Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
292/09.0TAAVR-A.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
SUBSTITUIÇÃO DA MULTA
Data do Acordão: 10/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – AVEIRO – JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL – JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 48º E 58º CP
Sumário: 1.- Em matéria de determinação da duração do trabalho a prestar a favor da comunidade, em caso de condenação em pena de multa, a pena a considerar para essa substituição é esta e não a pena de prisão que dela seja subsidiária.
2. Assim, condenado o arguido em 60 dias de multa, a duração do trabalho a prestar deve ser de 60 horas, e não de 40 horas.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.
No processo supra identificado foi proferido despacho no qual se decidiu a substituição da pena de multa aplicada ao arguido AA... por trabalho a favor da comunidade.
Inconformado, apresentou recurso para esta Relação o Magistrado do Mº Pº, formulando as seguintes conclusões, as quais delimitam o objecto:
1. Pela prática de um crime de burla, foi o arguido AA... condenado na pena de sessenta dias de multa, à razão diária de € 5,00.
2. Porque o arguido o requereu, foi autorizada a substituição desta pena de multa por trabalho a favor da comunidade.
3. Assim, e "ao abrigo do disposto no artigo 58, n.º 3, do Código Penal, aplicável por força do disposto no artigo 48, n.º 2 do mesmo diploma" foi determinado que o arguido cumpra 40 (quarenta) horas de trabalho a favor da comunidade, em substituição daquela pena de 60 dias de multa.
4. Com efeito, entendeu a Exma. Juiz que tendo sido aplicada ao arguido uma pena de 60 dias de multa, a que correspondem 40 dias de prisão subsidiária (artigo 49, n.º 1 do Código Penal), teria este de cumprir 40 horas de trabalho a favor da comunidade
5. Entendemos que, no presente caso, não foi correctamente aplicado o disposto no citado artigo 48, n.º 2, do Código Penal.
6. Na verdade, quando aí se diz "é correspondentemente aplicável o disposto no artigo 58, n.º 3" quer-se dizer que este último normativo se aplica mutatis mutandis, ou seja, com as necessárias adaptações.
7. Ou seja, o que se pretende é que se aplique apenas a regra da correspondência aí prescrita, ou seja, uma hora de trabalho para cada dia de multa.
8. Aliás, se assim não fosse, bastaria ao legislador ter referido no citado artigo 48, n.º 2 que era aplicável o disposto no artigo 58, n.º 3, sem a palavra "correspondentemente".
9. Ao dizer expressamente e sem mais "é correspondentemente aplicável o disposto no artigo 58, n.º 3, o legislador só pode ter querido dizer que, no caso da substituição da pena de multa pela prestação de trabalho a favor da comunidade, deverá aplicar-se a regra e proporção aí referida, ou seja, uma hora por cada dia (neste caso, dia de multa).
10. A regra deverá ser, pois, a de fazer corresponder uma hora a um dia (dia esse que poderá ser de prisão ou de multa, conforme estejamos a aplicar directamente o disposto no referido n.º 3, ou por força da remissão do artigo 48, n.º 2).
11. Não sendo esta a vontade do legislador, deveria, então, ter dito que "era aplicável o disposto no artigo 58, n.º 3, depois de feita a conversão do artigo 49, n.º 1".
12. Não tendo utilizado esta fórmula, entendemos não ser aceitável a interpretação e aplicação efectuadas pela Exma. Juiz.
13. Assim, a decisão recorrida deveria ter ordenado o cumprimento, não das 40 horas de trabalho, mas antes, de 60 horas de trabalho.
14. Não o tendo feito, entendemos que violou o disposto no citado artigo 48, n.º 2, do Código Penal.
Deve julgar-se procedente o recurso e revogar-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que ordene a substituição da pena de 60 dias de multa aplicada ao arguido, por 60 horas de trabalho a favor da comunidade.
Não foi apresentada resposta:
Nesta Relação, o Ex.mº Procurador Geral Adjunto emitiu parecer fundamentado e no sentido da procedência do recurso.
Foi cumprido o art. 417 nº 2 do CPP.
Não foi apresentada resposta.
Cumpre decidir:
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É do seguinte teor o despacho recorrido:
AA... foi neste processo condenado pela prática de crime de burla, por sentença de 04.11.2010, transitada em julgado em 04.12.2010, na pena de 60 dias de multa à razão diária de €5,00.
Antes de iniciado o prazo para pagamento voluntário da multa, requereu a substituição da mesma por trabalho a favor da comunidade (fls. 139).
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser deferida a requerida substituição por horas de trabalho, nos termos de fls. 145 e 155.
Foi solicitado aos Serviços de Reinserção Social a realização de relatório, que consta de fls. 152 e seguintes, de acordo com o qual, além do mais, o arguido trabalha por conta própria em mediação imobiliária, já desempenhou trabalhos diversificados, tem o 11° ano de escolaridade, manifesta-se motivado e disponível para prestar trabalho de segunda a sexta-feira das 09.00 horas às 12.30 horas, sendo que pelos Bombeiros Voluntários da Póvoa de Varzim foi já expressa disponibilidade para dar ocupação ao arguido em tal horário em trabalhos de serviços de limpeza e catalogação dos livros da biblioteca da Associação de Bombeiros.
Atento o teor da referida informação dos Serviços de Reinserção Social, bem como o considerado na sentença acerca da situação do arguido (cfr. fls. 132-3, fls. 135), afigura-se que a substituição da multa por trabalho realiza de forma adequada e suficiente as finalidades de prevenção geral e especial que no caso se suscitam, nada obstando à substituição da multa por trabalho nos termos do artigo 48, n.01, do Código Penal.
Estabelece o n.º 2 do citado artigo 48 que "é correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 58 e no n.º 1 do artigo 59".
Nos termos de tais disposições, "para efeitos do disposto no n.º 1 [substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade], cada dia de prisão fixado na sentença é substituído por uma hora de trabalho, no máximo de 480 horas"; "o trabalho a favor da comunidade pode ser prestado aos sábados, domingos e feriados, bem como nos dias úteis, mas neste caso os períodos de trabalho não podem prejudicar a jornada normal de trabalho, nem exceder, por dia, o permitido segundo o regime de horas extraordinárias aplicável"; "a prestação de trabalho a favor da comunidade pode ser provisoriamente suspensa por motivo grave de ordem médica, familiar, profissional, social ou outra, não podendo, no entanto, o tempo de execução da pena ultrapassar 30 meses".
Salvo o devido respeito por diverso entendimento, a aplicação "correspondente" do disposto no citado n.º 3 do artigo 58 do Código Penal (por remissão pelo artigo 48, n.º 2) não equivale à conversão de cada dia da pena de multa em uma hora de trabalho a favor da comunidade.
Com efeito, afigura-se que tal resultado conflituaria com a necessária unidade do sistema jurídico (cfr. artigo 9, n.º 1, do Código Civil), considerando a correspondência legalmente estabelecida entre a pena de multa e a eventual prisão subsidiária (esta equivalente ao número de dias daquela reduzido a 2/3 - artigo 49, n.º 1, do Código Penal), sendo que no presente caso, em que foi aplicada a pena de 60 dias de multa, o eventual incumprimento de tal pena poderia implicar a conversão da mesma em 40 dias de prisão.
A 40 dias de prisão, de acordo com o critério legal estabelecido no artigo 58, n.º 3 (norma de que resulta que são legalmente equiparáveis punições de um dia de privação da liberdade e de uma hora de prestação de trabalho a favor da comunidade), corresponderiam 40 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade.
A consideração da diversa natureza dogmática da pena (principal) de prisão a substituir por trabalho nos termos do artigo 58 do Código Penal e da prisão subsidiária que hipoteticamente poderia substituir a pena (principal) de multa não pode fazer esquecer que em qualquer das hipóteses, "(...) na sua execução, quer uma quer outra têm exactamente o mesmo conteúdo material (...): a privação de liberdade de um cidadão, decorrente de uma sanção derivada de uma condenação criminal, cumprida em estabelecimento prisional durante um determinado período de tempo" (Acórdão da Relação de Coimbra de 09.12.2009 - em que se aprecia questão diversa - que pode ler-se em www.dgsi.pt/jtrc com o n." de processo 126/05.4GTCBR.C1).
Ora - sempre ressalvando o devido respeito por diverso entendimento - não se afigura coadunável com o princípio da unidade do sistema jurídico e a presunção de (além do mais) coerência das soluções legislativas (artigo 9, n.º 1 e n.º 3, do Código Civil) aceitar que da remissão pelo artigo 48, n.º 3, para o artigo 58, n.º 3, possa resultar a conversão da pena de 60 dias de multa em 60 horas de trabalho (como resultaria da interpretação de tal remissão como implicando que aqui devesse ler-se que para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 48 [substituição, a requerimento do condenado, da pena de multa por prestação de trabalho a favor da comunidade] cada dia de multa fixado na sentença é substituído por uma hora de trabalho, no máximo de 480 horas).
Com efeito, a 60 dias de multa a lei equipara 40 dias de privação da liberdade e a mesma lei a 40 dias de prisão equipara 40 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade.
Pelo exposto, decide-se substituir a pena de multa em que AA... foi condenado no presente processo por 40 (quarenta) horas de trabalho a favor da comunidade, a prestar executando tarefas de serviços de limpeza e catalogação dos livros da biblioteca da Associação de Bombeiros Voluntários da Póvoa de Varzim, de segunda a sexta-feira das 09.00 horas às 12.30 horas.
Notifique-se Ministério Público e II. Defensora.
Após trânsito do presente despacho, comunique-se, nos termos do artigo 490, n.º 3, do Código de Processo Penal, sendo o arguido com a advertência de que deverá no prazo máximo de cinco dias após trânsito desta decisão apresentar-se perante a Equipa do Porto (Penal 5) da Direcção-Geral de Reinserção Social, devendo esta entidade informá-la da data exacta em que iniciará a execução da pena (faça-se constar da notificação ao arguido todos os elementos necessários à contagem do prazo de apresentação).
Observe-se o disposto nos art.s 290 e seg.s do Regulamento das Custas Processuais.
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Analisando:
A questão única suscitada respeita à correspondência entre a pena de multa aplicada e os dias de trabalho a favor da comunidade, pena de substituição.
Entende o despacho recorrido que primeiramente se deve converter a multa em prisão e só depois a conversão da prisão resultante em trabalho a favor da comunidade.
Entende o recorrente que se faz a conversão directa entre a pena de multa e os dias de trabalho a favor da comunidade
Entendemos que a razão assiste ao recorrente.
O que se pretende é substituir a pena de multa por trabalho a favor da comunidade, sendo que a remissão é directa do art. 48 para o art. 58, sem passar pelo art. 49 como se sustenta no despacho recorrido.
Desta remissão directa resulta a substituição de um dia por uma hora.
Se se pretender substituir pena de prisão por trabalho a favor da comunidade substitui-se um dia por uma hora (sem ultrapassar o limite de 480 horas).
Se se pretender substituir pena de multa por trabalho a favor da comunidade substitui-se um dia por uma hora (também sem ultrapassar o limite de 480 horas).
Neste sentido veja-se a prof. Maria João Antunes em “Consequências Jurídicas do Crime” Coimbra, 2010/2011pág. 68: “A prestação de trabalho deixou de ser uma sanção, para passar a ser uma forma de cumprimento da pena de multa, a requerimento do condenado, quando for de concluir que realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – as previstas no nº 1 do art. 40 do CP. Por remissão do nº 2 do art. 48 para os nºs 3 e 4 do art. 58, cada dia de multa corresponde a um dia de trabalho, podendo ser prestado em dias úteis, aos sábados, domingos e feriados, sem que a duração dos períodos de trabalho possa prejudicar a jornada normal de trabalho ou exceder, por dia, o permitido segundo o regime de horas extraordinárias aplicável” (sublinhado nosso).
Sobre esta questão também se pronunciou o Ac. desta Relação de 11-05-2011, proferido no Processo nº 635/08.3GCAVR-A.C1, citado pelo Exmº PGA no seu parecer, no sentido acabado de expor.
“1. A sistematização conferida pelo legislador ao regime de pagamento/substituição da pena de multa não deixa dúvidas quando à teleologia presente nas normas, conjugadas, dos artigos 48º e 58º, n.º 3, do Código Penal, qual seja: a determinação dos dias de trabalho a favor da comunidade deve ser feita por referência à pena de multa fixada e não à pena de prisão que daquela seja subsidiária.
2. Daí que o n.º 2, do artigo 48º, do C. Penal, acentue que à situação concreta que regula “é correspondentemente aplicável o disposto” no texto-norma do artigo 58º, n.º 3.
3. Dito por outras palavras, onde se diz, neste normativo: “cada dia de prisão fixado na sentença é substituído por uma hora de trabalho, no máximo de 480 horas”, quer o legislador referir que, verificados os pressupostos previstos no artigo 48º, n.º 1, “cada dia de multa fixado na sentença é substituído por uma hora de trabalho, no máximo de 480 horas”.
Do mesmo relator, o Ac. de 16-04-2008, proferido no processo 1429/07.9PBCBR, “ A teleologia que se depreende da sistematização conferida pelo legislador ao regime de pagamento/substituição da pena de multa nas normas, conjugadas, dos artigos 48.º e 58.º, n.º 4, do Código penal, aponta no sentido de que a determinação dos dias de trabalho a favor da comunidade deve ser feita por referência à pena de multa fixada e não à pena de prisão que daquela seja subsidiária”.
Igualmente o Ac. desta Relação de 28-05-2008, processo 49/07.2PTCBR-A.C1, “Na substituição da pena de multa por dias de trabalho a que alude o n.º1 do artigo 48.º do Código Penal deve fazer-se corresponder a cada dia de multa uma hora de trabalho, nos termos do artigo 58.º, n.º 3 do mesmo diploma legal”.
Igualmente o Ac. desta Relação de 30-04-2008, processo 35/07.2PTCBR-A.C1, “Com o “CORRESPONDENTEMENTE” do artigo 58º nº 3 n.0 3 do CP quer-se dizer que este último normativo se aplica, mutatis mutandis, isto é, deve aplicar-se apenas a regra da correspondência aí prescrita: no presente caso, o que se pretende é que a correspondência seja uma hora de trabalho para cada dia de multa”.
Pelo exposto deve ser julgado procedente o recurso e se revogado o despacho recorrido.
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Decisão:
Face ao exposto, acordam e conceder provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido e substituem a pena de 60 (sessenta) dias de multa imposta ao arguido AA... por 60 (sessenta) horas de trabalho a favor da comunidade.
Sem custas
Coimbra,