Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2766/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELDER ALMEIDA
Descritores: JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
CADUCIDADE
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 11/16/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE SEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 101.º DO CÓDIGO DO NOTARIADO; ARTIGO 343.º, N.º 1 DO CÓDIGO CIVIL ; ARTIGO 7.º DO CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL
Sumário: 1. A acção de impugnação da escritura de justificação notarial não está sujeita a qualquer prazo de caducidade, preclusivo do exercício do direito, podendo ser intentada antes ou após a ocorrência da inscrição registral.
2. A acção de impugnação da escritura de justificação notarial é de simples apreciação negativa, cabendo ao réu fazer a prova dos factos constitutivos do direito invocado na escritura de justificação, demonstrando a consonância com a realidade de tudo aquilo que nesse instrumento alegou.
3. Ao réu justificante não aproveita a presunção derivada do registo (artigo 7.º do Código do Registo Predial), porquanto, tendo tal registo sido lavrado com base na escritura de justificação, uma vez posta em causa com a propositura da acção de impugnação esse registo deixa de poder operar.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra: ..

RELATÓRIO
1. A... intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Seia a presente acção declarativa, sob a forma sumária, contra B..., pedindo a final a condenação do R. ,a reconhecer que não é dono nem legítimo possuidor do prédio identificado no art° 11.º da P. I. e em relação ao qual este outorgou escritura de justificação notarial em que se arrogou seu legítimo proprietário, por efeito da usucapião, pedindo igualmente que tal escritura notarial seja declarada nula e de nenhum efeito.
Para o efeito, alegou -sinopticamente-, que são falsos os factos que o R. fez constar da referida escritura, nomeadamente que tenha adquirido o dito prédio por compra meramente verbal, efectuada em 1970, e que, a partir daí, tenha exercido actos possessórios no mesmo.
Contestou o R., excepcionando a caducidade do direito que o A. se propõe exercer pela presente acção, bem como a ineptidão da petição, mais mantendo as alegações vertidas na escritura de justificação notarial.
Respondeu o A. à matéria dessas invocadas excepções, pedindo ainda o cancelamento de qualquer registo predial do prédio justificado, eventualmente feito pelo R. na pendência da acção.
No saneador, seguidamente a se admitir a ampliação do pedido, conheceu-se das excepções arguidas na contestação, tendo-se decidido pela sua improcedência, após o que se afrmou a validade da instância e se fixaram os factos' assentes e a base instrutória.

2. Irresignado com esse despacho, na parte em que julgou improcedente essa arguida excepção da caducidade, interpôs o R. recurso -admitido na competente espécie de apelação e com regime de subida diferida-, o qual sintetiza nas seguintes conclusões:
1. É de 30 dias o prazo da propositura da acção de impugnação.
2. A circunstância de ser acção de simples apreciação negativa não afasta o ónus da prova derivado do registo.
3. Na verdade o artigo 7.º prescreve a presunção de que o registo existe em nome dos titulares inscritos.
Uma vez efectuado o registo e mesmo tratando-se de acção de apreciação negativa, inverte-se o ónus da prova.
5. Cabe ao Autor fazer a prova de que não se verificou a usucapião a favor do Réu formulando, a final, o pedido de reconhecimento judicial da inexistência do direito de propriedade registado na Conservatória de Registo Predial a favor do Réu.
6. Foram, assim, violados o artigo 101° do Código do Notariado, artigo 350°, n° 1, do Código Civil e artigo 7.º do Código de Registo Predial.
O A. apresentou, por sua vez, contra-alegações, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

3. Seguindo os autos os seus normais trâmites, foi finalmente proferida douta sentença que, julgando a acção procedente, condenou o R. a reconhecer que não é dono nem legítimo possuidor do prédio identificado na escritura de justificação notarial identificada nos pontos 1 a 3 dos factos provados, mais declarando nula a dita escritura e ordenando o cancelamento do registo existente a seu favor, melhor identificado no ponto 8 dos factos provados.
4. Uma vez mais inconformado com o assim decidido, interpôs o R. novo recurso de apelação, em encerramento do qual consigna "ipsis verbis" as conclusões antes formuladas no âmbito do recurso de agravo, as quais, mercê disso, ora nos abstemos de reproduzir.

5. O A. apresentou, uma vez mais, contra-alegações, terçando pela confirmação da sentença impugnada.
Tudo posto, e colhidos que se mostram os competentes vistos legais, cumpre decidir

FACTOS
Na douta sentença recorrida foram insertos como provados os seguintes factos:
1. Com data de 18 de Julho de 2002 foi publicado no Jornal de Notícias da Serra um anúncio emitido pelo Cartório Notarial de Gouveia relativo a uma escritura de justificação lavrada em Junho de 2002, na naquele mesmo Cartório e exarada a fis. 105 e ss. do livro 89-E (aI. A dos factos assentes);
2. A escritura de justificação mencionada em 1 foi outorgada no dia 6 de Junho de 2002 no Cartório Notarial de Gouveia pelo requerido (aI. B dos factos assentes);
3. Na escritura mencionada em 1 e 2, o R. declarou, além do mais, ser dono e legítimo possuidor com exclusão de outrem de um prédio rústico, aí identificado como "terra de cultura com oliveiras, com 150 m2, no sítio do Vale de Madeiro, limite da freguesia de Tourais, a confrontar de Norte com Luís Fernandes, Nascente com José Fernandes Seixas (ora A.), Sul com António Monteiro e Poente com a Estrada, não descrito na Conservatória e inscrito na matriz sob o art° 2499" (al. C dos factos assentes);
4. Na escritura mencionada em 1 e 2, o R. declarou ainda possuir o prédio dito em 3 em nome próprio, por compra meramente verbal que fez em 1970 a Palmira Lopes da Cruz e marido, António Nunes Julião (aI. D dos factos assentes);
5. Na escritura mencionada em 1 e 2, o R. declarou ainda que desde 1970 cultiva ou mandou cultivar, colheu frutos e pagou contribuições, com a convicção e intenção de se comportar como legítimo proprietário, à vist~ de toda a gente e sem oposição, pelo que adquiriu o prédio por usucapião, não tendo outro documento que lhe permita fazer prova do seu direito de propriedade (al. E dos factos assentes);
6. A dita Palmira Lopes da Cruz esteve em Portugal no passado ano de 2001 (resposta ao quesito 10).
7. A presente acção deu entrada neste Tribunal em 14/08/02, tendo sido distribuída em 16/09/02 (provado por doc. de fls. 2 dos autos).
8. Pela Cota G-l, ap. 06/020823, encontra-se registada a favor do R. na Conservatória do Registo Predial de Seia, sob o n° 2219/020823 a aquisição do prédio dito em 3 (provado por doc. de fls. 51, não impugnado pelo R.).

FUNDAMENTAÇÃO

1. Postos os factos, entremos na apreciação dos doutos recursos, sabido que os respectivos objectos são delimitados pelas conclusões insertas nas concementes alegações, de harmonia com o estipulado nos arts. 684°, n03 e 690°, n° 1, do Cód. Proc. Civil, circunscrevendo-se, em princípio, às questões aí equacionadas.
Ora, como vimos, as conclusões respeitantes tanto a um como a outro dos recursos são exactamente coincidentes, pelo que também sob uma tendencialmente única e abrangente apreciação aquilataremos dos correlativos méritos.
2. Assim, e em ordem a encurtar caminho -obviando a inúteis e fastidiosas repetições-, diremos que concordamos inteiramente com o douto despacho saneador recorrido, para cujos fundamentos nos remetemos, ao abrigo do disposto no art.o 713°, n° 5, do Cód. Proc. Civil; bem como subscrevemos, no essencial, os fundamentos expendidos na douta sentença final recorrida, que igualmente -e outrossim com o mesmo suporte legal-, aqui fazemos nossos, excepção feita a capítulo que -irrelevando para a decisão de fundo firmada-, ao deante, adequadamente precisaremos.
3. Apenas objectivando melhor esclarecer essa nossa avançada posição, começaremos por dizer -no tocante ao douto despacho saneador-, que, tal como ali se considerou -e ao revés do propugnado pelo Recorrente.;, a acção de impugnação de justificação notarial não está sujeita a qualquer prazo de caducidade, preclusivo do exercício do respectivo direito.
Com efeito, o prazo de 30 dias aludido no n° 2, do art.o 101°, do Cód. Do Notariado, destina-se apenas - como da letra desse dispositivo claramente emerge -, a que o Notário saiba se deve ou não passar a certidão para efeitos de registo, donde a conclusão -na esteira do sentenciado, entre outros, nos Acs. do STJ de 3-3-98 (no qual se cita outra jurisprudência sintónica), in Col/STJ, I, pág. 116 e da R.C. de 23-4-02, in Col., 11, pág. 34- de que tal acção não tem de ser proposta dentro desse prazo. nem mesmo antes do registo.
Nestes termos, pois, a conclusão 1.ª do enfocado douto recurso de apelação (reiterada nos mesmos termos no se quente recurso) improcede, e assim o mesmo recurso na sua totalidade, visto que, pese embora as demais questões suscitadas pelo Agravante nas remanescentes conclusões recursórias, apenas essa guestão foi efectivamente apreciada e vinculativamente decidida no despacho em exame -como de resto bem assinala o aqui Recorrido nas suas contra-alegações-, sendo todas essas demais questões estranhas ou alheias a essa dirimida questão, qual seja -de novo referimos-, caducidade do direito em vista fazer valer pelo A. com a presente acção de impugnação.

4. No que diz respeito à douta sentença, como dissemos, também a sua fundamentação na sua parte nuclear- é dizer, aquela que conduziu e em que se alicerçou o seu dispositivo final-, nos merece assentimento.
Ou seja, também nós entendemos que o A., tendo intentado a acção na data em que o fez, cumpriu integralmente o reclamado no n° 1 desse falado artigo 101 °, sendo indiferente - consoante bem se expende na sentença ora adversada-, que o R. tenha, não obstante isso, logrado, supervenientemente, o registo do direito justificado.
Como avisadamente se pondera nesse impugnado aresto, essa circunstância (o registo do direito), ínsito ao facto de o Tribunal não ter comunicado a pendência da acção imediatamente ou, quando menos, dentro do prazo de 30 dias -consoante o estatuído nesse art.o 101, nos 1 e 2-, em nada se pode assacar ao A..
Na verdade, este, de sua parte, cumpriu tudo a que se achava legalmente adstrito, que o mesmo é dizer, propositura da acção dentro do prazo de 30 dias a contar da publicação dos anúncios e solicitação no sentido da comunicação, pelo Tribunal demandado, da pendência da acção ao competente Cartório Notarial.
Assim sendo, e na medida em que estamos perante uma acção de simule apreciação negativa, era indiscutivelmente ao R. que, em face do disposto no art.º 343°, n° 1, do Cód. Civil, lhe competia fazer a prova dos factos constitutivos do direito invocado na escritura de justificação, vale dizer, demonstrar a consonância com a realidade de tudo aquilo que nesse instrumento alegou.
Ora, como deflui do resultado da prova produzida, o R. não logrou esse desiderato, essa demonstração sobre ele impendente, pelo que outro não podia ser o desfecho da lide senão aquele que na douta sentença se decretou -procedência da impugnação.

5. Mas diferente não seria esse desfecho -diga-se ainda-, caso se entendesse que, mal grado a propositura da acção antes do decurso do prazo de 30 dias sobre a data da publicação dos anúncios de imprensa, o A., não obstante, havia inobservado o disposto naquele n° 1 do art.º 10I.º. E isso por virtude de não ter providenciado em ordem a que a comunicação do Tribunal ao Cartório Notarial, a respeito da pendência da acção, tivesse efectivamente lugar de forma atempada, isto é, por forma a obstar à emissão, como aconteceu, da certidão propiciadora da feitura do registo predial pelo R..
E assim, tudo se passaria como se o A. não tivesse intentado a acção de impugnação antes da realização de tal registo, antes dos 30 dias previstos no n° 2 do predito art.º 101.º.
E diverso não seria tal desfecho -dizíamos-, por isso que, mesmo a sufragar-se este hipotizado entendimento, de nossa parte pensamos que ao R. não aproveitaria. ainda assim. a presuncão manante do registo, conforme art.º 7.º do Cód. do Reg. Predial, porquanto tendo tal registo sido lavrado com fundamento na escritura de justificação, uma vez esta posta em causa (com a propositura -não importa em que momento- da acção de impugnação), e em decouência o direito ali proclamado, esse registo -e logo a presunção a ele inerente-, deixaria obviamente de poder operar.
Consoante se escreve no supramencionado Ac. do STJ de 3-3-98 (ob. cit., pág. 116) "Como o registo foi feito com base em tal escritura de justificação notarial, agora impugnada, e precisamente por que o foi, não pode ele constituir qualquer presunção de que o direito existe, já que é esse mesmo direito cuja existência se pretende apurar nesta acção. "
E eis aqui o ponto em que, como antes se preveniu, inflectimos em relação à douta sentença, porquanto nesta -e ainda que sem reflexo na decisão em que acabou por assentar-, o Mm.o Juiz, em dado passo do iter discursivo, manifestou o seu alinhamento pela corrente defensora do ponto de vista que com aquele nosso se apresenta em controvérsia, ou seja, no sentido de que obtendo o justificante o registo do direito justificado, dele beneficiaria para inverter a seu favor o ónus da prova.
Aproveitaria assim ao justificante a mencionada presunção da titularidade do direito, sendo então ao impugnante que competiria fazer a demonstração judicial da não conformidade com a realidade dos factos possessórios por aquele alegados a justificar a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade arrogado.
Estando, porém, o nosso entendimento em oposição com o agora expendido, pese embora a existência do registo, temos para nós que, impugnada a escritura, sempre seria ao justificante que caberia o ónus da prova do seu proclamado direito, o que equivale a dizer que aquela regra do art.º 343°, n° 1, do Cód. Civil, jamais se poderia considerar postergada pela presunção inserta no art.º 7° do Cód. do Reg. Predial.
E isso, indiferentemente à acção ser intentada antes ou após a ocorrência da inscrição registral, já que -socorrendo-nos de novo do acima referenciado Ac. do STJ de 3-3-98, (ibidem) -"A posição do autor impugnante não pode variar consoante o justificante do direito seja mais ou menos testo a requerer o registo. "
Ora, como vimos, o R. e aqui Apelante, conquanto alegando a necessária matéria factual conducente à aquisição a seu favor do prédio por usucapião, reiterando assim as asserções plasmadas no instrumento notarial em crise, efectuada a produção da prova falhou totalmente na comprovação dessa factualidade.
Assim, e pese a existência do registo, sempre a sua pretensão não poderia deixar de naufragar .
Nesta decorrência, é, pois, também o vertente recurso de apelação improcedente, impondo-se a manutenção da sentença por ele visada.
DECISÃO
Nos termos expostos, e sem mais considerações, decide-se julgar ambas as doutas apelações improcedentes, confirmando as decisões respectivamente recorridas.
Custas de ambos os recursos pelo Recorrente.
Coimbra, 16/11/2004