Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
721/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. SERRA BAPTISTA
Descritores: LETRA DE CÂMBIO
LETRA EM BRANCO
Data do Acordão: 04/27/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TONDELA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ART.º 10.º DA LULL, 560.º E 280.º N.º 1 DO C.C.
Sumário:

1. A letra em branco, desde que posteriormente preenchida, passa a produzir todos os efeitos próprios da letra. Sendo o momento decisivo para que tal suceda, não o momento da sua emissão, mas o do seu vencimento, desde que então tal título se encontre preenchido.
2. O subsequente contrato de preenchimento não pode ser arbitrário, havendo de processar-se segundo a maneira costumada do tráfico e nas modalidades usuais e típicas, devendo ser feito segundo o direito que resulte do contrato fundamental.
3. O ónus da prova do facto impeditivo do exercício do direito do alegado credor cabe ao obrigado cambiário, que deverá alegar e provar o preenchimento abusivo ou desconforme em embargos de executado.
Decisão Texto Integral:

Apelação nº 721/04

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


BB veio deduzir embargos de executado contra CC, alegando, em síntese:
Apenas assinou as letras com o seu nome no lugar do aceite e indicou, também por seu punho, o número de contribuinte, tendo sido os restantes elementos que das mesmas ainda constam, nelas apostos sem o seu conhecimento, sem o seu acordo e contra a sua vontade;
Assinou as letras a pedido do ora embargado, que lhe disse precisar de dinheiro, com o qual tinha verbalmente acordado a compra de uma parcela de terreno confinante com um lote sua propriedade. Negócio este que nunca se veio a realizar.
Recebidos liminarmente os embargos e notificado o embargado, veio este contestar, alegando que as letras que deu à execução e que ora estão em causa foram-lhe entregues pelo embargante para pagamento de quantias diversas que lhe emprestou.
Foi proferido o despacho saneador, sem recurso, tendo sido fixados os factos tidos por assentes e organizada a base instrutória. Sem reclamação das partes.
Realizado o julgamento, decidiu a senhora Juíza a matéria de facto pela forma que do seu despacho junto aos autos consta. Também sem reclamação das partes.
Foi proferida a sentença, na qual foram os embargos julgados improcedentes.
Inconformado, veio o embargante interpor o presente recurso de apelação, formulando, na sua alegação, as seguintes conclusões:
1ª - As letras emitidas pelo embargante aceitante, ao apor nelas somente a sua assinatura e o seu número de contribuinte, e ao entregá-las nesse estado ao sacador embargante, sem outros dizeres, são letras em branco;
2ª - O abuso de preenchimento tanto se pode verificar no caso do preenchimento das letras violando um acordo prévio verbal ou escrito entre os sujeitos intervenientes na letra, como pode acontecer, sem que haja qualquer acordo de preenchimento;
3ª - No caso sub judice não houve qualquer acordo de preenchimento tal como resulta
- da ausência do embargante no momento do preenchimento;
- de divergências posteriores à emissão da letra sobre a moeda a empregar no título;
- do cálculo de juros incorporado no montante das letras feito por terceiro, sem que os outros intervenientes, o próprio sacador, saibam o seu montante de taxa;
- da resposta do embargante ao embargado de que em Agosto seguinte fariam contas.
4ª - Houve efectivo abuso de preenchimento tal como resulta do depoimento de parte do sacador realizado no momento do julgamento;
5ª - Este abuso resulta da incorporação do preenchimento unilateral do possuidor das letras sobre o devedor, impondo-lhe e obrigando-o assim a uma dívida aleatória, com juros incorporados que ele próprio não sabe explicar, aplicáveis sobre capital que também desconhece;
6ª - Os juros incorporados no montante das letras desde a data da sua emissão até á data do vencimento, uma vez que não houve acordo de preenchimento, representam anatocismo e tornam a obrigação improcedente na letra nula;
7ª - A sentença recorrida violou as disposições dos arts 10º da LULL, 560º e 280º, nº 1 do CC.
O apelado contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.
Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.

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Vem dado como PROVADO da 1ª instância:

O embargado é portador de duas letras onde consta como data de vencimento 30/1/2002, o valor de 802.000$00 e de 560.000$00, sacadas por si e aceites pelo embargante - al. A) dos factos assentes;
Tais montantes não foram pagos, apesar de por diversas vezes o embargado o ter interpelado para o efeito - al. B);
As referidas letras foram apresentadas a desconto pelo embargado junto do BNU, no seu balcão de Tondela, tendo o referido desconto sido recusado por valor incobrado - al. C);
Face á devolução das letras o embargado suportou as respectivas despesas no valor de 7,58 euros - al. D);
O embargante assinou ambas as letras com o seu nome no lugar do aceite, indicando também por seu punho o número de contribuinte - al. E);
As letras foram emitidas, respectivamente, em 4/7/97 e 13/2/97 - al. F);
Os elementos constantes das letras, com excepção dos referidos em E), foram preenchidos na instituição bancária, na ausência do embargante, quando este já havia recusado o seu preenchimento em euros, prometendo que em Agosto fariam contas, tendo o cálculo dos juros, incluídos nos montantes constantes dos títulos sido efectuado pelo funcionário da instituição bancária - resposta dada ao quesito 5º;
O embargante desconhecia os valores fiscais que incidiam sobre os valores pecuniários - resposta dada ao quesito 7º;
Foi exigido ao embargado que suportasse a quantia de 53.344$00 junto da CGD, enquanto fiador do embargante - resposta ao quesito 10º.

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É sabido que a delimitação objectiva do recurso é feita pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso - arts 664º, 684º, nº 3 e 690º, nºs 1 e 3 do CPC , bem como, entre muitos outros, Acs do STJ de 27/9/94, de 13/3/91, de 25/6/80 e da RP de 25/11/93, CJ S Ano II, T. 3, p. 77, Act. Jur. Ano III, nº 17, p. 3, Bol. 359, p. 522 e CJ Ano XVIII, T. 5, p. 232, respectivamente.

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São estas, assim, as questões agora a decidir:
1ª - A de saber se, inexistindo acordo de preenchimento das letras em branco, houve ou não abusiva desconformidade no seu completamento;
2ª - A de saber se, não tendo havido acordo de preenchi-
mento das letras em branco, os juros nelas incorporados repre-
sentam anatocismo, com a consequente nulidade dos respectivos títulos.

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Vejamos, pois, começando pela primeira questão:

Dúvidas não restarão, tal como qualificado juridicamente foi pela senhora Juíza a quo, sem qualquer reparo das partes, que nos encontramos perante duas letras que foram assinadas em branco pelo ora embargante no lugar reservado ao aceitante.
Definindo-se a letra em branco como aquela a que falta algum dos requisitos prescritos no art. 1º da LULL, mas que incorpora, pelo menos, uma assinatura feita com a intenção de contrair uma obrigação cambiária - Ferrer Correia, Direito Comercial, Vol. III, p. 124.
Resultando a sua admissibilidade - ainda segundo o mesmo Professor - claramente do art. 10º da mesma lei, passando o respectivo documento, desde que posteriormente preenchido nos termos do aludido art. 1º, a produzir todos os efeitos próprios da letra.
Sendo o momento decisivo para que tal suceda, não o momento da sua emissão, mas sim o do seu vencimento. Só podendo efectivar-se a obrigação que o documento incorpora desde que no momento do vencimento ele se encontre preenchido.
Na verdade, na teoria cambiária, as construções da letra em branco assentam na ideia fundamental do título como documentação de obrigações, que, tendo ficado incompleto, vem a ser preenchido na circulação e, desta forma, a portar-se como uma letra normal.
Sendo certo que, a admissibilidade da letra em branco, exigida pela vida real, traz a consequência de que a forma completa do título e correspondentes obrigações, possam ficar adiadas para um momento ulterior ao da criação ou emissão (unilateral ou contratual) da letra - Paulo Sendim, Letra de Câmbio, vol. I, p. 234.

Tem sido defendido na doutrina que a letra em branco pode existir sem ter havido contrato de preenchimento - Abel Delgado, LULL Anotada, p. 58 e Paulo Sendim, ob. cit., pags 192 e 227 (em sentido contrário, ao que se crê, Pinto Furtado, Títulos de Crédito, p. 144).
Admitindo a mesma que o acordo de preenchimento - acto pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a estipulação dos juros, etc - possa não existir - Paulo Sendim, ob. cit. e pag. 192 e seg, com citação de inúmera doutrina estrangeira, bem como de Pinto Coelho e Cunha Gonçalves - não devendo, de qualquer modo, o subsequente preenchimento ser arbitrário, mas processar-se antes segundo a maneira costumada do tráfico e nas modalidades usuais e típicas, devendo ser feito segundo o direito que resulte do contrato fundamental.

Sendo certo que a existir tal acordo - o que na generalidade dos casos ocorrerá - não necessita o mesmo de ser expresso, bem podendo ser apenas tácito - Abel Delgado, ob. e pag. cit. e Acs do STJ de 28/5/96, Bol. 457, p. 401 e da RL de 16/5/96, CJ Ano XXI, T. 3, p. 92.
Havendo que se ter em conta, como já advertia o Professor Ferrer Correia (ob. cit., p. 125), que a criação de uma letra em branco, importando a concessão ao credor dos poderes necessários para a integração do título, com todos os riscos de abuso que a tal autorização vão inerentes, constitui um acto cuja gravidade se torna ocioso sublinhar.

Sendo ainda certo que o subscritor do título pode defender-se perante o portador imediato - in casu estaremos no domínio das relações imediatas, já que as letras não entraram ainda em circulação, sendo o primeiro adquirente preenchedor quem reclama o seu pagamento - opondo-lhe a excepção do seu preenchimento abusivo. Quer por desrespeito do acordo de preenchimento, quer por o mesmo não se ter processado da forma devida, tal como se aludiu já supra.
Cabendo o ónus da prova de tal facto impeditivo do exercício do direito do alegado credor ao obrigado cambiário - art. 342º, nº 2 do CC e Ac. do STJ de 16/10/2003, Sumários do STJ, Secções Cíveis, Outubro de 2003, p. 50.
Devendo a alegação e prova do preenchimento abusivo ou desconforme ao tráfico ou à relação fundamental, na acção executiva, ser feita, como ora sucedeu, nos embargos de executado - art. 812º e ss do CPC e cit. Ac. do STJ de 28/5/96, bem como Acs do mesmo STJ de 1/10/98, Bol. 480, p. 482, de 11/4/00, citado na sentença recorrida e da RP de 14/6/94, Bol. 438, p. 552.
Impendendo, assim, sobre o devedor a alegação e prova do abuso do preenchimento, como também bem refere a senhora Juiz a a quo na sua sentença, com citação de doutrina e jurisprudência a tal respeito.

Ora, no caso vertente, tendo em conta a factualidade que se deu como provada e que neste recurso nem sequer é impugnada, provado não ficou o preenchimento abusivo dos títulos dados pelo embargado à execução.
Sendo certo que o acordo que se deve observar no preenchimento é o acordo prévio que esteve subjacente à emissão da letra.
E embora não se saiba nestes autos qual a relação subjacente que terá estado na génese da emissão dos títulos, nem qual o pacto que as partes eventualmente terão entre si gizado, a verdade é que o ora embargante não provou, como lhe incumbia, que o preenchimento dos títulos foi desconforme ao que tinham antes combinado, ao tráfico comercial ou à aludida relação subjacente.
E era a ele que tal prova incumbia.
Não a tendo logrado fazer.
Não tendo de qualquer modo, e tenha ou não havido acordo de preenchimento, ficado provado a abusiva desconformidade do completamento das letras.
Restando, assim, as mesmas, dadas à execução, incólumes como seu exigido título - arts 45º, nº 1 e 46º, nº 1, al. c) do CPC.

Não se podendo concluir, tal como também o fez a senhora Juíza a quo, que o facto de as letras terem sido preenchidas na ausência do seu subscritor, quando este já havia recusado o seu preenchimento em euros - as letras são preenchidas em escudos - de o cálculo dos juros ter sido efectuado pelo funcionário bancário e de ora embargante desconhecer os valores fiscais que incidiam sobre os montantes pecuniários, possa consubstanciar, sem mais, tal preenchimento abusivo.
Muito menos podendo significar o alegado preenchimento abusivo o facto de o ora embargante ter prometido que em Agosto faziam contas.
Não invalidando tal promessa unilateral, só por si, o preenchimento das letras que antes foram por si subscritas em branco.

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Passemos à segunda questão:

Prende-se ela com a de saber se os juros incorporados nas letras - cujo cálculo terá sido efectuado pelo funcionário da instituição bancária - representam o chamado anatocismo (capitalização dos juros ou juros de juros) a que alude o art. 560º do CC, não permitido nos precisos termos de tal preceito.
Tal questão não foi, porem, suscitada nos autos de embargo, não fazendo neles parte da defesa do ora embargante.
Como tal não pode esta Relação, desde logo, dela se ocupar, não sendo a matéria em questão de conhecimento oficioso.
Pois, como vem sendo repetidamente afirmado pela nossa jurisprudência, os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido - Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, p. 175 e Acs do STJ de 25/11/75, Bol. 251, p. 122, de 16/7/81, Bol. 309, p. 283 e de 29/1/84, Bol. 391, p. 520, entre muitos outros.

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Face a todo o exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se, em consequência, a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.