Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1551/05.6TBILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
COMODATO
INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS
TUTELA DA CONFIANÇA CONTRATUAL
Data do Acordão: 11/18/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ÍLHAVO – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 668º, Nº 1, AL. C), DO CPC; 227º, 236º, NºS 1 E 2; 1129º E 1135º DO C. CIV.
Sumário: I – A nulidade prevista no artº 668º, nº 1, al. c), do CPC (fundamentos em oposição com a decisão) verifica-se quando os fundamentos de facto e de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão.

II – Trata-se de um vício estrutural da sentença, por contradição entre as suas premissas, de facto e de direito, e a conclusão, de tal modo que esta deveria seguir um resultado diverso.

III – O contrato típico ou nominado de comodato é legalmente definido como “contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir” – artº 1129º C. Civ.

IV – Trata-se de um contrato real na sua constituição, logo só se perfectibiliza com a entrega da coisa ao comodatário, assim o investindo no direito de a usar, com a obrigação de a restituir, findo o contrato, sendo um contrato bilateral imperfeito (não sinalagmático) –artº 1135º C. Civ..

V – Na interpretação dos contratos prevalecerá, em regra, a vontade real do declarante, sempre que for conhecida do declaratário – artº 236º, nº 2, do C. Civ.

VI – Faltando esse conhecimento, o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um destinatário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento de declarante – artº 236º, nº 1, do C. Civ..

VII – Fora dos contratos cuja tipicidade implica a entrega temporária de bens, há situações em que a transferência da coisa é imposta pela conveniência da execução de determinado acordo, caso em que o detentor fica onerado com deveres de cuidado, pelo que até à restituição o accipiens terá de os conservar e guardar, designadamente com base numa especial relação de confiança.

VIII – A tutela da confiança contratual justifica a regra do artº 227º C. Civ., onde se configura uma relação obrigacional sem dever primário de prestação.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

1.1. - O Autor - A... – instaurou na Comarca de Ílhavo acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra os Réus - B... e C... ( por intervenção principal ).
Alegou, em resumo:
Sendo construtor de modelos náuticos e coleccionador de artefactos marítimos e instrumentos de navegação, em Novembro de 2002, cedeu temporária e gratuitamente ao B... o seu espólio, para ser apresentado numa exposição denominada “Frota Bacalhoeira do Século XX”.
No decurso da exposição ocorreu o furto de três peças, o que lhe causou sofrimento.
Pediu a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de € 18.500,00, acrescida de juros de mora desde a citação e até integral pagamento.

Contestou o Réu Município, defendendo-se, em síntese, com a negação do contrato de comodato do espólio, pois a Câmara Municipal limitou-se a ceder gratuitamente o espaço no Centro Cultural da Gafanha da Nazaré para o Autor aí fazer a exposição, sendo ele o responsável, e apenas com o objectivo de colaborar celebrou um contrato de seguro com a C...
Concluiu pela improcedência da acção e requereu a intervenção principal provocada da C....
O Autor replicou.
Admitido o incidente de intervenção principal provocado, a C... contestou, excepcionando a prescrição e a exclusão do seguro.
No saneador afirmou-se a validade e regularidade da instância, relegando-se para final o conhecimento da excepção da prescrição.

1.2. - Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção, condenou o Réu B... a pagar ao Autor a quantia de € 5.375, 00 (cinco mil, trezentos e setenta e cinco euros), acrescida de juros de mora, desde a citação e até integral pagamento.

1.3. – Inconformado, o Réu B... recorreu de apelação, com as conclusões que se passam a resumir:
[…]
Contra-alegou o Autor, preconizando a improcedência do recurso.
II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – O objecto do recurso:
As questões submetidas a recurso, delimitadas pelas conclusões ( arts.683 nº4 e 690 nº1 do CPC), são as seguintes:
(1ª) Nulidade da sentença;
(2ª) Se existe fundamento para responsabilizar civilmente o Réu B... ( qualificação do contrato e dever de guarda).

2.2. – Os factos provados:
1. Os réus B... e C... subscreveram o acordo denominado Contrato de Seguro Multiriscos, cujo teor constitui os documentos juntos a fls. 46 a 85 – (al.A/).
2. O autor A... exerce a profissão de maquinista marítimo e dedica-se à construção de modelos náuticos e à colecção de artefactos marítimos e de instrumentos de navegação (r.q.1º, 2º e 3º).
3. O autor acordou com a B..., na pessoa do então Vereador Dr. D..., que o seu espólio de artefactos marítimos e de instrumentos de navegação seria apresentado numa exposição que teria lugar numa sala do Centro Cultural da Gafanha da Nazaré e que veio a denominar-se “Frota Bacalhoeira do Século XX” (r.q. 4º, 5º, 6º e 7º).
4. O B... efectuou o transporte das peças do autor para a sala do Centro Cultural da Gafanha da Nazaré, onde o autor diligenciou pela sua exposição ao público (r.q.9º).
5. O B..., para além do transporte das peças e da cedência do espaço, publicitou a exposição nos termos que constam do documento junto aos autos a fls. 184 - Sob o título “Exposição” consta o sub-título “Brites… Coimbra…Gazela Primeiro…Santa Isabel…Santa Maria Manuela…São Jacinto…Inácio Cunha…Embarcações que fizeram história, e que agora ganham nova vida pela mão do artesão A.... Venha reviver a epopeia da pesca do bacalhau através da Exposição do Artesanato “A Frota Bacalhoeira do Século XX”. Nesse folheto publicitário surge ainda a fotografia do autor e na parte final da página a data em que decorrerá a exposição, o local (Centro Cultural da Gafanha da Nazaré) e a data da inauguração. No canto final direito surge o logótipo, bem como a indicação da B... (r.q.10º).
6. A exposição foi inaugurada em 9.11.2002 (r.q.11º).
7. Do aludido espólio do autor fazia parte um sextante, instrumento de medição na navegação, em forma de meia lua, com escala de bronze natural, com lentes de regulação de cor preta, com cerca de setenta anos, pertencente a um submarino alemão do segundo quartel do século XX e um barómetro, em bronze natural, com cerca de 25 cm de diâmetro, com cerca de setenta anos e um clinómetro em bronze natural, em forma de meia-lua, com um vértice e pêndulo em bronze, com cerca de quarenta anos (r.q. 12º, 13º e 14º).
8. No dia 15.11.2002, entre as 15h e as 17h, a referida exposição encontrava-se aberta ao público (r.q. 15º).
9. Nesse período de tempo o autor ausentou-se da sala do Centro Cultural da Gafanha da Nazaré, não dizendo a outra ou outras pessoas para ficarem no local, exercendo a vigilância do mesmo e não fechou a porta (r.q.27º e 28º).
10. Nesse período de tempo três indivíduos retiraram, levando consigo e fazendo-os seus, os referidos sextante barómetro e clinómetro que se encontravam na sala do Centro Cultural da Gafanha da Nazaré (r.q.16º).
11. O B... dispunha de uma pessoa encarregue de zelar e efectuar a vigilância de todo o Centro Cultural da Gafanha, mas que não tinha por função a especifica a vigilância da sala onde estava a exposição (r.q.18º).
12. Os referidos sextante, barómetro e clinómetro não vieram a ser recuperados e entregues ao autor (r.q 19º).
13. Quando foi celebrado o contrato de seguro referido em 8º o autor atribuiu ao sextante o valor de € 2.500, ao barómetro o valor de € 625, e ao clinómetro o valor de € 250 (r.q. 20º, 21º e 22º).
14. O autor guardava as peças com amor, dedicação e estima e as mesmas estavam em bom estado de conservação (r.q.24º e 25º).
15. Em consequência da subtracção dos aludidos objectos, o autor sentiu angústia e sofrimento (r.q.26º).




2.3. - 1ª QUESTÃO

A nulidade prevista no art.668 nº1 c) do CPC ( fundamentos em oposição com a decisão ) verifica-se quando os fundamentos de facto e de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão.
A contradição lógica entre a fundamentação e a decisão, corresponde, em certa medida, à contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora da ineptidão da petição inicial ( art.193 nº2 b) CPC ).
Trata-se de um vício estrutural da sentença, por contradição entre as suas premissas, de facto e de direito, e a conclusão, de tal modo que esta deveria seguir um resultado diverso ( cf. ANTUNES VARELA, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág.686, ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, vol.V, pág.141
Porém, esta nulidade não abrange o erro de julgamento, seja de facto ou de direito, designadamente a não conformidade da sentença com o direito substantivo ( cf., por ex., Ac STJ de 21/5/98, C.J. ano VI, tomo II, pág.95 ).
A sentença recorrida, depois de qualificar o negócio celebrado entre o Autor e o B... como de comodato, condenou este a pagar àquele a indemnização com fundamento na violação do dever de custódia.
Nesta perspectiva, inexiste contradição entre o fundamento e a decisão, enquanto erro de actividade ou de construção, sendo que o Autor para justificar a pretensa nulidade convoca o eventual erro de julgamento, ou seja, a errada qualificação do contrato como de comodato.
Improcede a arguida nulidade da sentença.

2.4. - 2ª QUESTÃO

A sentença recorrida, considerando existir um contrato de comodato entre o Autor ( comodante) e Réu B... ( comodatário), tendo por objecto o seu espólio de artefactos marítimos e de instrumentos de navegação daquele, responsabilizou este pelo valor dos objectos furtados, com fundamento na violação do dever de guarda ( art.1135 a) do CC ).
Em contrapartida, objecta o Réu/apelante, B..., com o erro de julgamento, por incorrecta qualificação do acordo, que se reconduz a um apoio da autarquia à exposição das peças, mediante a cedência das instalações, transporte e pagamento do respectivo seguro, mas sob a responsabilidade do Autor.
O contrato típico ou nominado de comodato é legalmente definido como “ contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir” ( art.1129 do CC ).
Trata-se de um contrato real na sua constituição, logo só se perfectibiliza com a entrega da coisa ao comodatário, assim o investindo no direito de a usar, com a obrigação de a restituir, findo o contrato, sendo um contrato bilateral imperfeito ( não sinalagmático) ( sobre a caracterização doutrinária, cf. P.LIMA/A. VARELA, Código Civil Anotado, vol.II, 2ª ed., pág.582, FERNANDO DE MATOS, Contrato de Comodato, 2005, pág.7 e segs., JÚLIO GOMES, “ Do contrato de comodato”, Cadernos de Direito Privado, nº17, 2007, pág.3 e segs.).
A qualificação de um negócio jurídico postula, antes de mais, um problema de interpretação sobre a inerente declaração de vontade, na sua dupla função ambivalente: como acto de comunicação interpessoal e como acto determinativo ou normativo.
A interpretação dos negócios jurídicos rege-se pelas disposições dos arts.236 a 238 do CC, que consagram de forma mitigada o princípio da impressão do destinatário.
Por conseguinte, na interpretação dos contratos prevalecerá, em regra, a vontade real do declarante, sempre que for conhecida do declaratário. Faltando esse conhecimento, o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um destinatário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante ( cf., por ex., Ac do STJ de 14/1/97, C.J. ano V, tomo I, pág.46, de 22/1/97, C.J. ano V, tomo I, pág.258 ).
Neste âmbito, deve recorrer-se para a fixação do sentido das declarações a determinados tópicos, ou seja, à “ordem envolvente da interacção negocial”, como a letra do negócio, as circunstâncias do tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei, os usos e costumes por ela recebidos, bem assim o comportamento posterior dos contraentes.
Interpretar uma declaração negocial é actividade tendente a determinar o que as partes quiseram ou declararam querer. E, como se viu, esta vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição de real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante.
Nos negócios formais, se o sentido da declaração não tiver reflexo ou expressão no texto do documento, ele não pode ser deduzido pelo declaratário e não deve por isso ser-lhe imposto ( art.238 do CC ). Isto significa que a letra do negócio ( o texto do documento ) surge como limite à validade de sentido com que o negócio deve valer, nos termos gerais da interpretação.
Por seu turno, a aplicação do art.237 do CC confina-se, como, desde logo, resulta da sua epígrafe, aos casos duvidosos. A sua doutrina não prevalece contra as regras do art.236 do CC, aplicando-se apenas se estas não puderem definir o sentido da declaração.
Contrariamente ao alegado pelo Autor, não se provou que a B..., através do seu vereador, lhe propusesse a cedência gratuita do seu espólio de artefactos marítimos e instrumentos de navegação para ser apresentada na exposição e que o Autor aceitasse tal proposta ( cf. respostas restritivas aos quesitos 4º, 5º, 6º e 7º).
Também não se provou que o Autor procedesse à entrega desse espólio ao Réu Município e que este o recebesse e expusesse numa das salas do Centro Cultural da Gafanha da Nazaré ( cf. respostas restritivas aos quesitos 9º e 10º).
Sendo assim, é por demais evidente não se demonstrar, em termos factuais, que a vontade real das partes fosse no sentido de celebrarem um contrato de comodato, tendo por objecto o espólio dos artefactos do Autor.
Provou-se que o Autor acordou com a B... na apresentação do seu espólio de artefactos marítimos e de instrumentos de navegação numa exposição, que veio a denominar-se “ Frota Bacalhoeira do Século XX”, numa sala do Centro Cultural da Gafanha da Nazaré.
Sabe-se que o Réu B... apenas efectuou o transporte das peças do Autor para a sala do Centro Cultural da Gafanha da Nazaré, cedeu o espaço, fez um seguro multiriscos-porta aberta e publicitou a exposição, nos termos do documento de fls.184.
E provou-se ainda ter sido o Autor quem diligenciou pela sua exposição ao público.
A sentença recorrida, partindo destes factos, concluiu que eles revelam “comportamentos declarativos que exteriorizam, quer a vontade do autor entregar à Câmara tais objectos, quer a vontade desta os receber e posteriormente restituir (finda a exposição)”.
Com o devido respeito, a factualidade apurada não legitima tal interpretação, segundo a teoria da impressão de um declaratário normal. Na verdade, não se pode razoavelmente inferir que o Autor tivesse entregue o seu espólio ao Município, investindo-o no uso exclusivo do mesmo, e por consequência, que dele ficasse privado temporariamente, se foi ele quem diligenciou pela exposição.
Resulta, portanto, que o Município apenas colaborou com o Autor ao ceder as instalações, providenciar pelo transporte, ter feito o seguro e publicitar a exposição.
A sentença presumiu ainda ter sido a Câmara Municipal quem organizou a exposição, mas também sem apoio factual.
Desde logo porque a circunstância de constar do panfleto o logótipo da Câmara Municipal não é inequívoco nesse sentido. Por outro lado, tendo sido objecto de directa quesitação, não mereceu resposta positiva, como claramente se extrai da resposta restritiva ao quesito 10º.
Tendo o tribunal, aquando da decisão da matéria de facto (art.653 do CPC ), julgado não provado que foi o Réu Município quem recebeu e expôs o espólio, seria um contra-senso permitir a prova por presunção judicial de um facto expressamente quesitado, cuja resposta foi negativa.
E se o tribunal da 1ª instância deu (ou não) como provado certo quesito e se para o efeito ele pôde utilizar prova testemunhal e máximas da experiência, também a Relação não pode alterar essa resposta devido exclusivamente a uma presunção, na medida em que a sua força probatória pode ter sido arredada devido aos depoimentos orais prestados pelas testemunhas perante o tribunal.
Por isso, a Relação não pode modificar a resposta dada pelo tribunal a quo com fundamento numa presunção, se não ocorrer qualquer das hipóteses do art.712 do CPC ( cf., por ex., CALVÃO DA SILVA, RLJ ano 135, pág.125, ANTUNES VARELA, RLJ ano 123, pág.49, TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., pág.416; Ac STJ de 21/9/95, C.J. ano III, tomo III, pág.15).
Não estamos, portanto, perante um contrato de comodato (art.1129 do CC ) dos objectos que compõem o espólio do Autor, feito por este (comodante) ao B... (comodatário), contrariamente à qualificação feita na sentença, nem de um contrato de depósito ( art.1185 do CC ).
Afastada a qualificação pelo contrato de comodato, cai a responsabilização do Réu com base na violação do dever de custódia ( art. 1135 a) do CC ).
Fora dos contratos cuja tipicidade implica a entrega temporária de bens ( por ex., locação, comodato, depósito ), há situações em que a transferência da coisa é imposta pela conveniência da execução de determinado acordo, caso em que o detentor fica onerado com deveres de cuidado, pelo que até à restituição o accipiens terá de os conservar e guardar, designadamente com base numa especial relação de confiança.
Neste contexto, coloca-se a questão de saber se pode imputar-se ao B... o dever de indemnização fundado na chamada “responsabilidade pela confiança”, situada no âmbito mais vasto da tutela jurídica das expectativas, cuja frustração da confiança de outrem é susceptível de conduzir à obrigação de indemnização, exprimindo, na sua essência, a justiça comutativa, na forma específica de justiça correctiva e compensatória.
Tanto a culpa in contrahendo, como as situações de “auto-vinculação sem contrato “ ou “ acordos de facto “, em que existe uma solidariedade assumida, convocam a intervenção da responsabilidade pela confiança.
Não há um tratamento unitário e sistemático para a responsabilidade pela confiança, embora o Código Civil Português contenha apoios juspositivos, sendo o mais importante o constituído pela culpa in contrahendo ( art.227 ), como responsabilidade sui generis, não tipicamente contratual, nem delitual ( cf. CARNEIRO DA FRADA, Contrato e Deveres de Protecção, 1994, pág.258 e segs, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, pág.480 e segs.).
É precisamente a tutela da confiança que justifica a regra do art.227, onde se configura uma relação obrigacional sem dever primário de prestação, e que serve de arquétipo para a resolução de outros casos problemáticos, designadamente quanto aos chamados “deveres de protecção da integridade”.
Para a caracterização da tutela da confiança, enunciam-se três pressupostos: uma situação objectiva de confiança ( uma conduta de alguém entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura), o investimento na confiança e a boa fé da contraparte que confiou ( a confiança do terceiro ou da contraparte só merecerá protecção jurídica quando de boa fé tenha agido com cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico) ( cf. BAPTISTA MACHADO, Obra Dispersa, vol.I, pág.415 a 419 ),
Não é pelo facto do Município haver cedido o espaço, ter procedido ao transporte e publicitar a exposição ou mesmo haver feito o seguro, que resulta, sem mais, uma especial relação de confiança, a justificar o dever de custódia sobre o espólio do Autor.
É que, segundo os elementos factuais disponíveis, não se pode afirmar que o Município, embora cedendo o espaço, assumisse o encargo de vigiar a exposição, ou que a sua colaboração fosse objectivamente de molde a conferir ao Autor uma especial confiança sobre a protecção e guarda dos artefactos.
Tanto assim que, dispondo de uma pessoa encarregue de zelar e efectuar a vigilância de todo o Centro Cultural da Gafanha, ela não tinha por função a especifica vigilância da sala onde estava a exposição (cf. resposta ao quesito 18º). Com efeito, não está provado que o Autor abdicasse do controlo das coisas e que o Réu se comprometesse ao dever de guarda.
De resto, o furto dos objectos foi praticado no dia 15/11/2002, entre as 15h e as 17h, quando a exposição se encontrava aberta ao público. Ora, foi precisamente nesse período que o Autor se ausentou da sala de exposição, sem cuidar de chamar outrem para ficar no local a vigiar, e nem sequer fechou a porta ( cf. respostas aos quesitos 27º e 28º), logo como inegável violação do dever de cuidado.
Procede a apelação, com a consequente revogação da sentença, o que implica absolvição do Réu B... do pedido.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida, absolvendo-se o Réu B... do pedido.
2)
Condenar o Autor nas custas, em ambas as instâncias.
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Coimbra, 18 de Novembro de 2008.