte da sua responsabilização, qualquer que ela seja, sempre se dirá, em sintonia com sentença, que os seus actos não podem deixar de cair na malha da responsabilidade objectiva, que decorre do art.º 502 do CC para os proprietários (e outros utilizadores no próprio interesse) de animais cuja utilização envolve perigo especial . Quanto a estas pessoas tem inteiro cabimento a ideia do risco: quem utiliza em seu proveito os animais, que, como seres irracionais, são quase sempre uma fonte de perigos, deve suportar as consequências do risco especial que acarreta a sua utilização .
É de notar que o rebanho, pertencendo aos RR., era na altura «conduzido» pelo respectivo filho menor José António Ferreira Gonçalves, sendo de entender que este o fazia com a vontade daqueles. De modo que tudo se passava como se fossem os próprios RR. a assumirem as consequências da movimentação dos animais .
Aliás, poderia a sentença ter ido mais longe, imputando os danos aos apelantes a título de culpa in vigilando, ao abrigo do art.º 493 da lei civil e da presunção de culpa aí prevista. É que o proprietário, cabendo-lhe o gozo e fruição do objecto do seu direito , a menos que demonstre ter transferido para outrem o dever especial de vigiar os seus próprios animais , não pode, em princípio, furtar-se à responsabilidade por não ter tomado as medidas de precaução necessárias para evitar o dano, estando desse modo vinculado à prova positiva desse facto.

Insurgem-se ainda os apelantes contra aplicação ao caso pela sentença recorrida do regime do art.º 506 do CC.
Há que reconhecer que o princípio resultante do nº 1 deste preceito de que, em caso de colisão de veículos sem que seja possível apurar a culpa de qualquer dos condutores, a responsabilidade pelos danos globais é repartida na proporção do risco com que cada veículo houver contribuído para estes, não tem na sua base analogia com a ocorrência dos autos.
Com efeito não nos parece que possa ter justificação a invocação por analogia interpretativa da referida norma para a hipótese dos autos .
A circulação de múltiplos veículos comporta riscos específicos, com uma feição singular, própria da presença dessas máquinas e da velocidade de que podem ser animadas.
A via pública é um local criado primacialmente para circulação de pessoas e veículos, não se destinando propriamente ao atravessamento de rebanhos. Por isso é que não apenas a condução como especialmente a travessia da mesma de animais agrupados obedecem a restrições e condicionalismos muito apertados – cfr. os art.ºs 99, 100 e 101 do CE aplicável, aprovado pelo DL 114/94 de 3/05.
Daí que se afigure que entre os dois riscos atendíveis seja necessariamente maior o resultante da presença do rebanho nas imediações da via (para o respectivo dono) do que o respeitante à mera circulação do veículo (para o responsável pela direcção efectiva e utilização no próprio interesse, nos termos do art.º 503, nº 1 do CC).
Donde que, aproveitando da regra da proibição da reformatio in pejus (art.º 684, nº 4 do CPC), seja até lisonjeira para os RR. a fixação do risco da respectiva contribuição para os danos na percentagem de 50% determinada na decisão ora impugnada.
Pelo que são também infundadas as conclusões 26ª a 39ª do recurso.





Pelo exposto, julgando improcedente a apelação, confirmam a sentença.
Custas pelos apelantes.