Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2872/03.8PCCBR.CI
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: AUDIÊNCIA
REABERTURA
REGIME MAIS FAVORÁVEL
PERÍODO DE SUSPENSÃO DA PENA
Data do Acordão: 10/21/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – 4º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 371º-A CPP
Sumário: 1. No regime substantivo anterior à Lei 59/2007, o limite à aplicação da lei penal mais favorável era a condenação por sentença transitada em julgado. Ou seja, após o trânsito em julgado de uma decisão final, deixava de ser possível a aplicação de nova lei mais favorável.
2. Em contrapartida o novo regime permite que, mesmo após o trânsito em julgado da sentença condenatória, possa ainda ser aplicada a nova lei que, embora mantendo o tipo legal de crime, venha a estabelecer um regime penal mais favorável ao arguido.
3. O legislador não pretendeu, com o aditamento do art. 371º-A do CP.P. que se proceda a um segundo julgamento tendo em vista colmatar deficiências que se tenham verificado na sentença já transitada em julgado.
4. Nas situações cobertas pelo caso julgado, a reabertura da audiência tem em vista, exclusivamente, a aplicação do novo regime mais favorável.
5. A reabertura da audiência, ao abrigo do disposto no art.371º-A do C.P.P., tem natureza excepcional, permitindo a afectação do efeito do caso julgado apenas e exclusivamente in favor reo.
Decisão Texto Integral: I.

Nos presentes autos, por sentença de 30.11.2005, proferida nos autos e transitada em julgado, foi o arguido, F..., melhor identificado nos autos, condenado, pela prática de um crime de maus tratos a cônjuge, pp. no artigo 152º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 (quatro) anos, subordinada às seguintes regras de conduta: - Apresentação periódica perante o técnico de reinserção social, quando lhe for solicitado; - Sujeição a tratamento no serviço de Alcoologia no Serviço de Alcoologia do Hospital Sobral Cid.

Na sequência da entrada em vigor das alterações introduzidas ao Código Penal pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, veio o arguido requerer, ao abrigo do disposto no artigo 2º, n.º 4 do Código Penal, a aplicação do regime de suspensão da pena previsto no artigo 50º, n.º 5 do Código Penal na redacção introduzida pela citada Lei 59/2007.

Perante tal requerimento, o Mº Juiz determinou a reabertura da audiência, nos termos e para os efeitos requeridos. E, após realização dessa audiência, proferiu (em 11 de Maio de 2009), a decisão ora recorrida, na qual decidiu: “(…) utilizando os mesmo critérios que já contavam da sentença proferida nos autos recorrendo aos factos acima referidos, o tribunal fixava a pena em 2 anos e 10 meses de prisão, a suspender pelo mesmo período de tempo (artigo 50º do Código Penal), com as mesmas regras de conduta. (…) o anterior regime é mais favorável ao arguido, por levar à aplicação de uma pena de prisão apenas de 2 anos, sendo, em obediência ao disposto no artigo 2º, n.º 4 do Código Penal, o regime a aplicar. Em face do que fica dito, mantenho integralmente a condenação proferida nos autos a fls. 370 e 371.”.

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Recorre o arguido de tal decisão, formulando, na respectiva motivação, as seguintes CONCLUSÕES
1 O arguido foi condenado pela pratica de um crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152º, n.º1, al. a) do Código Penal (na redacção anterior à vigente), na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 anos.
2 Com a Lei n.º 59/2007, o período de suspensão da pena de prisão deixou de poder ter duração superior a esta, passando a ter duração igual ou, caso a pena de prisão determinada na sentença seja inferior a 1 ano, de 1 ano.
3 O recorrente requereu, ao abrigo do art. 2º, n.º 4 do Código Penal, a abertura da audiência com vista à eventual extinção da pena, uma vez que à data já tinham decorrido 2 anos desde o início da contagem do período de suspensão.
4 Entendeu o tribunal a quo que os regimes têm de ser analisados em bloco e que com a previsão de um agravamento para o crime de maus tratos, no caso de o crime ser cometido no domicílio comum ou no domicílio da vitima, com o consequente agravamento da moldura penal no seu limite mínimo, a pena seria hoje fixada, não em 2 anos, mas em 2 anos e 10 meses, pelo que o regime actual seria mais desfavorável ao recorrente
5 Contudo, nos termos do art. 2º, n.º 4 do Código Penal, a análise do carácter mais ou menos favorável do regime terá necessariamente de ser feita, não em abstracto, mas tendo em conta o caso concreto.
6 O que releva, para efeitos de análise do regime mais favorável, é a pena efectivamente aplicada, em função dos factos apreciados na altura, e não a pena que supostamente seria aplicada ao abrigo no novo regime. Não pode o tribunal a quo, tanto mais quando os factos foram apreciados por juiz diferente daquele que profere a sentença da qual se recorre, tentar adivinhar qual seria a pena aplicável caso a conduta do recorrente fosse hoje apreciada, através de um raciocínio lógico ou de uma regra de três simples, pena que, de resto, até podia ser a mesma.
7 Analisado o regime no seu todo e tendo em conta a alteração do art. 50º n.º 5 do Código Penal, que determina que o período de suspensão tem duração igual a da pena de prisão determinada na sentença, não podendo, como tal, ter duração superior, como sucedia anteriormente, conclui-se ser o novo regime mais favorável do que o vigente a data da sentença de condenação.
8. Prevê ainda a parte final do n.º 4 do art. 2º do Código Penal que “se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior”, o que sucede, uma vez que o limite máximo da pena de substituição, neste caso, não pode exceder os 2 anos e já decorreram 2 anos desde que começou a contar o período de suspensão da pena.
Nestes termos e nos demais de direito, deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-se por outra em que se acolham os argumentos descritos, declarando-se, consequentemente, extinta a pena aplicada ao recorrente.
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Respondeu o digno Magistrado do MºPº junto do tribunal recorrido, sustentando que o recurso não merece provimento.
No visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no qual se pronuncia no sentido de que o recurso deve proceder, não podendo aplicar-se-lhe o regime mais grave, devendo reduzir-se o período da suspensão de execução da pena para dois anos previsto na nova lei penal.
Foi cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP.
Corridos os vistos e realizado o julgamento, em conferência, mantendo-se a validade e regularidade afirmadas no processo, cumpre decidir.


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II.

O recorrente não pretende a reabertura da audiência para aplicação do regime mais favorável nos termos e para os efeitos previstos no art. 371-A do C.P.P. – aditado ao CPP pela Lei 48/2007 de 29.08.

Com efeito a decisão recorrida foi proferida depois de reaberta a audiência – em 30.04.2009 - requerida pelo arguido para efeito de aplicação da nova lei.

Tendo-se procedido, na falta de diligências probatórias a realizar, a alegações, após o que foi marcada nova data -11.05.2009- para a leitura da sentença – cfr. acta de fls. 536/537 e acta da leitura a fls. 544.

A decisão recorrida procedeu à ponderação do agravamento da moldura da pena aplicável ao crime e, tendo por aplicável, pelo novo regime, uma pena mais severa, optou pela manutenção da pena aplicada, incluindo o período da suspensão pelo período de 4 anos.

Por sua vez o recorrente pretende a revogação da decisão proferida e a aplicação efectuada da nova redacção do art. 50º do CP, aplicando-se o novo regime exclusivamente à pena aplicada, devendo o período de suspensão ser reduzido ao novo limite de dois anos e, por se mostrar transcorrido esse período, que se declare extinta a pena.
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Na sua redacção originária (com meras rectificações formais operadas pelo DL 48/95 de 15.03) postulava o artigo 2º, n.º 4 do Código Penal: Quando disposições penais vigentes no momento da prática do facto forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado.

Com a entrada em vigor da Lei 59/2007 de 04.09 passou a ter a seguinte redacção: Quando disposições penais vigentes no momento da prática do facto forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.

No regime substantivo anterior à Lei 59/2007, o limite à aplicação da lei penal mais favorável era a condenação por sentença transitada em julgado. Ou seja, após o trânsito em julgado de uma decisão final, deixava de ser possível a aplicação de nova lei mais favorável.

Em contrapartida o novo regime permite que, mesmo após o trânsito em julgado da sentença condenatória, possa ainda ser aplicada a nova lei que, embora mantendo o tipo legal de crime, venha a estabelecer um regime penal mais favorável ao arguido.

Por sua vez A Lei 48/2007 de 29.08 veio adequar a lei de processo à nova lei substantiva, aditando o art. 371º-A do C.P.P..
Postula o novo dispositivo: Se após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado novo regime.
Ajustando assim o regime processual, adjectivo, ao regime material, substantivo, do C. Penal, introduzido pela citada Lei 59/2007.
O novo regime é credor da doutrina do Tribunal Constitucional sobre o assunto (cfr. Acs. T. C. nº 240/97 publicado na 2ª Série do Diário da República de 15 de Maio de 1997; Ac. TC de 17.04.2002, CR IIS de 16.02.2002; Ac. TC de 19.11.2003, DR IIS de 17.03.2004) decidindo julgar inconstitucional, por ofensa do nº 4 do artigo 29º da Lei Fundamental, o entendimento segundo o qual "as normas conjugadas dos artigos 2º, nº 4, do Código Penal e 666º, nº 1, do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual, entrando em vigor, posteriormente a uma decisão condenatória do arguido, uma lei penal que, eventualmente, se apresente como mais favorável em concreto, não pode tal lei conduzir à modificação de decisão proferida pelo próprio tribunal, se a mesma já não for passível de recurso".

Escreve-se no primeiro dos citados acórdãos do TC , citando Taipa de Carvalho, que “quer o princípio da culpa quer o princípio da irretroactividade penal desfavorável são garantias individuais ou, talvez mais correctamente, direitos fundamentais da pessoa humana (…) uma concepção humanista da política criminal verá, sempre e independentemente da sua fundamentação política, na proibição da retroactividade da lei fundamentadora ou agravante da pena um dos seus princípios essenciais”.
Depois de expor os processos históricos que levaram à consagração dos princípios da irrectroactividade da lei penal e da retroactividade da lei penal mais favorável, conclui que “no actual momento, tanto a proibição da retroactividade in peius como a imposição da retroactividade in melius devem considerar-se como garantias ou mesmo direitos fundamentais constitucionalmente consagrados (....) o Estado-de-Direito Material, na sua função de protecção da pessoa humana, com a decorrente afirmação da liberdade como princípio geral e fundamental, não apenas proíbe a retroactividade das leis penais desfavoráveis, como também impõe a aplicação retroactiva das leis penais favorável”, o que, segundo o Autor, vale por dizer que “o princípio constitucional da liberdade, o «favor libertatis», é hoje a matriz comum e o princípio superior de que derivam não só a irretroactividade in peius como também a retroactividade in melius (....) deve-se, com legitimidade, afirmar que o princípio (geral da aplicação da lei penal no tempo) é o da aplicaçãoda lei penal favorável”.
No caso dos autos, como se viu, o arguido foi condenado, por decisão datada de 30/11/2005, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por um período de quatro anos.
E a decisão recorrida, para negar a aplicação do limite da suspensão de dois anos, procedeu à ponderação da uma moldura penal abstracta mais gravosa que aquela que estava em vigor á dada da condenação e respectivo trânsito em julgado.
Ora o legislador não pretendeu, com o aditamento do art. 371º-A do CP.P. que se proceda a um segundo julgamento tendo em vista colmatar deficiências que se tenham verificado na sentença já transitada em julgado.
Nas situações cobertas pelo caso julgado, a reabertura da audiência tem em vista, exclusivamente, a aplicação do novo regime mais favorável.
A reabertura da audiência, ao abrigo do disposto no art.371º-A do C.P.P., tem natureza excepcional, permitindo a afectação do efeito do caso julgado apenas e exclusivamente in favor reo.
Não podendo ser efectuada naquele âmbito qualquer nova valoração in peius que afecte o caso julgado.
Certo é que a aplicação do regime mais favorável deve ser efectuada tendo em vista os regimes em concurso na sua globalidade (a lei fala em regime), aplicando-se aquele que aplicada a pena e regime de execução se revele, em concreto mais favorável ao arguido.
No entanto entendo que a decisão a rever para efeito do regime mais favorável, não pode ser efectuada, neste âmbito, repete-se, uma nova valoração in peius.
Aliás a aplicação do regime mais favorável na sua globalidade não impede que, em matéria de prescrição sejam admitidas excepções á referida aplicação em bloco – face à natureza e autonomia da prescrição que, de per si, extingue o procedimento criminal independentemente das circunstâncias concretas do caso.
A natureza excepcional da quebra do caso julgado, tendo sido aplicada, em concreto, uma determinada pena, exige o respeito pelo caso julgado in melius.
A relativa autonomização do momento da determinação da sanção (quase cesure), que leva a que só depois de decidida positivamente a questão da culpabilidade, o tribunal pondere e decida sobre a necessidade de prova suplementar com vista à determinação da sanção (cfr art. 469º nº2 e 470º, do CPP) com eventual reabertura da audiência (cfr art. 471º do CPP), permite que havendo alteração mais favorável no regime da pena esta possa ser aplicada à pena concreta já aplicada com trânsito em julgado.

O respeito do caso julgado, face à autonomização dos critérios aplicáveis à determinação da pena, exige que a reabertura da audiência para aplicação de regime mais favorável à concreta pena aplicada, ainda que a nova pena abstractamente cominada tenha um moldura mais severa.
Assim, no caso, embora o crime de maus-tratos pelo qual o arguido foi condenado tenha, efectivamente, no novo regime, uma moldura abstracta mais grave, a aplicação da nova moldura in peius, a uma pena já aplicada por decisão transitada em julgado, está vedada pelo art. 29º nº4 da C.R.P..
Com efeito o art. art.29º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa estabelece que «Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas na momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido».
No âmbito do art. 371º-A do CPP não poderá ser efectuada uma nova valoração, superveniente, in peius, do caso coberto por decisão transitada em julgado. Mas apenas aplicar a nova lei que favoreça o arguido sobre o juízo valorativo já efectuado, valorando sobre os aspectos da decisão transitada que sejam cindíveis/sindicáveis pelo tribunal para esse efeito exclusivo – in melius.
Haverá apenas, como bem sustenta o douto parecer, que aplicar a nova lei mais favorável ao arguido.
O que equivale a dizer, no caso, tendo-lhe sido aplicada uma pena de prisão de dois anos, ao abrigo da nova redacção do art. 50º do C.P.P., o período de suspensão de execução da pena não poderá ser superior à medida da pena aplicada - dois anos.
Não cabe apreciar, no recurso, a verificação dos pressupostos da eventual revogação da suspensão, porque não foi objecto da decisão recorrida nem carreados/discutidos os elementos pertinentes.

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III.
Nestes termos decide-se conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e fixando o período da suspensão da pena aplicada em dois anos, devendo o tribunal de 1ª instância, oportunamente, verificar se durante o referido período ocorreu alguma causa de revogação da suspensão e os pressupostos da extinção da pena. ---
Sem tributação.