Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
39/23.8T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PLURALIDADE DE CONTRATOS DE SEGURO
SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL
SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS
SEGURO DE DANOS
SEGURO DE PESSOAS
PRESTAÇÃO DE VALOR PREDETERMINADO
PRESTAÇÃO DE NATUREZA INDEMNIZATÓRIA
CUMULAÇÃO DE PRESTAÇÕES
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
BOMBEIRO
DANO DA PERDA DA VIDA
MONTANTE DA INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 01/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 1.º, 16.º, N.º 1, 24.º, N.º 1, 102.º, 128.º, 180.º DO RJCS, APROVADO PELO DECRETO-LEI N.º 72/2008, DE 16-04
Sumário:
I – No tocante ao objecto da prestação a que o segurador se obriga, os contratos de seguro distinguem-se em contratos de seguro de prestações indemnizatórias ou convencionadas, consoante o segurador se obriga a prestar o valor correspondente aos danos resultantes do sinistro, de harmonia com o chamado princípio indemnizatório, ou um valor previamente fixado no contrato;

II – Salvo convenção contrária, as de prestações do seguro de valor predeterminado são cumuláveis, quer com as de outros seguros com prestações da mesma natureza, quer com prestações de natureza indemnizatória, relativamente ao mesmo risco, cumulação que só é excluída se o seguro de pessoas garantir prestações indemnizatórias relativas a um mesmo risco;

III – O segurador que realize prestações de valor predeterminado no contrato de seguro não fica sub-rogado nos direitos da pessoa segura ou do beneficiário do seguro contra terceiro que dê causa ao sinistro, regra que reveste carácter injuntivo e tem, precisamente, por finalidade permitir a acumulação de prestações; em caso de dúvida, o carácter indemnizatório das prestações do segurador, únicas relativamente às quais se admite a convenção de sub-rogação – escrita em caracteres destacados – depende de expressa e clara previsão contratual nesse sentido;

IV – Em caso de morte a lei manda atender aos danos não patrimoniais sofridos pela vítima, previsão refere-se nitidamente a todos os danos não patrimoniais que emergem da morte de uma pessoa – que não directamente a própria morte, categoria de danos que assume, porém, configurações casuísticas muito diversificadas, dado que estando em causa o sofrimento, tanto físico como psicológico – v.g. a angústia pela antevisão da morte – a sua intensidade e duração só podem aproximativamente medir-se no contexto concreto e específico das várias situações vivenciada pela vítima, antes do seu falecimento;

V – A morte pode ser mais lenta ou mais rápida, mais ou menos dolorosa, podendo ser instantânea ou resultar de uma agonia longa e penosa; a morte pode ter sido indolor ou ser antecedida de um sofrimento excruciante; a vítima pode ter pressentido o avanço da morte ou não ter tido a mínima consciência da sua aproximação, v.g., por estar inconsciente; qualquer destes factos não pode, simplesmente, ser deduzido da morte de uma pessoa, pelo que para que se deva assentar na sua realidade é necessário considerar outros parâmetros, não existindo qualquer regra de experiência ou critério ou standard social que justifique a ilação de que a morte é sempre intuída, pressentida ou dolorosamente vivenciada pela vítima, tudo dependendo das circunstâncias em que aquele facto nefasto, lamentável e irreversível se verificou;

VI – A morte de uma pessoa é susceptível de causar danos às pessoas a quem se mostre ligado por vínculos familiares, em especial aos pais, ao cônjuge e aos filhos, devem ser ponderadas, para a determinação da compensação dos danos não patrimoniais, as circunstâncias em que a morte se verificou, o seu carácter imprevisto, a intensidade do impacto traumático e a dificuldade de superação do luto pelo que, estando em causa o dano de apego ou de afeição – a dor e o desgosto de certos familiares da vítima, provocados pela morte desta – no domínio estrito da responsabilidade civil é determinante, na fixação dos montantes indemnizatórios, para além da fonte do elo familiar, o concreto grau de ligação afectiva existente entre os titulares da indemnização e aquele cuja morte a ocasionou, devendo relevar, no sentido da majoração, a coabitação do titular com a vítima à data da morte;

VII – O princípio da equidade que deve estar presente na fixação de compensações por danos não patrimoniais obriga a uma criteriosa ponderação das particulares circunstâncias em que se deram os eventos lesivos e das causas que contribuíram para o seu desfecho catastrófico e, apesar de dever ser levado em conta a necessidade de observância dos princípios da universalidade e da igualdade, não deve deixar-se de ter em atenção as especiais e complexas circunstâncias de que se reveste a situação concreta;

VIII – Por força dos princípios estruturantes da igualdade e da confiança, impõe-se, um esforço de uniformização e de unidade na aplicação do direito – scilicet, na determinação do valor da indemnização – desde que haja entre as realidades comparadas, apesar de serem simultaneamente idênticas e diversas, uma relação de semelhança, i.e., se apresentarem as mesmas características essenciais;

IX – Dado que a prova em juízo nunca é fácil e é, por certo, muito mais difícil, quando o seu objeto são factos situados ou que relevam do foro interno ou do plano psíquico de uma pessoa, como o sofrimento psíquico ou psicológico, o medo, a ansiedade, a premonição de um acontecimento nefasto ou trágico, etc., justifica-se, para ultrapassar esta dificuldade, uma utilização intensiva de regras de experiência e de critérios sociais – do id quod plerumque accidit, daquilo que normalmente sucede – e, mesmo, em última extremidade, de uma prova prima facie, i.e. de uma prova em que a tipicidade da inferência probatória é de tal modo forte que só cede perante dúvidas fundadas, quer dizer, perante uma contraprova também ela prima facie ou perante a prova do contrário;

X – As presunções judiciais são operações probatórias, tendo por base as regras de experiência resultantes do curso normal dos factos, mas para que a sua utilização seja correcta, exige-se uma relação entre o facto probatório e o facto probando, de harmonia com a inferência para a melhor explicação, i.e., sempre que o primeiro constitui a melhor explicação do segundo.

XI – Para a aplicação correcta da presunção é indispensável a prova do facto que constitui a sua base.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

Relator: Henrique Antunes

1.ª Adjunta: Teresa Albuquerque

2.º Adjunto: Luís Manuel Carvalho Ricardo

                                                                                                       Proc. n.º 39/23.8T8CTB.C1

               Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

               A..., Companhia de Seguros, SA, apelou da sentença, proferida no dia 28 de Setembro de 2023, pela Sra. Juíza de Direito do Juízo Central Cível de Castelo Branco, do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, que julgando parcialmente procedente a acção declarativa de condenação, com processo comum, proposta por AA e BB, a condenou a pagar a estes a quantia de € 190 000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde 28 de Setembro de 2023.

               A apelante – que pede, no recurso, a sua absolvição do pagamento das quantias em que foi condenada – encerrou a sua alegação com estas bem numerosas conclusões:

               (…).

               Os apelados, na resposta, concluíram, naturalmente, pela improcedência do recurso.

               2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

               O Tribunal de que provém o recurso decidiu a matéria de facto do modo seguinte:

               2.1. Factos provados.

               1. No dia .../.../2020 faleceu, com o estado civil de solteiro e vinte e um anos de idade, CC.

2. No dia 12 de agosto de 2021 o Autor AA declarou, perante Notário, o seguinte:

“Que é cabeça-de-casal por óbito de seu filho e nessa qualidade faz as seguintes declarações:

Que no dia vinte e seis de julho de dois mil e vinte, na União das freguesias ... e ..., concelho ..., apareceu cadáver CC (…), natural que era da freguesia ..., concelho ..., com última residência habitual no Lugar ..., ..., na União de freguesias ... e ..., concelho ..., no estado de solteiro, maior. Que o falecido não deixou descendentes, não fez testamento nem qualquer outra disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros os seus pais:

a) Ele, outorgante, AA, já acima identificado.

b) BB, natural da dita freguesia ..., concelho ..., casada com o ora outorgante, AA e com ele residente, (…).

E que não há quem, segundo a lei, prefira aos indicados herdeiros ou com eles concorra na sucessão à herança do falecido CC.”.

3. No dia 25 de julho de 2020, pelas 20h15, na estrada florestal sem saída existente na zona denominada ..., no sentido de marcha ... – Estrada Florestal, ocorreu o despiste do veículo pesado de combate a incêndios com a matrícula ..-..-TU, pertencente aos Bombeiros Voluntários ....

4. O veículo identificado em 3. era conduzido pela testemunha DD, encontrando-se sentada ao seu lado a testemunha EE.

5. No banco traseiro do veículo identificado em 3. seguiam, como passageiros transportados, o falecido CC e mais dois elementos da referida corporação de bombeiros.

6. A estrada florestal em que o veículo identificado em 3. circulava era estreita para as dimensões do mesmo.

7. O piso era irregular, em terra batida e com pedras soltas.

8. O veículo identificado em 3. deslocava-se para o combate a um incêndio que deflagrava naquela zona.

9. A dado momento do percurso, a via encontrava-se parcialmente ocupada por ramos de pinheiros e o condutor do veículo identificado em 3. fez uma ligeira inflexão à direita para se desviar desses obstáculos.

               10. Nesse local há uma curva à esquerda e a via tem uma inclinação em declive de 5,8%.

11. A largura da faixa de rodagem era de 3,27 metros.

12. Nessas circunstâncias, quando o condutor do veículo identificado em 3. guinou a direção para a direita, a fim de se desviar dos ramos de pinheiros existentes no talude do lado esquerdo, atento o sentido de marcha do veículo, o terreno cedeu ao peso do veículo e a roda traseira direita resvalou e perdeu aderência.

13. Por essa razão, o condutor do veículo identificado em 3. travou, após o que o veículo entrou em despiste, despenhando-se pela ribanceira existente do lado direito.

14. O veículo capotou várias vezes até ficar imobilizado a cerca de 200 metros da via por onde circulava.

15. Após a imobilização do veículo todos os ocupantes do mesmo foram projetados, com exceção do filho dos Autores, CC.

16. Os restantes ocupantes do veículo conseguiram movimentar-se até ao cimo da estrada, antes da aproximação do incêndio, tendo os mesmos chamado pelo falecido CC, mas este não respondia nem era visível.

17. Como o incêndio lavrava sem qualquer tipo de combate naquele local e progredia livremente, não havendo condições de segurança para prosseguir as buscas do filho dos Autores, os restantes ocupantes do veículo abandonaram o local.

18. O filho dos Autores, CC, só foi encontrado no dia seguinte, junto do veículo e já cadáver.

19. À data do acidente a responsabilidade civil emergente dos danos causados em consequência da circulação do veículo identificado em 3. encontrava-se transferida para a Ré A... – Companhia de Seguros, SA, mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...66.

20. Em consequência do acidente, o filho dos Autores, CC, sofreu lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, associadas a intoxicação por monóxido de carbono, as quais constituíram causa adequada e necessária da sua morte.

21. O filho dos Autores, CC, era uma pessoa saudável, não lhe sendo conhecida qualquer enfermidade.     

22. O filho dos Autores, CC, era uma pessoa muito alegre, bem-disposta e muito apegada à vida.

23. Era um jovem sempre pronto e disponível para ajudar os outros, sendo voluntário na Corporação de Bombeiros ....

24. Em consequência do despiste do veículo identificado em 3. o filho dos Autores, CC, sentiu dores.

25. O seu corpo ficou parcialmente carbonizado.

26. O filho dos Autores, CC, teve consciência de que as consequências físicas resultantes do despiste do veículo identificado em 3. seriam graves e poderiam determinar a sua morte.

27. Quando tiveram conhecimento de que o seu filho tinha sido vítima de um acidente de viação os Autores sofreram um profundo choque, entrando em pânico.

               28. Pouco tempo depois de terem tido conhecimento do acidente os Autores foram informados de que o seu filho se encontrava desaparecido.

29. Os Autores suportaram então algumas horas de angústia e sofrimento em virtude de, devido à forma como ocorreu o acidente, terem temido, desde logo, o pior.

30. O filho dos Autores, CC, só foi encontrado na manhã do dia seguinte, já sem vida, o que foi desde logo comunicado aos Autores.

31. A morte do seu filho representa, para os Autores, uma perda irreparável, tendo sido o maior desgosto que sofreram durante toda a sua vida.

32. Os Autores sofreram e ainda sofrem grande angústia e amargura.

33. Os Autores continuam a lembrar-se do seu filho e a chorar a sua morte.

34. O filho dos Autores, CC, retribuía-lhes todo o carinho, atenção e afeto, nutrindo por eles grande estima, respeito e consideração.

35. CC vivia com os seus pais e celebrava com os mesmos as festas de Natal, Páscoa e aniversários.

36. Os Autores dedicavam ao seu filho todo o seu amor, afeto e ternura.

37. Ao longo das suas vidas sempre se mantiveram unidos e foram o amparo moral e afetivo uns dos outros.

38. A morte do seu filho causou aos Autores um profundo desgosto que os deixou inconsoláveis.

39. O acidente a que se reportam os presentes autos foi participado à Companhia de Seguros B..., atualmente denominada C..., SA, no âmbito do contrato de seguro de acidentes pessoais por esta celebrado com o Município ... e titulado pela apólice de seguro n.º ...07.

40. De acordo com as Condições Particulares da apólice de seguro identificada em 39., “o seguro de acidentes pessoais dos bombeiros corresponde à concretização do direito estabelecido no regime jurídico dos bombeiros portugueses que estabelece a cobertura de acidentes ocorridos no exercício da sua missão, em qualquer parte do mundo, de acordo com o Decreto-Lei n.º 241/2007, de 21 de junho, na sua redação atual. Ficam cobertos os sinistros em consequência de exercícios de instrução ou a prática de atividades desportivas no âmbito da corporação ou inter corporações, bem como os acidentes ocorridos durante o percurso para o local de apresentação ao serviço ou do regresso deste, qualquer que seja o meio de transporte utilizado. Estão igualmente cobertos os acidentes ocorridos em ações de formação, instrução, treino, cerimónias, festividades, exibição e outros atos similares. Ficam cobertos todos os acidentes que decorram de acidentes de viação e aviação, qualquer que seja o meio de transporte utilizado. Para efeito deste seguro é considerada como pessoa segura, o bombeiro conforme definido na alínea a) do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 241/2007, de 21 de junho, na sua redação atual, pertencente a corpos de bombeiros profissionais ou mistos nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 247/2007, de 27 de junho.”.

41. Nos termos das Condições Particulares da apólice de seguro identificada em 39., foram contratadas as seguintes coberturas:

“Despesas de tratamento – Capital: € 60.000,00

Incapacidade temporária – Capital: € 90,00

Morte ou invalidez permanente – Capital: € 150.000,00”

42. Em consequência da celebração do contrato de seguro de acidentes pessoais a que se alude em 39. e no âmbito da cobertura “Morte” a C..., SA pagou aos Autores a quantia de € 158.750,00.

43. Nos termos do artigo 29º das Condições Gerais da apólice de seguro identificada em 39., “o Segurador, uma vez paga a indemnização, fica sub-rogado nos direitos, ações e recursos da Pessoa Segura contra terceiros responsáveis pelo acidente, até à concorrência da quantia indemnizada, abstendo-se aquela de praticar quaisquer atos ou omissões que possam prejudicar a sub-rogação, sob pena de responder por perdas e danos”.

2.2. Factos não provados.

1. O filho dos Autores sempre levou uma vida muito regrada e sadia e de intensa dedicação ao trabalho e à família.

2. Ostentava um aspeto físico jovem e um vigor físico e uma frescura mental e intelectual invejáveis.

3. O filho dos Autores irradiava para todos aqueles que o rodeavam o seu afeto e a sua alegria de viver.

4. O seu sofrimento tornou-se ainda mais intenso em virtude de a vítima se ter apercebido de que iria abandonar para sempre os seus pais.

5. Com a morte do seu filho os Autores deixaram de conviver com os seus colegas e amigos, refugiando-se em casa e passando grande parte do seu dia isolados.

6. O acidente a que se reportam os presentes autos foi participado junto da Seguradora de Acidentes de Trabalho da Corporação de Bombeiros, no âmbito da apólice de seguro n.º ...64 da D... – Companhia de Seguros, SA.

               3.2. A Sra. Juíza de Direito adiantou, para justificar o julgamento dos pontos de facto, julgados provados referidos em 2.1.24. e 2.1.26., e não provado, descrito em 2.2.4.  a motivação seguinte:

               (…).

               3. Fundamentos.

               3.1. Delimitação do âmbito objectivo do recurso.

               O âmbito objetivo do recurso é delimitado pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados na instância de que provém, pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, e pelo recorrente, ele mesmo, designadamente nas conclusões da sua alegação (art.º 635.º n.ºs 2, 1ª parte, 3 a 5 do CPC).

               A sentença impugnada no recurso é a que com fundamento em que o despiste do veículo automóvel pesado de combate a incêndios ..-...TU, conduzido por EE, pertença dos Bombeiros Voluntários ... – que transferiu, por contrato de seguro, para a apelante, a sua responsabilidade civil por danos causados com ele a terceiros -  quando se deslocava para combater um incêndio rural, no qual era transportado o bombeiro, filho dos apelantes, CC, em consequência do qual sofreu a morte, é imputável a uma culpa negligente grave do respectivo condutor – imputação subjectiva e objectiva que a apelante não controverte no recurso – vinculou esta a pagar àqueles, como compensação pela destruição ou perda da vida de CC, pelos danos não patrimoniais que suportou nos momentos que precederam a sua morte e pelos danos, da mesma espécie suportado pelos apelantes com a morte do filho, as quantias de € 100 000,00, € 10 000,00 e € 80 000,00, respectivamente.

               A apelante discorda desta condenação desde logo porque, no seu ver, a Sra. Juíza de Direito incorreu, no julgamento dos pontos de facto, julgados provados, 24 e 26 num error in iudicando por erro na avaliação ou aferição das provas e, em qualquer caso, num erro na qualificação por, no tocante à pluralidade de seguros, ao concluir pela admissibilidade da cumulação de prestações dos dois seguradores, ter escolhido a norma errada para enquadrar o caso concreto e, finalmente num erro na estatuição, i.e., num erro respeitante à aplicação, ao mesmo caso, da consequência jurídica definida pela norma, dado que valorou ou quantificou, incorrectamente, o valor da compensação do dano morte e dos danos não patrimoniais sofridos pela vítima mortal nos momentos que antecederam a morte e pelos apelados com o facto da morte do filho.

               Maneira que, considerando os parâmetros apontados da competência decisória ou funcional desta Relação as questões concretas controversas colocadas à sua atenção são as de saber se o Tribunal da 1.ª instância incorreu nos erros de julgamento tanto da questão de facto como da questão de direito que lhe são assacados pela apelante, o que vincula ao exame do regime da pluralidade de seguros e da natureza das prestações que deles emergem e, consequentemente, da acumulação ou não dessas prestações convencionadas, à aquisição dos critérios ou parâmetros de determinação do quantum da indemnização, scilicet, compensação, assente num responsabilidade delitual ou aquiliana, do dano morte ou de perda da vida e dos danos não patrimoniais sofridos pela vítima mortal antes da morte e pelos pais desta com aquela perda e este sofrimento e, finalmente, à ponderação dos poderes de correcção da decisão da quaestio facti da 1.ª instância de que esta Relação dispõe.

               Dado que a questão estritamente jurídica relativa à – não - acumulação de prestações fundados nos dois contratos de seguro é susceptível de prejudicar o conhecimento dos demais fundamentos do recurso está indicado, metodologicamente, que que a exposição subsequente se abra com a análise do regime da pluralidade de seguros e da admissibilidade ou não da cumulação das prestações emergentes daqueles dois contratos (art.º 608.º. n.º 2, do CPC).

3.2. Pluralidade de contratos de seguro e cumulação de prestações.

Diz-se contrato de seguro o contrato pelo qual uma pessoa transfere para outra o risco de verificação de um dano, na esfera própria ou alheia, mediante o pagamento de uma remuneração. A pessoa que transfere o risco diz-se tomador ou subscritor do seguro, a que assume esse risco e percebe a remuneração – prémio – diz-se segurador; o dano eventual é o sinistro; a pessoa cuja esfera jurídica é protegida é o segurado – que pode ou não coincidir com o tomador do seguro (artºs 1.º, 16.º, n.º 1, e 24.º n.º 1, da LCS, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril).

Enquanto o segurador e o tomador do seguro assumem, por definição, a posição de partes num contrato de seguro, outras pessoas podem ocupar a posição de parte ou de terceiro nesse mesmo contrato. Entre estas avulta, evidentemente, a figura do segurado – o sujeito que se situa dentro da esfera de protecção directa e não meramente reflexa do seguro, de quem pode afirmar-se que está coberto pelo seguro. O segurado é, portanto, aquele por conta de quem o tomador celebra o seguro. Nos casos subjectivamente mais simples, o segurado será o próprio tomador do seguro, o tomador-segurado; nos demais casos, estar-se-á face a um ou mais terceiros-segurados. Numa palavra: o segurado não é, necessariamente, quem contrata o seguro, mas sim quem por ele fica coberto.

O risco é, evidentemente, o elemento nuclear do seguro: não há seguro sem risco. O sinistro, por seu lado, corresponde à verificação, no todo ou em parte, dos factos compreendidos no risco assumido pelo segurador. O universo de factos possíveis, previstos no contrato de seguro, cuja verificação determinará a realização da prestação por parte do segurador, representa a cobertura-objecto do contrato; o estado de vinculação do segurador, durante o período convencionado no contrato, conducente à constituição de uma obrigação de prestar, em caso de ocorrência daqueles factos, representa a cobertura-garantia.

A delimitação daquele universo de factos – que compõem a cobertura-objecto – é feita, em regra, segundo a técnica da definição primária da chamada cobertura de base e da subsequente descrição de sucessivos níveis de exclusões. No caso por exemplo, dos seguros de responsabilidade civil, pode delimitar-se o âmbito de cobertura a partir de uma pessoa – v.g., responsabilidade civil geral – de uma coisa – v.g., um automóvel. Mas essa delimitação pode não se ficar por aí: após a fixação da pessoa ou da coisa que servirá de ponto de referência ao seguro, bem como os interesses que se cobrem, podem seguir-se outros níveis, sucessivamente mais precisos, de delimitação. Assim pode, por exemplo, descrever-se as circunstâncias em que poderá ocorrer o dano, v.g., a actividade profissional desenvolvida pelo segurado.

Estas exclusões não são, em princípio, cláusulas de exclusão da responsabilidade – mas regras que definem o âmbito de cobertura do seguro. Essa delimitação pode ser feita positiva e negativamente, e dentro da delimitação negativa, através de exclusões objectivas – v.g., guerra – ou subjectivas, como por exemplo, o sinistro deliberadamente provocado. O que não é lícito é, através das exclusões, desvirtuar o objecto do contrato, i.e., modificar a natureza dos riscos cobertos tendo em conta o tipo de contrato de seguro celebrado[1].

O Código Comercial falava em seguros contra riscos. Mas esta expressão devia ser entendida no sentido actual de danos: seguros contra danos. Em sentido amplo e próprio, o risco assumido, pelo contrato de seguro, pelo segurador, é o de qualquer evento futuro, aleatório na sua verificação ou no momento da sua verificação e que obrigue aquele a satisfazer determinada prestação. Verificado o sinistro, o segurador deve pagar ao segurado o capital seguro, até ao limite do dano, ou para usar a linguagem corrente, juridicamente pouco rigorosa, a indemnização.

Descritivamente, o contrato de seguro é oneroso, sinalagmático e aleatório, visto que implica um esforço económico de ambas as partes, a remuneração paga por uma delas liga-se à vantagem proporcionada pela outra e a atribuição dessa vantagem depende de um facto alheio à vontade de qualquer delas.

O contrato de seguro releva, largamente, da autonomia privada. De harmonia com o Código Comercial, o contrato de seguro regulava-se pelas estipulações, gerais e especiais, da respectiva apólice, não proibidas por lei e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições do mesmo Código (art.º 426.º); de acordo com a LCS, o contrato de seguro rege-se pelo princípio da liberdade contratual, com os limites indicados na lei (art.º 11.º). O conteúdo do contrato – da apólice – é muito complexo dado que deve conter toda uma série de elementos, entre os quais, o objecto do seguro, a sua natureza e valor, o risco contra que se faz o seguro, a quantia segurada e o prémio do seguro (art.º 37.º da LCS). Portanto, é, em regra, o contrato que recorta – em razão da actuação pelas partes da sua autonomia privada – a sua exacta posição jurídica, as precisas prestações a que reciprocamente se vincularam.

Já se observou que seguro é o contrato pelo qual uma parte, mediante retribuição, suporta um risco económico, da outra parte ou de terceiro, obrigando-se a dotar a contraparte ou o terceiro, dos meios adequados à supressão ou à minimização das consequências negativas, reais ou potenciais, da verificação de um determinado facto.

O prémio – que é a fundamental obrigação a que o tomador do seguro se obriga pelo contrato de seguro – consiste no reverso ou contrapartida da cobertura do risco: se a obrigação fundamental do segurador consiste no dever de liquidar o sinistro, a obrigação fundamental do tomador do seguro resolve-se no dever de pagar o prémio convencionado (art.º 51.º da LCS).
O sinistro equivale à verificação, total ou parcial, dos factos compreendidos no risco assumido pelo segurador (art.º 99.º da LCS). O sinistro reporta-se, pois, à ocorrência daquele facto ou conjunto de factos que, desencadeando a garantia contratual de cobertura de risco, origina, para o segurador o dever de realizar a prestação convencionada.
Participado o sinistro – pelo tomador, segurado ou beneficiário, conforme o caso – e apurada a obrigação do segurador, tem lugar a liquidação do sinistro. Essa liquidação resolve-se, nos seguros de danos, na realização de uma prestação consistente no pagamento de um quantum indemnizatório, correspondente aos danos sofridos pelo segurado – prestação indemnizatória. No seguro de danos, na fixação do montante da prestação, assume especial relevo o chamado princípio indemnizatório (artº 128.º e ss. da LCS).  Prestação que, no tocante à sua forma, pode consistir numa prestação única ou em várias fraccionadas, em dinheiro ou em espécie, nos termos do contrato.
Relativamente ao momento da realização, pelo segurador, da sua prestação, a regra é a seguinte: constatado o sinistro, o segurador deve pagar ao segurado o capital seguro até ao limite do dano, quando se trate de seguro de danos: é a indemnização ou pagamento (art.º 102.º, n.º 1, da LCS). Note-se que, na lógica da lei, a vinculação do segurador ao dever de indemnizar está na dependência da constatação do sinistro: o segurador – declara terminantemente a lei – obriga-se a satisfazer a prestação contratual, após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências, podendo ainda ser necessária a prévia quantificação das consequências do sinistro (art.º 102.º, n.ºs 1 e 2, da LCS). Esta previsão pode dar azo a dilações, demora a que acrescerá, além disso, o prazo de 30 dias para que a obrigação do segurador efectivamente se vença (art.º 104.º da LCS). O lesado prudente poderá evitar aquela dilação através da interpelação do segurador (art.º 805.º, n.º 1, do Código Civil)[2]. Rigorosamente, porém, na indemnização ou pagamento devida pelo segurador não se está perante uma responsabilidade civil, mas apenas perante uma prestação puramente contratual (art.ºs 102.º, n.º 1, e 108.º da LCS). Em rigor não estamos aqui, sempre, perante o instituto da responsabilidade civil – mas apenas em face do funcionamento de um contrato: o facto de muitas vezes estar em jogo a supressão de um dano, leva a que se fale em indemnização – a que a LCS chama pagamento – mas a verdade é que a prestação do segurador nem sempre se reveste de uma finalidade indemnizatória, pelo que a utilização da expressão indemnização não decide da verdadeira natureza da prestação – contratual – do segurador (art.º 102.º, n.º 1).
A prestação devida pelo segurador vence-se decorridos 30 dias sobre a constatação do sinistro e o conhecimento dos danos, embora se admita tratamento mais favorável (art.ºs 13.º e 104.º da LCS). Completado esse prazo sem que o segurador realize aquela prestação, este fica, nos termos gerais, constituído em mora[3], que dá lugar, tratando-se de uma obrigação pecuniária, ao vencimento de juros à taxa legal (art.ºs 102.º., n.º 3 da LCS, 799.º, n.º 1, 804.º, n.ºs 1 e 2, e 806 nºs 1 e 2, do Código Civil, e 1.º da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril). Realmente, se a obrigação do segurador for pecuniária, o segurado não precisa de provar que teve prejuízos – mas em contrapartida, dado que a responsabilidade do segurador é uma responsabilidade ex-contractu, ao segurado não é lícito exigir do segurador indemnização superior à fixada no regime de indemnização à forfait, alegando que a mora lhe causou, no caso concreto, prejuízo mais elevado (art.º 806.º, n.º 3, a contrario, do Código Civil).
Em qualquer caso, a ética manda que o segurador, enquanto comerciante diligente, não retarde artificial ou dilatoriamente o pagamento da indemnização. Mas deve notar-se que sobre o segurado ou tomador do seguro - conforme o caso - recai, igualmente, o dever, ex-bona fide, de minorar os danos ou de evitar a sua ampliação, podendo o segurador, em última extremidade, não responder pelos danos que o segurado, poderia ter prevenido e não evitou (art.º 762.º, n.º 2, do Código Civil)[4].

A LCS classifica os contratos de seguro à luz de uma divisão fundamental: os seguros de danos e os seguros de pessoas (art.ºs 123.º a 174.º e 175.º a 217.º). Os seguros de danos são os contratos de seguro que têm por finalidade a cobertura de riscos relativos a coisas, bens materiais, créditos e outros direitos patrimoniais (art.º 123.º da LCS); dizem-se seguros de pessoas, os contratos de seguro que têm por finalidade a cobertura de riscos relativos à vida, saúde e integridade física de uma pessoa ou grupo de pessoas (art.º 175.º da LCS).
O seguro de danos é dominado pelo chamado princípio indemnizatório que tem, fundamentalmente, este alcance: o seguro de danos visa, apenas e no máximo, suprimir o dano efectivo sofrido pelo segurado; ele não deve ir mais além, proporcionando ao segurado um qualquer lucro[5]. No seguro de danos, a prestação devida pelo segurador é limitada ao dano decorrente do sinistro, até ao montante do capital seguro (art.º 128.º da LCS). Há, portanto, um duplo limite, valendo, sempre, o mais baixo: o do dano; o do capital seguro. Assim, no seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador, é o valor do interesse seguro, i.e., da parcela de valor que, com referência com concreto de seguro celebrado, tenha o risco coberto, ao tempo do sinistro (art.º 130.º. n.º 1, da LCS). Todavia, a regra não é absolutamente imperativa, dado que se permite às partes, sem prejuízo do princípio indemnizatório, acordar no valor do interesse atendível para o cálculo da prestação, podendo assentar no valor a considerar, em caso de sinistro, desde que não seja manifestamente infundado (art.º 131.º da LCS)[6].

O seguro de vida, que constitui o tipo dominante do seguro de pessoas, cobre um risco relacionado com a morte ou sobrevivência de uma pessoa (art.º 183.º da LCS). No seguro de acidentes pessoais – cuja regulação é, na essência obtida por remissão para o regime do seguro de vida – o segurador cobre o risco de verificação de lesão corporal, invalidez, temporária ou permanente, ou morte da pessoa segura, por causa súbita, externa e imprevisível (art.ºs 210 e 211.º da LCS).

Pode dar-se o caso de um mesmo risco, relativo ao mesmo interesse, estar seguro por vários seguradores, i.e., de existir uma pluralidade ou concurso de seguros. Nesta hipótese, o sinistro é indemnizado por qualquer dos seguradores à escolha do segurado, dentro dos limites da respectiva obrigação e, salvo convenção contrária, os vários seguradores respondem entre si na proporção que cada um teria de pagar, se houvesse um único seguro (art.º 133.º, n.ºs 3 e 4 da LCS). Estas soluções são, patentemente, ordenadas para garantir o princípio indemnizatório, impedindo a cumulação das prestações devidas pelos vários seguradores e, portanto, que o mesmo dano seja ressarcido duas vezes – senão na medida em que um dos pagamentos não haja ressarcido o dano por inteiro. Mas, patentemente também, a exclusão da cumulação das prestações dos seguradores apenas é aplicável aos seguros, plurais ou múltiplos, de prestações indemnizatórias.

Realmente, o seguro de pessoas oferece duas importantes particularidades relativamente ao seguro de danos: admite o sobresseguro e impede a sub-rogação do segurador.

 Na verdade, é admitida, salvo convenção contrária, a pluralidade de seguros, ou seja, os seguros de prestações de valor predeterminado são cumuláveis, quer com outros seguros com prestações da mesma natureza, quer com prestações de natureza indemnizatória, relativamente ao mesmo risco (art.º 180.º, n.º 1, da LCS). Essa cumulação só é excluída se o seguro de pessoas garantir prestações indemnizatórias relativas ao mesmo risco (art.º 133.º, ex-vi art.º 180.º, n.º 2, da LCS). De outro aspecto, o segurador que realize prestações de valor predeterminado no contrato de seguro não fica sub-rogado nos direitos da pessoa segura ou do beneficiário do seguro contra terceiro que dê causa ao sinistro (art.º 181.º, n.º 1, da LCS)[7]; em caso de dúvida, o carácter indemnizatório das prestações do segurador, únicas relativamente às quais se admite a convenção de sub-rogação – escrita em caracteres destacados - depende de expressa e clara previsão contratual nesse sentido (art.º 181.º, n.ºs 2 e 3, da LCS). Inadmissibilidade da sub-rogação, no caso apontado, que tem justamente por finalidade permitir a acumulação de prestações.

Esta regulação compreende-se se se tiver presente que o seguro de pessoas pode ter uma função diversa da indemnizatória ou ressarcitória, aproximando-se do produto financeiro, desempenhando uma função de poupança ou investimento[8]. Neste caso, deixa de regular o princípio indemnizatório, não valendo qualquer restrição de cumulação de contratos nem qualquer limite do valor das prestações, admitindo-se a conclusão de dois ou mais contratos com prestações predeterminadas, por referência ao mesmo risco, ou a cumulação de contratos de prestações predeterminadas com contratos de prestações indemnizatórias.

De harmonia com o critério da sua obrigatoriedade, os seguros dizem-se facultativos ou obrigatórios, consoante são celebrados livremente pelo tomador do seguro ou por imposição legal. De acordo com o critério do objecto da prestação do segurador, distinguem-se os seguros de prestações indemnizatórias ou convencionadas, consoante o segurador se obriga a prestar o valor correspondente aos danos resultantes do sinistro ou um valor previamente fixado no contrato.
No caso que nos ocupa é indubitável que a eventual vinculação da apelante à obrigação de compensação do dano de perda da vida ou dano morte do filho dos apelados e do sofrimento experimentado por este antes da morte – dano ante-mortem - e dos danos não patrimoniais comprovadamente suportados pelos apelantes com qualquer daqueles factos – dano de apego, afeição ou luto - se funda num contrato de seguro, e num contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil por danos causados a terceiros com o veiculo automóvel ..-..-TU, pertença dos Bombeiros Voluntários ..., seguro que tem, nitidamente, por objecto prestações indemnizatórias (art.ºs 4.º, n.º 1, 6.º, n.º 1, e 11.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto). Mas a par deste contrato de seguro, a matéria de facto documenta a contracção de um outro, também ele obrigatório, concluído entre o Município ... e, actualmente, a C... SA, mas de acidentes pessoais de pessoas dotadas de um qualidade particular – a de bombeiro, profissional ou voluntário - que cobria o risco de morte do filho dos apelantes, por deter aquela qualidade profissional ou funcional, com a quantia equivalente a 250 vezes a retribuição mínima garantida mais elevada (art. 23.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 241/2007, de 21 de Junho, 1.º, 3.º n.ºs 1, a), e 2, a), da Portaria n.º 123/2014, de 19 de Junho). E este segurador, em face do facto da morte, súbita e imprevisível – e violenta - do filho dos apelados, satisfez a estes a prestação convencionada com o tomador do seguro para o caso de morte: € 158 750,00.
Fundada neste facto, a apelante conclui, com veemência, que perante o pagamento de €158.750,00 pela seguradora C..., SA, no âmbito do contrato de seguro de acidentes pessoais, extingue o direito dos Recorridos de verem ressarcidos, pela Recorrente, os danos causados em consequência do acidente de viação do qual resultou a morte de CC. Esta consequência resultaria, no ver da apelante, da circunstância de a prestação a que aquela seguradora se vinculou e que realizou ter, à semelhança da que para si emerge do contrato de seguro em que ocupa a posição jurídica de segurador, natureza indemnizatória. Diferentemente, a sentença impugnada não teve dúvidas em declarar que a seguradora de acidentes pessoais pagou aos Autores uma prestação de valor predeterminado, e não uma prestação de natureza indemnizatória destinada a compensar os danos inerentes à morte do seu filho CC e, portanto, que aquela prestação é cumulável com a prestação indemnizatória a que a apelante deve ser vinculada.
Decididamente, a razão está do lado da sentença contestada: a prestação a que seguradora de acidentes pessoais realizou é, não uma prestação indemnizatória, mas uma prestação de valor predeterminado ou invariável, uma prestação que não procura reparar, colmatar ou compensar um dano, como sucede com uma simples obrigação de indemnização ou com uma prestação de indemnizatória -  cujo valor é, em concreto, dado, imperativamente, pelo dano - antes se limita a atribuir um valor rígido, ne varietur, uma vez concretizado o risco objecto da cobertura e constatado o sinistro, portanto, sem margem para qualquer ponderação da medida concreta do dano, sendo indiferente, para o caso, que à prestação seja dada a designação, tradicional e juridicamente pouco precisa, de indemnização e que o segurado não seja o tomador do seguro ou que no seguro de acidentes pessoais se tenha convencionado o direito de sub-rogação do respectivo segurador, uma vez que tal convenção, por violar a norma injuntiva que a proíbe, se deve ter por nula.
O que explica que o segurador dos acidentes pessoais, contra o que é comum, tenha satisfeito aquela prestação, pelo exacto valor convencionado, determinado a forfait, sem discutir – como faz a apelante – o valor da compensação devida pelo dano morte, compensação que a recorrente considera desproporcional e desadequada e que, comprovadamente, excede, largamente, a que é jurisprudencial e comummente arbitrada para tornar indemne o dano morte. Aliás, nos contratos de seguro de pessoas o carácter indemnizatório da prestação do segurador depende de expressa e clara previsão contratual nesse sentido – convenção, expressa e inequívoca que, no caso, a matéria de facto não objectiva ou documenta (art.º 181.º, n.º 2, b), da LCS). Do que decorre que aquela prestação é cumulável com as prestações – essas sim indiscutivelmente indemnizatórias – relativamente às quais haja fundamento para vincular a apelante.
De resto, ao contrário do que a recorrente sustenta na sua alegação, ainda que as prestações não fossem cumuláveis, sempre se imporia vincular aquela ao dever de indemnizar ou compensar os danos diversos do dano morte – dado que só um tal dano seria de considerar compensado com a realização da prestação pelo segurador dos acidentes pessoais –  pelo que aquela sempre deveria ser adstrita ao dano de luto, de afeição ou apego suportado pelos apelados com a morte, súbita, imprevisível e violenta, do filho e, bem assim, ao dever de indemnizar o dano pré-letal sofrido pela vítima mortal, caso evidentemente, este último dano se deva ter por provado. E quando os seguradores, perante a pluralidade de seguros, vejam o risco que cada um corre limitado, sempre se imporia que a recorrente - que se supõe ser um segurador eticamente ordenado – restituísse ou, ao menos, reduzisse proporcionalmente o prémio. A lei não o diz, mas não deve oferecer dúvida séria a aplicação analógica do art.º 132.º da LCS; em última instância sempre teríamos o princípio da boa fé e o instituto do enriquecimento sem causa (art.ºs 473.º e 762.º, n.º 2, do Código Civil). Mas como é hábito, o segurador propõe-se recusar a sua prestação - retendo a do tomador.
 Destas considerações derivam duas conclusões expressivas: que aos apelados assiste o direito de cumular as prestações – e inversamente que a apelante não deve ser exonerada, no todo ou sequer em parte da sua prestação indemnizatória que a final se julgue ser devedora; que na quantificação da compensação devida aos apelados pela morte do filho e pelo sofrimento ante-mortem deste – caso se prove - e pelo sofrimento, deveras atroz, que eles mesmo experimentaram e ainda experimentam pela perda desse mesmo filho, se deve abstrair, por inteiro, do percebimento daquela prestação. Dito doutro modo: o cômputo da compensação dos danos devida aos apelados deve ser feito sem qualquer pré-juízo, que o percebimento pelos apelados da prestação determinada como compensação do dano morte do filho com outro segurador seria susceptível de inculcar.

3.3. Parâmetros ou critérios de determinação do quantum da compensação pelos danos não patrimoniais da perda da vida ou da morte, do sofrimento pré-mortal ou ante-mortem, e de luto, apego ou afeição.

Qualquer que seja o escopo preciso que, em definitivo, se deva assinalar á responsabilidade civil[9], é inquestionável que esta visa, fundamentalmente, a reparação do dano, juridicamente entendido como a diminuição duma situação favorável que estava protegido pelo Direito[10]. A responsabilidade civil depende tenazmente da existência de dano: a supressão deste assume-se, por isso, como o seu escopo primordial[11].

É ao lesado que cumpre a prova do dano (art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil). Caso não consiga libertar-se do encargo dessa prova, intervém a regra de julgamento representada pelas normas sobre a distribuição do ónus da prova: a questão de facto correspondente é resolvida contra o lesado (art.ºs 414.º do CPC e 346.º, in fine, do Código Civil).

O dano não tem, porém, uma natureza unitária, podendo separar-se em duas grandes categorias: o dano patrimonial e o dano não patrimonial.

A lei não define o dano não patrimonial. Doutrinariamente o conceito é recortado pela negativa. O dano diz-se não patrimonial quando a situação vantajosa lesada tenha natureza espiritual[12]; o dano não patrimonial é o dano insusceptível de avaliação pecuniária, reportado a valores de ordem espiritual, ideal ou moral[13]; é o prejuízo que não atinge em si mesmo o património, não o fazendo diminuir nem frustrando o seu acréscimo. Há uma ofensa a bens de carácter imaterial – desprovidos de conteúdo económico, insusceptíveis verdadeiramente de avaliação em dinheiro[14]; é o prejuízo que, sendo insusceptível de avaliação pecuniária, porque atinge bens que não integram o património do lesado que apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária[15]. A distinção entre o dano patrimonial e não patrimonial assenta, assim, na natureza do interesse afectado. É, por isso, possível que da violação de direitos patrimoniais resultem danos não patrimoniais, da mesma maneira que da violação de direitos ou bens de personalidade podem derivar danos patrimoniais.

A indemnização visa reparar danos não patrimoniais quando tem por objecto um interesse não patrimonial, i.e., um interesse não avaliável em dinheiro[16]. Diferentemente do que acontece com a indemnização do dano patrimonial, a do dano não patrimonial não é uma verdadeira indemnização, pois não coloca o lesado na situação em que estaria se o facto danoso não tivesse tido lugar, mediante a concessão de bens com valor equivalente ao dos ofendidos em consequência do facto. Por isso, melhor se lhe tem chamado satisfação ou compensação[17]. Trata-se, apenas de dar ao lesado uma satisfação ou compensação do dano sofrido, uma vez que este, sendo não patrimonial, não é susceptível de equivalente, e, por isso, possível é apenas uma espécie de reparação, na forma de uma indemnização pecuniária, a determinar, por indicação expressa da lei, segundo juízos de equidade.

Na verdade, no tocante à determinação do quantum da indemnização do dano não patrimonial, a lei aponta nitidamente para uma valoração casuística, orientada por critérios de equidade (art.º 494.º, ex-vi artº 493.º, 1ª parte, do Código Civil). O critério de determinação da indemnização do dano não patrimonial não obedece, portanto, à teoria da diferença que, de resto, se mostra para essa finalidade, imprestável[18]. Mas esta circunstância não obsta à aplicação àquele dano de um princípio orientador do cômputo do dano patrimonial: o princípio da reparação integral do dano.

A lei é terminante na declaração de que o montante da indemnização do dano não patrimonial será fixado equitativamente (art.º 496.º, n.º 3, 1ª parte, do Código Civil). Neste contexto, a equidade visa determinar aspectos quantitativos de uma prestação: a indemnização. Mas seria errado pensar-se que a fixação da indemnização, a que a equidade é chamada, está no livre arbítrio do juiz; a leitura da lei evidencia a existência de critérios a que o juiz, nessa tarefa delicada, deve atender. A actividade do juiz na determinação do montante da indemnização, não se traduz num juízo silogístico-formal de subsunção - dado que o obriga a converter a sua valoração de critérios jurídicos de determinação numa quantificação numérica; trata-se, porém, de uma actividade juridicamente vinculada que constitui estruturalmente autêntica aplicação do direito. Desta constatação faz-se, naturalmente, decorrer a consequência da controlabilidade por via de recurso do procedimento de determinação da indemnização. No tocante ao processo de determinação do valor da indemnização não se deve reconhecer um espaço de discricionariedade diverso daquele que sempre se encontra presente em qualquer decisão verdadeiramente jurídica, antes se devendo qualificar a actividade correspondente como aplicação do direito, susceptível de controlo por via do recurso.

Mas também aqui se deve reconhecer que os instrumentos dispostos para orientação e racionalização da decisão judicial cobrem apenas parte das variáveis de que o juiz é portador. Se se introduzirem conceitos como basic rules ou second codes, aludindo ao complexo de regras e de mecanismos reguladores que determinam efectivamente a aplicação que o juiz faz da lei, pode dizer-se que os princípios regulativos de determinação do valor da indemnização cobrem apenas uma parte do processo decisório.

Esta constatação decorre da circunstância de a lei se limitar disponibilizar proposições indeterminadas que apenas se materializam no caso concreto. A indeterminação é de resto dupla: ela resulta quer da possibilidade de introduzir, na aplicação, novos factores atendíveis quer da intermutabilidade dos especificados na lei, cujo peso relativo, também se não encontra determinado. Existe, portanto, uma ilimitada variedade dos factores relevantes para o processo de individualização da medida da indemnização, a que soma a ausência de explicitação do seu peso relativo, tudo apontando para uma valoração casuística infindável, que vinca, também por esta via, a natureza móvel ou aberta do sistema.

Tudo inculca, pois, a conclusão de que a determinação da prestação da indemnização não está na dependência de um liberum arbitrium indifferantiae, de uma discricionariedade livre ou desvinculada do juiz – que implicaria conferir a nota de irrecorribilidade à decisão correspondente – e, consequentemente, que o processo de determinação do quantum da indemnização deve, em concreto, ser reconduzível a critérios objectivos, e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo. Mas seria imprudente não reconhecer a importância de elementos racionalmente não explicitáveis e mesmo puramente emocionais, e, portanto, uma margem inescapável de subjectividade.

Serve isto para dizer que a remissão no caso para a equidade é, de alguma maneira, aparente, visto que esta só ocorre, como regra, não quando haja uma qualquer indeterminação que o juiz tenha de resolver no caso concreto – mas quando se verifique uma decisão tomada à revelia do ius strictum, no sentido de sistemático[19]. De resto, um modelo de decisão ex aequo e bono tem ainda a particularidade de não ter preocupações generalizantes, característica que é abertamente contrariada por um dos parâmetros sob cujo signo deve decorrer a actividade de fixação da indemnização: o da uniformização ou padronização do seu valor (art.ºs 4.º e 8.º, n.º 3, do Código Civil).

Em contraposição à generalidade e abstracção da lei – que assenta num princípio de universalização – de harmonia com o qual todos os casos semelhantes devem ser decididos do mesmo modo - o critério não normativo da equidade orienta-se por um princípio de especialidade: cada caso deve ser decidido atendendo às suas especificidades, buscando-se uma solução justa atendendo, precisamente, a essas especificidades. Não obstante, por força dos princípios estruturantes da igualdade e da confiança, impõe-se, ainda aqui, um esforço de uniformização e de unidade na aplicação do direito – scilicet, na determinação do valor da indemnização - desde que haja entre as realidades comparadas, apesar de serem simultaneamente idênticas e diversas, uma relação de semelhança, i.e., se apresentarem as mesmas características essenciais (art.º 13.º da Constituição da República Portuguesa). A semelhança é, realmente, uma característica de realidades desiguais, pelo que pretender calcular a compensação, por exemplo,  de um dano de apego, afeição ou luto – ou de um dano biológico - por recurso a um critério de comparação de casos jurisprudencialmente decididos é, nas mais das vezes, metodicamente incorrecto dado que acaba por obscurecer o papel decisivo que - ainda só como critério concorrente de solução do caso, visto que há que conjugá-la com critérios normativos - a equidade é chamada a desempenhar, dificultando a obtenção de uma decisão justa que exige – sobretudo - a consideração das especificidades do caso concreto. De resto, esta metodologia complexifica, deveras, a determinação em concreto do quantum da indemnização, dado que a ponderação sobre as características essenciais dos diversos casos são ou não suficientemente próximas não deve basear-se na razão prática ou na intuição – mas em juízos valorativos e resolve-se, não raro, num estendal de decisões jurisprudenciais cuja característica comum mais saliente é a do valor encontrado para o dano.

Seja como for, a verdade é que o sistema de ressarcimento do dano não patrimonial é móvel ou aberto, indicando a lei, de forma inteiramente exemplificativa, para determinar o dano de cálculo – i.e., a expressão monetária do dano não patrimonial real – o grau de culpa do lesante a situação económica do lesante e do lesado e outras circunstâncias do caso (art.º 494.º do Código Civil).

O parâmetro representado pela culpa do agente – melhor se diria a forma dolosa ou negligente da imputação - mostra a permeabilidade da lei à ideia de que a indemnização do dano não patrimonial reveste uma certa função punitiva ou sancionatória, à semelhança, de resto, de qualquer indemnização[20].

O critério relativo à situação económica do lesante e do lesado pode, com vantagem, ser reconduzido a uma ideia de proporcionalidade, funcionado como factor da correcção da extensão indemnizatória que se mostre concretamente desproporcionada em face da situação patrimonial dos sujeitos, passivo e activo, da indemnização. No caso de existir seguro da responsabilidade, maxime, tratando-se de seguro obrigatório, fica, no entanto, sem sentido a consideração da situação económica do lesante[21].

Entre as outras circunstâncias do caso, devem indicar-se o carácter do bem jurídico atingido e a natureza e a intensidade do dano causado[22], o género e a idade da vítima – excepto no tocante ao cômputo do dano morte stricto sensu[23] - etc. Em qualquer caso, a ponderação sobre a gravidade do dano não patrimonial e, correspondentemente, do valor da sua reparação deve ocorrer sob o signo do princípio regulativo da proporcionalidade – de harmonia com o qual a danos mais graves deve corresponder uma indemnização mais generosa – e, como se observou, com as reservas apontadas, numa perspectiva de uniformidade: a indemnização deve ser fixada tendo em conta os parâmetros jurisprudenciais geralmente adoptados para casos análogos, desde que seja possível identificar uma semelhança substancial que garanta uma comparabilidade material dos diversos casos (art.º 8.º n.º 3 do Código Civil)[24].

A definição e a valoração do dano não patrimonial são, portanto, tarefas irremediavelmente carecidas de concretização jurisprudencial. O modo como essa actividade concretizadora tem sido desempenhada pela jurisprudência, mesmo no tocante ao dano de natureza máxima – o dano morte - tem merecido, por parte da doutrina, um juízo severo. Em face da exiguidade do valor das indemnizações por danos não patrimoniais comummente fixadas, fala-se, com acrimónia, em página negra da nossa jurisprudência[25], em indemnizações de miséria[26] e em extrema parcimónia[27].

O reparo é justo. Mas seria injusto, de um aspecto, não partilhar a censura com o legislador, que se mostra mais sensível aos danos patrimoniais que aos danos não patrimoniais[28] e aos termos um tanto deprimidos[29] com que se consagrou a ressarcibilidade dos danos desta última espécie e, de outro, não admitir uma evolução firme, ainda que paulatina, no reforço das indemnizações desse tipo de dano, consequente ao reconhecimento da sua especificidade e alteralidade relativamente ao dano patrimonial e à consciência da necessidade de uma tutela acrescida dos direitos de personalidade[30]. De outro aspecto, no caso da existência de seguro que revista feição indemnizatória, a indemnização deve, evidentemente, reflectir o facto – notório - do aumento da remuneração do segurador: o prémio.

A única condição de ressarcibilidade do dano não patrimonial é a da sua gravidade (art.º 496.º, n.º 1, do Código Civil). Na impossibilidade de concretizar um critério geral, porque nesta matéria o casuísmo é infindável, apenas importa acentuar que danos consequentes a lesões a direitos de personalidade devem ser considerados mais graves do que os resultantes de violação de direitos referidos a coisas. De resto, tratando-se de lesão de bens e direitos de personalidade, essa gravidade deve ter-se, por regra, como consubstanciada: deve exigir-se para bens pessoais um tratamento diferente do reservado para as coisas[31].

É uma evidência que a vida é de todos os bens de personalidade o mais precioso[32] (art.ºs 34.º da Constituição da República Portuguesa e 70.º do Código Civil). Cada pessoa é um ser único e irrepetível e, portanto, todas as pessoas têm igual dignidade (art.º 1 da Constituição da República Portuguesa). A dignidade da pessoa humana está na base do princípio personicêntrico inerente a muitos direitos fundamentais – v.g. o direito a vida e o direito à integridade física e psíquica – e alimenta materialmente o princípio da igualdade proibindo qualquer diferenciação ou qualquer pesagem de dignidade. A perda da vida, enquanto bem jurídico absoluto, é igual para todas as pessoas; pensamento contrário, assente no valor funcional da vida, levaria, por exemplo, a admitir a existência de vidas com menos valor ou mesmo sem valor, o que, seja qual o parâmetro considerado é, de todo, inadmissível[33]. E a primeira opção a tomar neste domínio é a de determinar se o montante da compensação deve ser igual para todas as pessoas ou se se justifica introduzir diferenciações. Entre estas releva a idade de vítima que alguma jurisprudência tem levado em conta para fixação dos danos não patrimoniais consequentes à perda do direito à vida, estabelecendo um critério que faz variar o valor da indemnização consoante aquele factor etário. Se é certo que esse critério deve indubitavelmente ter-se por correcto na determinação de danos patrimoniais, julga-se que não deve ser aplicado neste domínio: estando em causa a vida, em si, como bem absolutamente protegido pela ordem jurídica, ela deve ser uniformemente valorada em correspondência com a igual dignidade de todas as pessoas. Valoração uniforme que é especialmente aconselhada em vista da preferência tendencial para uma orientação padronizadora e normalizadora deste tipo de compensação.

               Face à nossa ordem jurídica deve ter-se hoje por definitivamente adquirida – não sem alguma resistência[34] - a conclusão de que a violação do direito à vida e, portanto, a morte de uma pessoa, constitui de per se um dano não patrimonial que deve ser reparado[35]. A supressão do bem vida causa dano desde logo ao seu titular: este é privado do direito máximo – a própria vida. O facto da morte não é muitas vezes um facto instantâneo e indolor: a vítima pode permanecer agónica e consciente, em sofrimento atroz, durante dias ou semanas. Trata-se notoriamente de um dano não patrimonial grave que deve ser objecto de compensação adequada[36].

A supressão do bem vida resulta de uma complexidade de eventos que não se limitam a destruir irremediavelmente a vida da vítima, repercutindo-se noutros bens de personalidade desta. Estão nessas condições os danos não patrimoniais suportados directamente pela vítima resultantes do sofrimento de todo o processo que conduz à morte, maxime, a consciência do próprio avanço da morte e a angústia causada pela premonição da sua eminência[37]. Indiscutivelmente, o sofrimento experimentado pela vítima antes e até à própria morte resolve-se, por isso, num dano não patrimonial que, pela sua gravidade, justifica inteiramente a tutela do direito, e correspondentemente, uma indemnização ou compensação autónoma.

Em caso de morte a lei manda, pois, atender aos danos não patrimoniais sofridos pela vítima (art.º 496.º, n.º 3, 2ª parte, proémio, do Código Civil). Esta previsão refere-se nitidamente a todos os danos não patrimoniais que emergem da morte de uma pessoa – que não directamente a própria morte. Esta categoria de danos assume, porém, configurações casuísticas muito diversificadas. Estando em causa o sofrimento, tanto físico como psicológico – v.g. a angústia pela antevisão da morte – a sua intensidade e duração só podem aproximativamente medir-se no contexto concreto e específico das várias situações vivenciadas pela vítima, antes do seu falecimento.

               Portanto, por mais cru que isto pareça, há que atender ao tipo de morte. A observação empírica mostra que a morte pode ser mais lenta ou mais rápida, mais ou menos dolorosa. A morte pode ser instantânea ou resultar de uma agonia longa e penosa; a morte pode ter sido indolor ou ser antecedida de um sofrimento excruciante; a vítima pode ter pressentido o avanço da morte ou não ter tido a mínima consciência da sua aproximação, v.g., por estar inconsciente. Qualquer destes factos não pode, simplesmente, ser deduzido da morte de uma pessoa; para que se deva assentar na sua realidade é necessário considerar outros parâmetros. Serve isto para dizer que não existe qualquer regra de experiência ou critério ou standard social que justifique a ilação de que a morte é sempre intuída, pressentida ou dolorosamente vivenciada pela vítima, tudo dependendo das circunstâncias em que aquele facto nefasto, lamentável e irreversível se verificou. Assim, dado que o tribunal não dispõe de qualquer regra de experiência que lhe permita concluir, sem deixar dúvidas, que a vítima experimentou um sofrimento antes do facto derradeiro e fatídico da morte e intuiu ou pressentiu a aproximação desta, deve exigir-se, de harmonia com as regras gerais de repartição do encargo da prova, daquele que reclama a reparação do dano corresponde, a demonstração da verificação dele (art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil).

               Cada pessoa só o é com outras. A vida representa um bem com nítidas vertentes morais e patrimoniais, objecto de ampla tutela pelo direito: a lesão ilícita de que resulte a morte tem, por isso, uma valência pluriofensiva. Apesar do carácter pessoalíssimo do bem vida, a sua supressão dá origem a danos, quer na própria pessoa da vítima quer nas pessoas que a rodeiam, de bem diversa natureza: danos patrimoniais e danos não patrimoniais,  A morte de uma pessoa é, por isso, susceptível de causar danos às pessoas a quem se mostre ligado por vínculos familiares, em especial aos pais, ao cônjuge e aos filhos (art.º 496.º n.º 2 do Código Civil)[38]. Esses danos tanto podem ser não patrimoniais – como por exemplo o sofrimento que experimentam quer com a morte da vítima quer a dor que sentiram ao presenciar o padecimento, longo e doloroso, suportado pelo próprio morto – como puramente patrimoniais, como, v.g., os lucros cessantes representados pela supressão da capacidade de ganho da vítima e pela perda da fonte de rendimento correspondente de que beneficiariam durante um período de tempo mais ou menos longo. Aqui devem ser ponderadas as circunstâncias em que a morte se verificou, o seu carácter imprevisto, a intensidade do impacto traumático e a dificuldade de superação do luto. Estando em causa o dano de apego ou de afeição – a dor e o desgosto de certos familiares da vítima, provocados pela morte desta – no domínio estrito da responsabilidade civil é determinante, na fixação dos montantes indemnizatórios, para além da fonte do elo familiar, o concreto grau de ligação afectiva existente entre os titulares da indemnização e aquele cuja morte a ocasionou, devendo relevar, no sentido da majoração, a coabitação do titular com a vítima à data da morte.

               O facto de que resulta a morte de uma pessoa atinge-a em toda a sua concreta dimensão. A lesão do bem vida é, portanto, o dano máximo e inexcedível: a morte não se limita a lesar bens de personalidade; a morte suprime, por inteiro, a personalidade mesmo. A reparação desse dano não opera, pois, por definição, na esfera jurídica da pessoa que sofreu a morte – mas de terceiros. A reversão da compensação, não a favor do titular atingido mas de terceiros – seja iure proprio, seja iure hereditatis – não pode, naturalmente, deixar de ser ponderada, em sentido limitativo, no cômputo da reparação[39].
Na sequência do Relatório do Conselho constituído pelo despacho n.º 9599-B/2017, ao abrigo da Resolução do Conselho de Ministros n.º 157-C/2017, integrado pelos Professores Joaquim de Sousa Ribeiro e Jorge Sinde Monteiro e pelo Juiz Conselheiro Mário Mendes, que fixou os critérios a utilizar para cálculo das indemnizações por morte das vítimas dos incêndios que deflagraram em Portugal Continental nos dias 17 de Junho e 15 de Outubro de 2017, a Provedora de Justiça – órgão de Estado independente ao qual foi atribuída, por aquela Resolução a competência para, através de um mecanismo extrajudicial, determinar o valor da indemnização a pagar em cada caso concreto – considerando, inter alia,  os resultados da avaliação da jurisprudência – fixou em € 80 000,00 o valor devido pelo dano morte, em € 70 000,00, sujeitos a majorações cumuláveis entre si, a compensação do dano ante-mortem, e em € 40 000,00 o montante dos danos próprios de natureza não patrimonial a pagar, individualmente, a cada ascendente, cônjuge, unido de facto ou descendente, com majorações cumuláveis[40]. Devendo atribuir-se, aos critérios contidos, quer no Relatório do Conselho quer à decisão da Provedoria de Justiça uma função ou um valor endoxal – como sucedeu com a Resolução do Conselho de Ministros sobre o caso do acidente de Entre-os-Rios, segundo o parecer do Provedor de Justiça - considera-se correcto – até pela proximidade objectiva com o caso do recurso em que o dano se verificou também no contexto ou em conexão estreita com um incêndio rural – utilizá-los,  aos menos de modo adjuvante, sem prejuízo da sua conjugação com os critérios jurisprudenciais ultima e comummente utilizados para a fixação desta categoria de danos.

               3.4. Error in iudicando por erro em matéria de provas.

3.4.1. Finalidades e parâmetros sob cujo signo são actuados os poderes desta Relação de correcção da decisão da matéria de facto da 1.ª instância.

O controlo da Relação relativamente à decisão da matéria de facto pode ter, entre outras, como finalidade, a reponderação da decisão proferida. A Relação pode reapreciar o julgamento da matéria de facto e alterar – e substituir – a decisão da 1ª instância, designadamente se a prova produzida – designadamente a prova pessoal produzida na audiência final, desde que tenha sido objecto de registo – impuser decisão diversa (art.ºs 666,º, nº 1, e 640.º, n.º 1, do CPC).

Todavia, os poderes de correção da decisão da matéria de facto são actuados na ausência de dois princípios que contribuem decisivamente para a boa decisão a questão de facto: o da oralidade e da imediação - a decisão da Relação não é atingida por forma oral – mas através da audição de registos fonográficos ou da leitura, fria e inexpressiva de transcrições – e sem uma relação de proximidade comunicante com os participantes processuais, de modo a obter uma percepção própria do material que há-de ter como base dessa mesma decisão.

Além disso, esse poder de correcção da decisão da matéria de facto orienta-se pelos parâmetros seguintes:

a) Do exercício da prova – que visa a demonstração da realidade dos factos – apenas pode ser obtida uma verdade judicial, jurídico-prática e não uma verdade, absoluta ou ontológica, matemática ou científica (art.º 341.º do Código Civil);

b) A livre apreciação da prova assenta na prudente convicção – i.e., na faculdade de decidir de forma correcta - que o tribunal adquirir das provas que foram produzidas (art.º 607.º, nº 5, do CPC).

c) A prudente obtenção da convicção deve respeitar as leis da ciência, da lógica e as regras da experiência - entendidas como os juízos hipotéticos, de conteúdo geral, desligados dos factos concretos objecto do processo, procedentes da experiência, mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram deduzidos e que, para além desses casos, pretendem ter validade para casos novos – e que constituem as premissas maiores de facto às quais são subsumíveis factos concretos;

d) A convicção formada pelo juiz sobre a realidade dos factos deve ser uma convicção subjectiva fundada numa convicção objectiva, assente nas regras da ciência e da lógica e da experiência comum ou de normalidade maioritária, e portanto, uma convicção cognitiva e não volitiva, voluntarista, subjectiva ou emocional.

e) A convicção objectiva é uma convicção argumentativa, i.e., demonstrável através de um ou mais argumentos capazes de se impor aos outros;

f) A apreciação da prova vincula a um conceito de probabilidade lógica – de evidence and inference, i.e., segundo um critério de probabilidade lógica, portanto, segundo o grau de confirmação lógica que os enunciados de facto obtêm a partir das provas disponíveis: os elementos de prova são assumidos como premissas a partir das quais é possível extrair inferências; as inferências seguem modelos lógicos; as diversas situações podem ser analisadas de acordo com padrões lógicos que representam os aspectos típicos de cada caso; a conclusão acerca de um facto é logicamente provável, como uma função dos elementos lógicos, baseada nos meios de prova disponíveis[41].

Note-se – de harmonia com a doutrina que se tem por preferível – que se a Relação tem o dever de proceder ao exame crítico das provas - novas ou mesmo só renovadas – que sejam produzidas perante ela e de formar, relativamente às provas submetidas à sua livre apreciação, uma convicção prudente sobre essas provas – não há razão bastante – legal ou sequer epistemológica - para que não proceda àquele exame e à formulação desta convicção - e à sua objectivação - no caso de reapreciação das provas já examinadas pela 1ª instância (art.º 607.º, nº 5, ex-vi art.º 663.º,  nº 2, do CPC). O controlo da correcção da decisão da matéria de facto da 1ª instância exige, realmente, que a Relação construa – autonomamente, embora com os limites decorrentes da sua vinculação à impugnação do recorrente - não só a sua própria convicção sobre as provas produzidas, mas igualmente que a fundamente[42].

A conclusão da correcção ou da incorrecção da decisão da questão de facto do tribunal da 1ª instância exige um juízo de relação ou de comparação entre a convicção que o decisor de facto daquela instância extrai dos elementos de prova que apreciou e a convicção que a Relação adquire da reapreciação dessas mesmas provas. Se a convicção do juiz da 1.ª instância e da Relação forem coincidentes, a decisão da matéria de facto daquele tribunal deve ter-se por correcta, com a consequente improcedência da impugnação deduzida contra ela; se a convicção do decisor da 1.ª instância e da Relação forem divergentes, a Relação deve fazer prevalecer a sua convicção sobre o convencimento do juiz da 1ª instância e, correspondentemente, revogar a decisão deste último e logo a substituir por outra conforme aquela mesma convicção[43].

A Relação deve, pois, formar uma convicção verdadeira – e fundamentada - sobre a prova produzida na 1.ª instância, independente ou autónoma da convicção do juiz a quo, que pode ou não ser coincidente com a deste último – não se limitando a controlar a legalidade da produção da prova realizada naquela instância e a aceitar o resultado do exercício da prova - salvo casos em que esse julgamento seja ilógico, irracional, arbitrário, incongruente ou absurdo[44].

O resultado da actividade de julgamento da matéria de facto pode, numa perspectiva essencialmente gnoseológica, exprimir-se numa afirmação susceptível de ser considerada verdadeira ou falsa. Contudo, essa verdade não é uma verdade absoluta ou ontológica, sendo antes uma verdade judicial, jurídico-prática - embora deva ser uma verdade assente nunca convicção, objectivável e motivável, portanto, capaz de se impor aos outros. No julgamento da matéria de facto não se visa o conhecimento ou apreensão absoluta de um acontecimento, tanto mais que intervêm, irremediavelmente, inúmeras fontes possíveis de erro, quer porque se trata de conhecimento de factos situados no passado, quer porque assenta, as mais das vezes, em meios de prova que, pela sua natureza, se revelam particularmente falíveis. Estão nestas condições, notoriamente, a prova testemunhal e a prova por declarações de parte.
A prova de um facto não visa, pois, obter a certeza absoluta, irremovível, da verificação desse mesmo facto. A prova tem, por isso mesmo, atenta a inelutável precariedade dos meios de conhecimento da realidade de contentar-se com certo grau de probabilidade do facto: a probabilidade bastante, em face das circunstâncias concretas, para convencer o decisor, conhecer das realidades do mundo e das regras de experiência que nele se colhem, da verificação da realidade do facto[45]. As provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma certeza absoluta acerca do facto a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida. Nestas condições, uma prova, considerada de per se ou criticamente conjugada com outras, é suficiente para demonstrar a realidade – não ontológica, mas jurídico-prática – de um facto quando, em face dela seja de considerar altamente provável a sua veracidade ou, ao menos, quando essa realidade seja mais provável que a ausência dela.
A verdade oferecida pela prova, dado que é alcançada por aplicação das normas e técnicas que valem no processo é, sempre, uma verdade contextual, obtida nas condições que a relação processual permite. Verdade que, todavia, é obtida no exercício de uma liberdade para a objectividade e não aquela que permite uma intime conviction, meramente intuitiva, mas aquela que se determina por uma intenção de objectividade, uma verdade que transcenda a pura subjectividade e que se comunique e imponha aos outros, pois tal só pode ser a verdade do direito e para o direito: o que pode ser obtido através da prova é uma verdade epistemológica – não uma verdade ontológica.
 Se isto é assim em geral, mais o deverá ser nos casos em que a prova, pela peculiaridade dos factos que constituem o seu objecto, se revela particularmente difícil como comprovadamente sucede, nos casos em que tem por objecto factos relativos à vida psíquica – também ditos factos internos.

Realmente, a prova em juízo nunca é fácil e é, por certo, muito mais difícil, quando o seu objeto são factos situados ou que relevam do foro interno ou do plano psíquico de uma pessoa, como o sofrimento psíquico ou psicológico, o medo, a ansiedade, a premonição de um acontecimento nefasto ou trágico, etc. Para ultrapassar esta dificuldade, justifica-se uma utilização intensiva de regras de experiência e de critérios sociais – do id quod plerumque accidit, daquilo que normalmente sucede[46] - e, mesmo, em última extremidade, de uma prova prima facie, i.e. de uma prova em que a tipicidade da inferência probatória é de tal modo forte que só cede perante dúvidas fundadas, quer dizer, perante uma contraprova também ela prima facie ou perante a prova do contrário.

A impugnação da matéria de facto pode também ter como fundamento, não o erro sobre a avaliação das provas, mas o erro sobre o objecto de prova, que deve ser constituído, exclusivamente, por factos controvertidos, ou mais rigorosamente, por afirmações de factos, i.e., proposições que descrevem um estado de coisas, qualquer acção, evento ou situação com relevância jurídica, proposições linguísticas que tanto podem consistir em acontecimentos físicos como estados anímicos ou psíquicos (art.º 341.º do Código Civil).

               3.4.2. Reponderação das provas.

Os factos cuja correcção do julgamento a apelante controverte no recurso são os contidos nos n.ºs 24 - Em consequência do despiste do veículo identificado em 3. o filho dos Autores, CC, sentiu dores – e 26 - O filho dos Autores, CC, teve consciência de que as consequências físicas resultantes do despiste do veículo identificado em 3. seriam graves e poderiam determinar a sua morte – da sentença impugnada.

Segundo a impugnante estes enunciados devem ser eliminados. Razão: a decisão sobre a matéria de facto deve estar expurgada de afirmações genéricas, conclusivas ou que comportem matéria de direito. O primeiro erro que se assaca ao julgamento daquelas proposições não é, assim, um erro na aferição ou avaliação das provas – mas um erro sobre o objecto da prova: aqueles enunciados, diz a impugnante, não constituem factos, mas afirmações conclusivas ou genéricas.

Decididamente não tem razão.

Abstraindo da orientação doutrinária e jurisprudencial, que se julga correcta, da admissibilidade enquanto objecto da prova dos denominados factos conclusivos ou equivalentes[47] – juízos conclusivos, expressões conclusivas – dado que os factos jurídicos são factos com relevância jurídica mas não são factos desprovidos de qualquer sentido empírico ou valorativo,  a verdade é que se não podem ter como tais as afirmações de que uma pessoa sentiu dores ou consciencializou a gravidade de uma lesão corporal e a sua aptidão para provocar a morte.

O objecto da prova, como se observou, deve ser constituído por factos, o mesmo é dizer, proposições que descrevem um estado de coisas, seja esse estado interno ou externo. E uma experiência de dor é uma proposição que descreve um estado de coisas, relativo ao imo de uma pessoa. Seria, de todo absurdo, por exemplo, que em vez da proposição dor apenas se devesse ter por admissível, como objecto ou resultado do exercício da prova, o enunciado experiência sensorial e emocional desagradável associada, ou semelhante à associada, a danos reais ou potenciais nos tecidos[48].  A experiência da dor como a percepção da gravidade da lesão corporal resultante de um qualquer evento e do risco ou da potencialidade para causar a morte – e o sofrimento associado à consciência de qualquer dessas circunstâncias, são afirmações de factos, como o são, indubitavelmente, por exemplo, veículo pesado de combate a incêndios, despiste, bombeiro, piso irregular, incêndio, etc., utilizadas na decisão da questão de facto, extraídas das alegações, da mesma espécie, das partes.

               Segundo a impugnante o error in iudicando dos apontados de facto radicaria, desde logo, da circunstância de nenhuma das testemunhas inquiridas em sede de audiência de discussão e julgamento depôs sobre a matéria contante nos pontos 24 e 26 da matéria dada como provada. Mas julga-se seguro que, no caso, não temos que nos preocupar com qualquer erro na apreciação da sempre falível prova testemunhal, pelo que não se justifica sequer compulsar essa prova: é que, como linearmente decorre da motivação exteriorizada pela Sra. Juíza de Direito para julgar demonstrados aqueles enunciados, a sua convicção não assentou naquela prova pessoal: o meio de prova que, no caso, exerceu uma influência decisiva no ânimo daquela Magistrada foi o relatório de autópsia médico-legal realizada pela perita médica do Serviço de Clínica e Patologia Forense do Gabinete Médico-Legal de ... do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, IP, na pessoa do filho dos apelantes – e do qual resulta que apresentava áreas do corpo “extensamente carbonizadas”, assim como várias escoriações e outras lesões que afetavam praticamente todo o seu corpo e fratura dos ossos da cabeça e que indica como causa da morte as lesões traumáticas crânio- meningo- encefálicas, associadas à intoxicação por monóxido de carbono conjugado com as regras de experiência comum. Relatório que foi oferecido pelos apelados e que a apelante não impugnou, v.g., através da arguição da sua falsidade.

               E é por ter inteira consciência da influência determinante que aquele relatório exerceu no espírito da Sra. Juíza de Direito que a apelante se apressa a desvalorizá-lo ou depreciá-lo, já que, no seu ver, a descrição dos elementos e conclusões obtidos no relatório final – da autópsia - constitui uma tarefa de teor essencialmente administrativo. Pedindo à apelante que nos absolva da franqueza, temos esta afirmação por completamente desacertada.

               É verdade que aquele relatório observou não o procedimento probatório das provas constituendas - quer dizer, as constituídas no processo pendente, dado que não foi produzido na sequência da realização de perícia médico-legal, requerida e ordenada neste processo - mas antes o procedimento probatório das provas pré-constituídas, i.e., constituídas fora e antes do processo – e, mais exactamente, o da prova documental. Mas esta diferença do procedimento probatório de um e de outro relatório – e mais do que isso - a diferença de finalidade do exercício do direito de contraditório - não obstacula à valoração do relatório como prova pericial proprio sensu embora, nos termos gerais, esteja, por inteiro, submetida, ao princípio da livre apreciação, quanto aos juízos ou avaliações de que é continente. O relatório tanatológico, apesar de constituir um documento autêntico, está, na verdade, também inteiramente sujeito à livre apreciação do juiz, no segmento em que contém juízos ou avaliação pessoais do seu autor e documentador (art.ºs 369.º, n.ºs 1 e 2, e 371.º n.º 1, in fine, do Código Civil).

Em certos casos, a lei impõe ao juiz a conclusão que há-de tirar de certo meio de prova e, portanto, a relevância que deve dar a esse mesmo meio de prova. É nisto que consiste a prova legal ou tarifada. Face a este tipo de prova, é imposto ao juiz que conclua, em face de certo meio de prova, que os factos estão provados. Neste tipo de prova legal positiva, o meio de prova é condição suficiente da prova: o juiz é vinculado a tomar como certa uma conclusão – verdade formal – ainda que não sejam oferecidas todas as garantias da sua conformidade à verdadeira verdade – à verdade material. Este tipo de prova divide-se em três espécies: prova bastante, prova plena e prova pleníssima.

Partindo da força probatória – no sentido de meio de prova – é, realmente, corrente o distinguo entre prova bastante, prova plena e prova pleníssima[49]. Prova bastante é a que, na ausência de qualquer dúvida em contrário, a lei permite como fundamento da convicção do juiz, mas que cede mediante contraprova; prova plena é a que cede - mas só cede - perante prova do contrário.

Produzida uma prova plena, é irrelevante criar no espirito do juiz uma situação de dúvida, dado que a lei manda resolver essa situação de dúvida no sentido indicado pela mesma prova; fica, porém, salva à contraparte a possibilidade de provar a irrealidade do facto. A prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto dela objecto (art.º 347.º do Código Civil).

A lei prevê duas modalidades de prova plena: a prova plena simples – em que a prova do contrário pode ser feita por qualquer meio – e a prova plena qualificada, em que a prova do contrário não pode fazer-se por testemunhas ou presunções judiciais. A regra é a de a prova plena ser qualificada (art.ºs 351.º e 393.º, n.º 2, do Código Civil).

É indubitável que o relatório tanatológico elaborado por perito médico de organismo do INMLCF, IP, constitui um documento autêntico (art.º 369.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil). Faz prova, por isso, prova plena dos factos que sejam atestadas pela entidade documentadora (art.º 371.º, nº 1, do Código Civil). Este ponto merece ser examinado de forma detida.

               A força probatória do documento consiste no valor ou na fé que, como meio de prova a lei lhe confere. Esse valor pode referir-se do documento em si mesmo; ao seu conteúdo. No primeiro caso, têm-se em vista a força probatória formal do documento, a sua autenticidade ou genuinidade; no segundo, a sua força probatória material. A força probatória formal do documento diz, desde logo, respeito, à proveniência dele, à pessoa de que emana. No tocante à proveniência do documento, estabelece a nossa lei substantiva civil fundamental uma presunção de autenticidade: desde que o documento se mostre subscrito pelo autor, com assinatura reconhecida notarialmente ou com o selo do respectivo serviço, presume-se que provêm da autoridade ou oficial público a quem é atribuído (art.º 370.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).

               À economia do recurso interessa, porém, a força probatória material do documento, quer dizer, a força probatória dele quanto às declarações ou narrações de que é continente.

               Em primeiro lugar, o documento autêntico faz prova pela dos factos referidos como praticados pelo documentador: tudo o que o documento referir como tendo sido praticado pela entidade documentadora, tudo o que, segundo o documento, seja obra do seu autor, tem de ser aceite como exacto (art.º 371.º, n.º 1, 1.ª parte, do Código Civil). Assim, por exemplo, quando o notário afirma no documento que o leu em voz alta perante os outorgantes, que lhes explicou o seu conteúdo e os direitos que adquiriam e as obrigações que contraíam, tal afirmação há-de ter-se por verdadeira; tem de admitir-se como certo que o notário praticou o acto que, no instrumento, diz ter praticado: a fé pública de que goza o documentador garante a veracidade desse facto.

               Depois, o documento autêntico prova a verdade dos factos que se passaram na presença do documentador, quer dizer, os factos que nele são atestados com base nas suas próprias percepções (art.º 371.º, n.º 1, 2ª parte, do Código Civil). Este ponto – que é, de resto, o mais delicado da eficácia probatória do documento autêntico – deve ser entendido com habilidade. O documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos que documenta se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que tais factos correspondem à verdade. Dito doutro modo: o documento autêntico não fia, por exemplo, a veracidade das declarações que os outorgantes fazem ao documentador; só garante que eles as fizeram[50].

               Se o documento prova plenamente os factos atestados que se passaram na presença do documentador, v.g., as declarações, já não prova de pleno a sinceridade desses factos ou a sua validade ou eficácia jurídicas, pois de uma coisa e de outra não pode aperceber-se a entidade documentadora. Pode, assim, demonstrar-se que a declaração inserta no documento não é sincera nem eficaz, sem necessidade de arguição da falsidade dele. Assim, por exemplo, se numa escritura pública de compra e venda, o vendedor declara ao notário que já recebeu o preço, aquele documento só faz prova plena de que aquele outorgante fez aquela declaração negocial; não prova, porém, que tal afirmação corresponde à verdade[51].

               Assim, o relatório do exame tanatológico feito na pessoa do filho dos apelados faz prova plena quanto ás lesões traumáticas e às zonas do corpo consumidas pelo fogo, dado que foram directamente percepcionados pelo perito, pelo autor do exame e documentador. Não assim, evidentemente, quanto aos juízos e avaliações ou apreciações desse mesmo perito. Mas neste plano há, irrecusavelmente, que entrar em linha de conta com a densidade técnica desses juízos ou avaliações, com o facto de provirem de pessoa dotada de particulares conhecimentos especiais que o julgador, comprovadamente, não domina, embora daí não decorra que se deva considerar o parecer ou juízo do perito como contendo verdadeiras decisões, às quais o juiz não possa, irremediavelmente, subtrair-se. Uma tal conclusão só se explicaria por um deslumbramento face à prova ou juízo científicos de todo inaceitável e incompatível com os dados, que mesmo relativamente à pericial, a lei coloca à disposição do intérprete e do aplicador. Agora, convém não esquecer o particular objecto da actividade do perito: a percepção ou averiguação de factos que necessitam de competências científicas ou técnicas especiais, relativamente aos quais se pressupõe a insuficiência dos conhecimentos do juiz.

Neste domínio importa, contudo, ter presente o distinguo entre a perícia científica e a perícia de opinião ou opinativa.

O espectro das ciências que podem disponibilizar provas ou juízos periciais é cada vez mais alargado. De um aspecto, as denominadas ciências duras são cada vez mais complexificadas e especializadas; de outro, as chamadas ciências moles ou sociais como a psicologia, a psiquiatria, a sociologia, a economia, etc., são consideradas frequentemente como fontes da prova em processo civil. O alargamento do espectro das provas periciais torna particularmente complexo o problema do controlo da fiabilidade desta espécie de prova, a que, evidentemente, a ciência do jurídica não ficou indiferente. É neste contexto que se situa o distinguo apontado.

O juízo científico produz certeza, no sentido de que perante o estado atual do saber científico, o seu resultado pode ser idêntico para todas as pessoas, i.e., só é possível um resultado: se houver resultados divergentes é porque um deles está, necessariamente, errado. Está nestas condições, por exemplo, a determinação da área de uma superfície ou a composição química de uma matéria. A perícia de opinião, essa diversamente, produz convicção: não se trata já de verificar a exactidão de um determinado enunciado de facto – mas de valorar um facto ou alguma circunstância desse mesmo facto, valoração que envolve, necessariamente, a emissão de um juízo de valor. Neste caso, podem existir avaliações divergentes e mesmo contraditórias. Serve de exemplo a determinação do valor de uma coisa. Esta distinção traz, evidentemente, implicada uma constelação de consequências. Perante um juízo científico, não é admissível que o juiz se afaste, arbitrariamente, do seu resultado, com o argumento de que esse resultado não o convence ou de que tem opinião contrária. Não é concebível, por exemplo, que o juiz discorde da conclusão pericial de que a água é composta por uma molécula de oxigénio e duas de hidrogénio. Diversamente, na perícia de opinião, o juiz deve ser particularmente prudente na adesão ao parecer do perito, sendo-lhe exigível um juízo de valor sobre o seu conteúdo, a idoneidade do perito e o resultado que disponibiliza em função do seu objecto[52].

À prova pericial científica deve, pois, reconhecer-se um significado probatório diferente do de outros meios de prova, maxime da prova testemunhal. Maneira que, se os dados de facto pressupostos estão sujeitos à livre apreciação do juiz – já o juízo científico que encerra o parecer pericial, só deve ser susceptível, embora não necessariamente[53], de uma crítica material e igualmente científica. Deste entendimento das coisas deriva uma conclusão expressiva: sempre que entenda afastar-se do juízo científico, o tribunal deve motivar com particular cuidado a divergência, indicando as razões pelas quais decidiu contra essa prova ou, pelo menos, expondo os argumentos que o levaram a julgá-la inconclusiva[54] (art.º 607.º, n.º 2, do CPC). Dever que deve ser cumprido com particular escrúpulo no tocante a juízos científicos dotados de especial densidade técnica – como são, reconhecidamente, por exemplo, os que relevam da ciência médica - ou obtidos por procedimentos cuja fiabilidade científica seja universalmente reconhecida[55].             

Portanto, em boa verdade, não se deve confiar, de forma ilimitada ou irrestrita, no efeito prático do ditame de que o juiz é o perito dos peritos. Dado que o juízo pericial supõe a insuficiência de conhecimentos do magistrado, é difícil que este se substitua inteiramente ao perito para refazer, por si, o trabalho analítico e objectivo para o qual não dispõe de meios subjectivos. Isto significa que, a não ser que sobrevenham novos e seguros elementos de prova, maxime, uma nova perícia, a liberdade do juiz não o autoriza a estabelecer, sem o concurso dos peritos, as razões da sua convicção.

Por mais que se afirme a máxima de que o magistrado é o perito dos peritos, a hegemonia da função jurisdicional em confronto com a função técnica e se queira defender o princípio da livre apreciação, não é raro que o parecer pericial desempenhe papel absorvente na decisão da causa.

Assim, considerando, de um aspecto, que apesar de relativamente ao relatório tanatológico oferecido pelos apelados ter sido exercido, apenas, o contraditório específico das provas constituídas, mas que a apelante não o impugnou de modo relevante – v.g. através da arguição da sua falsidade – que não há motivo, por mais infundamentado que seja, para controverter a competência técnica do perito que o elaborou,  e que o relatório é completo, claro e intrinsecamente harmónico, i.e., está isento dos vícios da deficiência, obscuridade ou contradição - e, de outro – e abstraindo mesmo da sua clara dimensão técnica  -  que o parecer do perito se encontra bem fundamentado e não pode invocar-se contra ele quaisquer outros elementos seguros de prova que deponham, decisivamente, em sentido contrário, há que concluir que é inteiramente adequado, numa avaliação prudencial, quer para estabelecer a realidade dos factos relativos às lesões patenteadas pelo corpo do filho dos apelados e a sua etiologia e às causas determinantes ou últimas da sua morte. Se o juízo pericial contido no relatório tanatológico se apresenta correctamente motivado e não se lhe pode opor quaisquer provas e revestindo-se a questão de facto correspondente de feição essencialmente técnica, é perfeitamente compreensível que se lhe reconheça, no caso, uma especial força persuasiva e, portanto, que a prova correspondente exerça uma influência dominante na decisão da matéria de facto com que se conecta e é susceptível de constituir fonte ou elemento de esclarecimento de convicção sobre a realidade dos factos correspondentes.

De resto, a causa ou causas da morte violenta do filho dos apelados – comprovadamente estabelecida a partir do relatório tanatológico – foi julgada provada no ponto 20 da sentença impugnada, julgamento que não é impugnado no recurso.

Assente o valor ou a eficácia probatória que se deve assinalar ao relatório tanatológico, há que ponderar, face á convicção argumentativa objectivada pelo tribunal da 1.ª instância, a prova por presunção.

Na fundamentação da sentença, o juiz pode extrair os factos presumidos com base nos factos probatórios (art.º 607.º. n.º 4, CPC). Em concreto: se dos factos assentes ou da fundamentação sobre a matéria de facto constarem factos probatórios donde se possa concluir outros por presunção – de facto, de direito ou judicial – o juiz deve tirar essa conclusão e considerar provado o facto ou o direito presumido.

A presunção judicial situa-se no âmbito da chamada prova complexa, i.e., da prova através da qua o facto probando é inferido de um facto probatório ou instrumental. Como qualquer outra presunção, a presunção judicial permite a inferência de um facto desconhecido de um facto conhecido: este o facto probatório, sendo o facto desconhecido o facto probando. A relação entre um e outro é estabelecida através de regras ou máximas de experiência.

As presunções são, pois, ilações que a lei ou o juiz tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (art.º 349.º do Código Civil). As presunções podem ser legais, se estabelecidas pela lei, ou judiciais. Estas últimas – únicas que para o caso do recurso interessam – dizem-se também de facto ou hominis ou simples. As presunções hominis são afloramento nítido do princípio da livre apreciação da prova e o facto de só serem possíveis nos casos em que é admissível a prova testemunhal, mostra a fragilidade com que as ilações em que se resolvem são encaradas pela lei (art.º 351.º do Código Civil). O juiz, na base do id quod plerumque accidit – do que normalmente sucede – ou prima facie – na primeira aparência – infere conexões normais ou sequências típicas de factos. Mais precisamente: a presunção é a inferência ou processo lógico, mediante o qual, por via de uma regra de experiência - id quod plerumque accidit – se conclui, verificado certo facto, a existência de outro facto que, em regra, é consequência necessária daquele. O facto conhecido, de que se infere o outro, é a base ou o sopé da presunção.

               As presunções judiciais, de facto ou hominis ou simples presunções são afinal o produto de regras de experiência: o juiz valendo-se de certo facto e de regras de experiência, conclui que aquele denuncia a existência de outro facto. Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede, então, mediante presunção ou regra de experiência ou, se se quiser, vale-se de uma prova de primeira aparência[56].

               As regras de experiência são normas para a apreciação de factos e, com isso, para a aquisição deles, permitindo concluir de um facto pela existência de outro. E, na verdade, a cada passo, o juiz tem de socorrer-se de regras de experiência para a fixação dos factos ou da conexão causal entre dois eventos, sem as quais, portanto, lhe seria impossível decidir a questão de direito.

               No seu funcionamento, a presunção produz um efeito materialmente idêntico à exclusão do ónus da prova, embora se não confunda com este. Na verdade, a presunção não fornece a demonstração do facto, mas dá por admitida a sua realidade antes de toda e qualquer demonstração, com base na experiência comum de como certos factos normalmente se verificam – quod plerumque accidit – sem esperar o exercício da prova. Justamente no valor de credibilidade que, de per se, apresenta a regra de experiência está o fundamento racional da presunção e na medida desse valor assenta o seu grau de rigor. A presunção pode, assim, ser o único meio em que o juiz baseia a sua convicção, podendo até fazer prevalecer a presunção em detrimento de outras provas produzidas e mesmo recorrer a ela ainda que o facto questionado possa ser apurado por outro meio relativamente mais seguro. De outro aspecto, nada exclui que na base da presunção se situe um único facto: o que é necessário é que ele seja inequívoco, i.e., que faça aparecer como necessária a existência do facto desconhecido. No entanto, para que a presunção se aplique é indispensável a prova do facto que constitui a sua base.

               As presunções sejam judiciais ou de facto ou legais, não são, propriamente, meios de prova – mas somente meios lógicos ou mentais de descoberta de factos e firmam-se mediante regras de experiência. Rigorosamente são, portanto, operações probatórias, tendo por base as regras de experiência resultantes do curso normal dos factos[57]. Ponto é que exista uma relação entre o facto probatório e o facto probando  de harmonia com a inferência para a melhor explicação, i.e., sempre que o primeiro constitui a melhor explicação do segundo[58].

De harmonia com os factos incontroversamente adquiridos para o processo, é a seguinte a dinâmica dos eventos que culminaram na morte do filhos dos apelantes: o veículo pesado de combate a incêndios em que era transportado despistou-se e despenhou-se por uma ribanceira, capotou várias vezes, imobilizando-se a cerca de 200 metros da via pela qual circulava; todos os ocupantes do veículo, com excepção do filho dos apelantes, foram projectados para o exterior do veículo, e tendo conseguido chegar ao cimo da estrada antes da aproximação do incêndio, chamaram o filho dos apelados, mas este não era visível nem respondeu; como o incêndio rural lavrava e progredia sem controlo, os restantes ocupantes do veículo abandonaram o local; o filho dos recorridos sofreu lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas que, associadas à intoxicação por monóxido de carbono, lhe causaram a morte, tendo o seu corpo sido parcialmente consumido pelo fogo.

Assinalando o relatório tanatológico como etiologia concorrente ou adjuvante da morte do filho dos apelantes, lesões traumáticas crânio encefálicas, associadas à intoxicação por monóxido de carbono e que o seu corpo foi parcialmente consumido pelo fogo -  facto de verificação imperativamente posterior ao do despiste e revolvimento pelo declive do veículo automóvel em que seguia – há que concluir que, no momento em que foi atingido pelo incêndio, tinha capacidade respiratória e, portanto, se encontrava vivo. Vivo, mas não necessariamente consciente ou senciente. E, no caso, dado que a vítima, logo após o despenhamento e imobilização do veículo em que seguia não respondeu aos chamamentos dos camaradas sobreviventes, a única conclusão plausível é a de que não estava consciente ou não tinha senciência.

Em geral, pode extrair-se, por aplicação de um regra de experiência  - que outra coisa não é que uma inferência que é retirada de fenómenos de facto com base num experiência, seja ela referida à experiência geral da vida, a conhecimentos científicos ou à observação e generalização de casos individuais – que uma pessoa que sofreu fracturas, contusões, sofreu dores: é da experiência – quer da vida quer da ciência, que as lesões corporais – contusões, fracturas ósseas, etc. – provocam dores e mesmo, no caso de fracturas ósseas traumáticas, dores  agudas ou violentas.

A inferência entre o facto probatório – as lesões patenteadas pelo corpo da vítima – e o facto probando – as dores que, aquelas lesões lhe causaram - pode, pois, fundamentar-se numa regra de experiência, i.e., numa regra que exprime a relação normal, típica entre esses dois factos. Podemos até ir mais longe: aquele facto pode estabelecer-se através de uma prova prima facie ou de interim[59]. Simplesmente essa inferência exige a prova de que a vítima, no momento em que sofreu aquelas lesões estava consciente, e esta senciência não é, no caso, susceptível de ser extraída, por aplicação de regras de experiência ou critérios sociais, quer da dinâmica dos eventos que culminaram na morte quer da etiologia ou das causas deste facto trágico.

E o mesmo se pode dizer quanto ao facto do pressentimento pela vítima do risco de sofrer lesões graves e mesmo mortais. Para que tal facto pudesse ser inferido a partir da dinâmica dos eventos que constituem a etiologia do facto trágico danoso – o despenhamento do veículo pesado e a distância percorrida em rolamento sobre si mesmo e a sua imobilização num espaço para o qual progredia o incêndio rural – e das lesões documentadas no relatório tanatológico, era necessária a aquisição de um outro parâmetro que, no caso, a matéria de facto não documenta: o estado de consciência da vítima no momento que precedeu a morte. Foi, aliás, por se desconhecer o período durante o qual o filho dos Autores terá permanecido consciente depois de o veículo ter entrado em despiste e por o filho dos Autores poder não ter permanecido consciente durante um período suficiente para se aperceber de todas as dimensões em que tais consequências se refletiriam, nomeadamente no que concerne à circunstância de não voltar a ver os seus pais que a Sra. Juíza de Direito julgou não provado que o seu sofrimento tornou-se ainda mais intenso em virtude de a vítima se ter apercebido de que iria abandonar para sempre os seus pais. De resto, não parece que seja congruente concluir que a vítima teve consciência para pressentir o risco de lesão grave e da sua virtualidade para provocar a morte – mas já não para se aperceber de que não mais voltaria a ver os pais. E – repete-se - o que a matéria de facto inculca – designadamente o facto de a vítima não ter respondido aos chamamentos dos camaradas sobreviventes – é que, estando ainda vivo, estaria inconsciente, ignorando-se, além disso, o momento em que perdeu a consciência, o momento e o modo como contraiu ou ocorreram as lesões corporais constatadas pelo relatório tanatológico.

E havendo uma dúvida irredutível sobre a realidade destes factos, e não sobre a repartição do ónus da sua prova nem sobre a valoração a atribuir ao meio de prova, há que resolvê-la contra a parte a quem o facto aproveita, devendo por isso ficcionar-se o facto contrário aquele que se pretendia provar (art.ºs 414.º do CPC e 346.º, in fine, do Código Civil).

Assim, considera-se que a decisão da Sra. Juíza de Direito ao julgar provadas as proposições contida nos 24. e 26. desses mesmos factos, assentou numa convicção que não foi alcançada com o uso da prudência, i.e., da faculdade de decidir de forma correcta. Dito doutro modo: como a convicção que esta Relação forma a partir das provas produzidas na 1.ª instância não coincide com a daquela Magistrada no tocante ao último daqueles enunciados, importa fazer prevalecer a convicção deste Tribunal relativamente a da 1.ª instância e, consequentemente, julgar aqueles enunciados não provados.
3.5. Concretização.
O princípio da equidade que deve estar presente na fixação de compensações por danos não patrimoniais obriga a uma criteriosa ponderação das particulares circunstâncias em que se deram os eventos lesivos e das causas que contribuíram para o seu desfecho catastrófico. Decerto que deve ser levado em conta a necessidade de observância dos princípios da universalidade e da igualdade, mas nunca deixando de ter em atenção as especiais e complexas circunstâncias de que se reveste a situação concreta (art.ºs 12.º e 13.º da Constituição da República Portuguesa).
A sentença apelada computou a compensação pela destruição da vida do filho dos apelantes em € 100 000,00, valor que encontra algum eco na jurisprudência do Supremo[60]. Supremo que, aliás observa que se já em 2013 a jurisprudência passou a atribuir valores que oscilam entre os € 50 000,00 e € 80 0000,00, chegando a atingir € 100 000,00 para vítimas jovens – cfr. v.g. os Acs. de 19.10.2013 (62/10) e de 18.12.2013 (1749/06) - a posterior evolução e princípio da actualidade reclamam valor superior[61].
Mas há que reconhecer que o valor de € 100 000,00 não se encontra dentro do espectro mais comum das indemnizações atribuídas pelo Supremo para o dano a cuja mensuração se procede. Como o acórdão do Supremo de 19.01.2023 (1437/21) salienta o valor padrão da indemnização que, nos últimos tempos tem norteado a jurisprudência dos tribunais superiores, tem rondado os € 80 000,00, avultando como critério diferenciador o grau de culpa do lesante[62]. Acórdão que, ponderando, designadamente a culpa grave do lesante e a desvalorização monetária provocada pelo recente fenómeno inflacionário, fixou o valor daquela compensação em € 95 000,00. Considerando as circunstâncias em que a morte do filho dos apelantes ocorreu, e a sua extrema violência, e o elevado grau de culpa do condutor do veículo, julga-se correcto transpor para, para o caso nos ocupa, a quantificação feita, naquele acórdão, para compensar o dano da perda da vida que, portanto, assim se fixa em € 95 000,00.
Já assentámos em que os apelados não demonstraram, como lhes competia, os danos sofridos pela vítima entre a produção do evento lesivo e a morte. Mas há que fixar a compensação pelos danos que eles mesmos comprovada e directamente sofreram com a morte trágica do filho. Compensação que deve ter em conta que os danos não patrimoniais têm natureza infungível, que impede em absoluto, quer a reintegração da situação anterior à produção do evento danoso, quer a fixação de um exacto equivalente pecuniário, pelo que a compensação tem que ser feita por via do arbitramento de uma quantia monetária, cujo montante resulte da ponderação de critérios de equidade que tome em conta, tanto a gravidade objectiva dos factos geradores do dano e do dano em si, como os contornos subjectivos desse mesmo dano.
E o quadro que a este propósito a matéria de facto eloquentemente patenteia é de uma extrema dramaticidade. Assim, considerando as circunstâncias particularmente gravosas e cruéis em que a morte do filho dos apelantes ocorreu, que sobrelevam os que ocorrem na generalidade dos casos, a forte vinculação afectiva que os ligava, a sua coabitação e comunidade de vida, a angústia subsequente ao desaparecimento e o desmoronamento da esperança de que fosse encontrado com vida, e a destruição parcial do seu corpo por inceneração com o consequente desfiguramento, tudo aponta para um luto de grande impacto traumático duradouro e de muito difícil superação. O filho que perde um pai chama-se órfão; mas não há sequer nome para um pai que perde um filho.
Face ao carácter hiperdramático da morte do filho dos apelantes e ao grau particularmente elevado da dor e do sofrimento que aqueles experimentaram e ainda experimentam, julga-se adequada a quantificação deste dano encontrada pela sentença apelada: € 40 000,00 para cada um dos apelados[63].
Nestas condições, o recurso deve proceder – mas apenas parcialmente.
Do percurso argumentativo percorrido extraem-se, com proposições conclusivas mais salientes, as seguintes:
(…).
A apelante e os apelados sucumbem, reciproca e quantitativamente, no recurso. Essa sucumbência torna-os objectivamente responsáveis pela satisfação das respectivas custas, na exacta medida da quantidade do seu decaimento (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
4. Decisão.
Pelos fundamentos expostos, julga-se o recurso parcialmente procedente e, consequentemente: a. Modifica-se, nos termos supra expostos, a decisão da matéria de facto da 1.ª instância;
b. Revoga-se a decisão impugnada:
b1. No segmento em que fixou em € 10 000,00 a indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos por CC nos momentos que precederam a sua morte, absolvendo-se a apelante, A..., Companhia de Seguros SA, do pedido correspondente;
b2. Na parte em que fixou, como compensação pela perda da vida de CC, a quantia de € 100 000,00, que se substitui, pela de € 95 000,00, com a consequente absolvição, no tocante à diferença, da recorrente, A..., Companhia de Seguros, SA, do pedido respectivo;
c. Mantém-se, no mais, a sentença impugnada.
Custas pela apelante e pelos apelados, na proporção da sua sucumbência recíproca.
                                                                                                                                     2024.01.23
 






               [1] Os casos de exclusão da cobertura são factos impeditivos do direito do segurado à indemnização, competindo, por isso, ao segurador, o ónus da sua alegação e da sua prova (artº 342 nº 2 do Código Civil): Ac. do STJ de 13.10.2013, www.dgsi.pt.
               [2] António Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, Almedina, Coimbra, 2013, pág. 700.
               [3] José A. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, Coimbra, 2009, pág. 718.
               [4] António Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, cit., págs. 699 e 701.
               [5] O princípio indemnizatório é multiplamente justificado: no plano histórico, visa esconjurar o risco de usura; numa perspectiva significativa e ideológica, visa evitar a contracção de seguros com objectivos de lucro; no plano social tem por finalidade reduzir as fraudes e o enriquecimento ilegítimo. Cfr. António Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, cit., págs. 802 e 803 e, para outras justificações, Francisco Rodrigues da Rocha, Do Princípio Indemnizatório no Seguro de Danos, págs. 52 e 53.
               [6] Assim, v.g., o Ac. do STJ de 08.06.2017 (7087/15.0T8STB.E1.S1) e Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro e Terceiros, Estudo de Direito Civil, Coimbra Editora, pág. 270.
[7] Esta solução é indubitável face à redacção actual da norma, impressa pela Lei n.º 147/2015, de 9 de Agosto). A contida na redacção originária do preceito era, de resto, objecto de crítica, tanto doutrinal, como jurisprudencial: Maria Inês de Oliveira Martins, O Seguro de Vida enquanto Tipo Contratual Legal, Coimbra, 2010, págs. 326 a 328, Arnaldo Costa de Oliveira, in Lei do Contrato de Seguro Anotada, Pedro Romano Martinez et alli, Coimbra, 2016, 3.ª edição, págs. 501 e 502, Francisco Rodrigues da Rocha, Da Sub-rogação no Contrato de Seguro, 2010/2011, FDUL, págs. 126 e 127; Ac. do STJ 21.06.2022 (25435/19). A proibição de sub-rogação deve, naturalmente, ter-se por imperativa, gerando, consequentemente a nulidade da convenção contratual contrária, apesar de não constar da lista de normas de absolutamente imperativas contida no art.º 12.º da LCS, dado que tal enumeração deve ter-se por meramente exemplificativa, não pretendendo ser totalmente exaustiva (art.ºs 280.º e 292.º do Código Civil).
[8] João Paulo Raposo, Pluralidade de Seguros: Conceito, extensão e valência, disponível em Julgar Online, 2016, pág. 73.
[9]  Paula Meira Lourenço, A Função Punitiva da Responsabilidade Civil, Coimbra Editora, 2006, págs. 228 a 293.
[10] António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, AAFDL, 1980, vol. 2º Volume, pág. 283.
[11] Pereira Coelho, o nexo de causalidade na responsabilidade civil, Boletim da Faculdade de Direito, Suplemento IX, Coimbra, 1951, pág. 107 e ss. Tratando-se de danos não patrimoniais, só são atendíveis os que, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito (artº 496 nº 1 do Código Civil). À luz desta exigência, a jurisprudência sustenta que não compensáveis dos danos não patrimoniais que se traduzam em meros incómodos. Cfr., v.g., Acs. do STJ de 2.10.1973, BMJ n.º 230, pág. 107, de 26.6.1991, BMJ n.º 408, pág. 438, e de 10.11.2003, CJ, STJ, I, III, pág. 132.
[12] António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º volume, cit., págs. 285 e 286.
[13] Maria Júlio de Almeida e Costa, Direito das Obrigações, cit., págs. 514 e 515.
[14] Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6ª ed., Coimbra Editora, 1989, pág. 370.
[15] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 10ª ed., Almedina, Coimbra, 2000, pág. 601.
[16] Vaz Serra, Reparação do Dano Não Patrimonial, BMJ nº 83, págs. 65 e ss.
[17] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 5ª ed. Almedina, Coimbra, 1986, pág. 566.
[18] Ac. do STJ de 26.02.04, www.dgsi.pt.
[19] António Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, vol. II, Almedina, Coimbra, 1984, pág. 1202 e 1203 e A Decisão Segundo a Equidade, O Direito, Ano 122, II, 1990, pág. 261 e ss.
[20] António Pinto Monteiro, Sobre a Reparação dos Danos Morais, Revista Portuguesa do Dano Corporal, 1992, Ano 1º, I, pág. 21, e Paula Meira Lourenço, A Função Punitiva da Responsabilidade Civil, Coimbra Editora, 2005, pág. 251 e ss. e Ac. da RL de 15.12.1994, CJ, 94, V, pág. 135 e José Carlos Brandão Proença, A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, Almedina, Coimbra, 1997, pág. 167.
[21] Sinde Monteiro, Dano Corporal (Um roteiro do direito português), RDE, 1989, nº 15, pág. 372 e Reparação dos Danos Pessoais em Portugal – A lei o Futuro (Considerações de lege ferenda a propósito da discussão da “alternativa sueca”), CJ, XI, IV, pág. 12, e José Carlos Brandão Proença, A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, Almedina, Coimbra, 1997, pág. 168, nota 518, e Acs. do STJ de 26.05.2002 e de 17.11.2005, www.dgsi.pt. No limite, a disposição do art.º 494.º do Código Civil pode ser julgada constitucionalmente imprópria, por violação do princípio da igualdade. Cfr. o Ac. do STJ de 11.01.2007, www.dgsi.pt.
[22] Vaz Serra, RLJ Ano 103, pág. 179, e Ac. da RP de 20.04.2006, www.dgsi.pt.
[23] O bem atingido por aquele dano não é a esperança de vida – mas a vida em si mesma: cfr., o Ac. do STJ de 17.02.2000, www.dgsi.pt.
[24] Maria Manuel Veloso, Danos não Patrimoniais, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, vol. III, Coimbra Editora, 2007, págs. 543 e 544, e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, cit., pág. 629; Acs. do STJ de 27.09.2007, www.dgsi.pt. e de 30.10.96, BMJ nº 460, pág. 444.
[25] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo III, Pessoas, 2ª ed., 2007, Almedina Coimbra, pág. 169 e António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Responsabilidade Civil, volume II, Indemnização dos Danos Reflexos, Coimbra, Almedina, 2005, pág. 23.
[26] João António Álvaro Dias, Dano Corporal, Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios, Coimbra, Almedina, 2001, pág. 357, nota 795.
[27] Luís Manuel Telles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 2ª edição, Coimbra, Almedina, pág. 318, nota 660.
[28] O paradigma da responsabilidade civil é o da patrimonialidade do dano, e, por isso, a reparação do dano não patrimonial, escapa, em larga medida, às coordenadas daquele sistema: cfr. Pessoa Jorge, Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra, 1995, pág. 376.
[29] António Menezes Cordeiro, Da Responsabilidade Civil dos Administradores das Sociedade Comerciais, Lex, Lisboa, 1997, pág. 478.
[30] Cfr., v.g., Ac. do STJ de 05.07.2007, www.dgsi.pt.
[31] Jorge Sinde Monteiro, Reparação dos Danos Pessoais em Portugal, CJ, 86, IV, pág. 11.
[32] Acs. do STJ de 13.05.1996, BMJ nº 357, pág. 398, e da RC de 02.11.1993, BMJ n.º 431, pág. 567.
[33] É, portanto, de verberar a doutrina estabelecida nos Acs. da RP de 08.02.2001, www.dgsi.pt – que distingue o valor de natureza da vida, igual para toda a gente, e um valor social, a função normal que desempenha na família e na sociedade em geral – e do STJ de 27.02.2002, www.dgsi.pt – que invocando a função social da vítima e a circunstância de não trabalhar e não ter agregado familiar constituído e se mostrar adito ao consumo de estupefacientes, atribuiu ao dano morte um valor inferior ao comummente fixado. Em face do carácter absoluto da vida humana e da igual dignidade de todas as pessoas, na mensuração do dano resultante da sua supressão não há que considerar, por exemplo, o parâmetro da idade da idade da vítima. Cfr. Acs. do STJ de 20.06.2006 e 08.06.2006, www.dgsi.pt.
[34] Cfr., v.g., o Ac. do STJ de 12.02.1969, BMJ n.º 184, pág. 151 – anotado desfavoravelmente por Vaz Serra na RLJ, Ano 103, pág. 174 – votos de vencido no Ac. do STJ de 17.03.1971, BMJ n.º 205, pág. 150 – RLJ Ano 105, pág. 63, Ac. da RL de 04.02.1977, CJ, 1977, pág. 197, e Oliveira Ascensão, Direito Civil, Sucessões, Coimbra, 2000, pág. 245, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10 ed., Coimbra, Almedina, pág. 615 e Ribeiro de Faria, volume I, Coimbra, Almedina, págs. 493 e 494.
[35] Diogo J. Leite de Campos, A indemnização do dano morte, 1975, pág. 34 e ss., Pereira Coelho, Direito das Sucessões, Coimbra, 1992, pág. 176, Vaz Serra, RLJ, Anos, 63, 76, 98, 103, 105 e 174 e Galvão Telles, Lições de Direito das Sucessões, 1991, págs. 95 e ss. Ac. do STJ de 17.03.71 – tirado em reunião conjunta das secções – BMJ nº 205, pág. 150
[36] Discute-se, porém, se o direito à reparação dos danos não patrimoniais suportados pela propria vítima seja a morte em si mesma seja o sofrimento que eventualmente a antecede – sofrimento pré-mortal - se transmite, iure hereditario, aos seus sucessores ou antes é atribuído iure proprio às pessoas colocadas numa relação de proximidade comunitária e afectiva (artº 2034 do Código Civil). No primeiro sentido, António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º vol., AAFDL, Lisboa, 1980, págs. 292 e 293 e Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo III, Pessoas, 2ª ed., 2007, Almedina Coimbra, pág. 174, e Luís Manuel Telles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 2ª edição, Coimbra, Almedina, pág. 321; em sentido diverso, Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, vol. I, 4ª ed. renovada, Coimbra Editora, 2000, págs. 322 a 325 e Jorge Arcanjo, Notas sobre Responsabilidade Civil e Acidentes de Viação, Revista do CEJ, 2º semestre de 2005, nº 3, págs. 60 a 62. O segundo dos sentidos assinalados corresponde à jurisprudência dominante: cfr., v.g. os Acs. da RC de 27.01.2004 e 16.01.2007 e do STJ de 24.05.2007, www.dgsi.pt.
[37] Ac. do STJ de 18.12.2007, www.dgsi.pt.
[38] O recorte dos titulares à reparação não atendeu à ordem de sucessão – mas aos vínculos de afeição que supõe existir entre pessoas ligadas entre si por relações de família. Fala-se, a este propósito, numa presunção de afectos – Rabindranath Capelo de Sousa, Direito das Sucessões, vol. I, 3ª ed., Coimbra Editora, 1993, pág. 300 – ou de dor e luto – Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, pág. 423. Sobre o problema da compensação do dano não patrimonial suportado por pessoa que vivia em união de facto com a vítima, cfr., o Ac. do TC n.º 275/02, DR, II, Série, de 24.07.2002 e Maria Manuel Veloso, Danos não Patrimoniais, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, vol. III, Coimbra Editora, 2007, págs. 529 a 536.
[39] Jorge Arcanjo, Notas sobre a Responsabilidade Civil e Acidentes de Viação, cit., pág. 60.
[40] Fundamentação geral das decisões da Provedoria de Justiça, Vítimas mortais dos incêndios, disponível em provedor-jus-pt.
[41] Michelle Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, págs. 42 e 43.
[42] João Paulo Remédio Marques, A Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, págs. 638.
[43] Miguel Teixeira de Sousa, “Prova, poderes da Relação e convicção: a lição da epistemologia – Ac. do STJ de 24.9.2013, Proc. 1965/04, in Cadernos de Direito Privado, nº 44, Outubro/Dezembro 2013, págs. 33 e ss.
[44] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 7ª edição actualizada, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 350.
[45] Antunes Varela, RLJ, Ano 116, pág. 330.
[46] Juan Montero Aroca, Valoración de la prueba, regras legales, Quaderni de “Il giusto processo civile”, 2, Stato di diritto e garanzie processualli, a cura di Franco Cipriani, Atti delle II Giornate internazionali de Diritto processualle civile, Edizione Scientifiche Italiene, 2008, págs. 44 e 45.
[47] Miguel Teixeira de Sousa, “Factos conclusivos”: já não há motivos para confusões! blogippc.blospot.com, entrada de 12 de Junho de 2023. Como o Supremo observa nos Acs. de 09.11.22 (9/17) e 10.10.2023 (9039/20), a proibição dos factos conclusivos, tributária de uma concepção dicotómica artificial, tem vindo a ser abandonada por ausência de justificação actual, dado que o facto objecto da prova não pode ser separado do direito, enquanto facto juridicamente relevante, com características descritivas, qualitativas, quantitativas ou valorativas, desse mesmo facto.
[48] Definição da IASP – International Association for the Study of Pain, adoptada pela Associação Portuguesa para o Estudo da Dor (APED), disponível em aped-dor-org.
[49] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1979, pág. 212 e Antunes varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, págs. 471 e 472.
[50] Vaz Serra, RLJ, Ano 111, pág. 302.
[51] Ac. do STJ de 18.06.1969, BMJ n.º 189, pág. 246.
[52] Acs. da RC de 09.09.2014, www.colectaneadejurisprudencia.com, e da RL de 21.01.2022 (20975/18.2T8SNT-A-7).
[53] Ac. STJ de 06.07.2011, (3612/07.6TBLRA.C2.S1), e João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL Editora, 2002, pág. 554.
[54] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 263 e 264.
[55] Carlos Lopes do Rego, O Ónus da Prova nas Acções de Investigação da Paternidade: Prova Directa e Indirecta do Vínculo da Filiação, in, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, vol. I, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra Editora, 2004, págs. 789 e 780. Se o juiz, em face da perícia, tiver dúvidas, o que está indicado é que ordene segunda perícia (art.º 487.º, n.º 2 do CPC).

[56] Vaz Serra, Provas, BMJ n.º 110, pág. 190.

[57] Cfr. João de Castro Mendes, Do Conceito de Prova, 1961, pág. 251. Duvidoso é também saber se a presunção é uma indução ou uma dedução. Sustentando que se trata de prova por indução, cfr. Manuel de Andrade Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra editora, 1976, pág. 215.
[58] Deve, portanto, existir um enlace preciso e directo entre o facto adquirido e o desconhecido, uma conexão, coerência e congruência entre o primeiro e o segundo, de harmonia com a regra de experiência – mas não é necessário que entre o facto-base e o facto presumido exista um vínculo de absoluta e exclusiva necessidade causal, sendo suficiente uma relação de dependência lógica entre o facto conhecido e o desconhecido. Cfr. Luís Filipe Pires de Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, Almedina, 2012, pág. 48.
[59] Na chamada prova prima facie, a produção e a valoração da prova são facilitadas, dado que corresponde a uma categoria de prova que, por assentar numa relação típica entre o facto probatório e o facto probando é em si mesma, suficiente para excluir qualquer alternativa e, por isso, dispensa qualquer valoração do caso concreto. É, por isso, não uma aparência de prova – mas antes uma prova que é susceptível de demonstrar a veracidade ou a verosimilhança do facto probando. A tipicidade da inferência probatória é de tal modo forte que esta inferência apenas cede perante dúvidas fundadas, i.e., perante uma contraprova prima facie e não perante a mera contraprova, ou perante a prova do contrário. A contraprova prima facie é realizada através da prova de que o facto probando pode não se ter verificado, apesar da verificação do facto probatório, o que requer a prova – que em processo civil onera a parte a quem o facto probando desfavorece – de uma relação atípica entre o facto probatório e o facto probando ou a prova de uma relação típica do facto probatório com um facto diferente do facto probando.
[60] Acs.do STJ de 27.09.22 (253/17) e de 22.02.2018 (32/14).
[61] Ac. do STJ de 10.10.2023 (9039/20) que fixou a compensação do dano morte em € 100 000,000.
[62] O que resulta de O dano morte na jurisprudência das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça (sumários de Acórdãos de 2016 a Dezembro de 2021), disponível em https//www.stj.pt/wp-content/uploads/2022/03/danomorte.pdf.
[63] Para fixação do dano de afeição em valor igual, cfr. v.g., o Ac. do STJ de 25.02.2021 (151/19).