Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
314/09.4TBAVR.C1.
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS GIL
Descritores: INVENTÁRIO
CAUSA PREJUDICIAL
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
Data do Acordão: 04/28/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.1332 E 1335 DO CPC
Sumário: I - A acção declarativa em que se pede a declaração de invalidade ou de ineficácia de doação feita pelo de cujus a uma das duas únicas co-herdeiras, por conta da quota disponível, com favorecimento manifesto de uma das co-herdeiras, constitui causa prejudicial justificadora de suspensão da instância no processo de inventário instaurado por óbito do doador, já que a determinação e o preenchimento da quota disponível da herança do de cujus, bem como a verificação de eventual inoficiosidade da doação cuja validade e eficácia é controvertida dependem do resultado daquela acção.

II - A suspensão da instância no processo de inventário com fundamento em pendência de causa prejudicial quando já foram suscitadas incidentalmente as questões prejudiciais invocadas naquela causa constitui uma antecipação de remessa para os meios comuns para dilucidação dessas questões, não resultando desse procedimento um atraso no processado para além daquele que foi previsto pelo legislador na regulamentação do regime das questões prejudiciais.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

A 27 de Janeiro de 2009, no Juízo de Média e Pequena Instância Cível da Comarca do Baixo Vouga, Maria (…) veio instaurar inventário facultativo por óbito de Manuel (…), falecido a 24 de Julho de 2003, no estado de viúvo e que deixou duas filhas, a requerente e A (…), alegando ainda que por a requerente ser a filha mais velha e quem cuidou o de cujus até ao seu óbito, devia ser nomeada cabeça-de-casal.

A 25 de Fevereiro de 2009, foi tomado compromisso de honra a Maria (…), como então se identificou, na qualidade de cabeça-de-casal, prestando as pertinentes declarações, requerendo a cabeça-de-casal prazo para apresentação da relação de bens, o que lhe foi concedido.

A 27 de Março de 2009, a cabeça-de-casal ofereceu a relação de bens bem como os documentos que a instruem, informando que o de cujus foi o único e universal herdeiro da sua segunda esposa, não tendo por esse facto sido celebrada escritura de partilha dos bens deixados por óbito desta.

A(…) e seu esposo, no regime da comunhão geral, (…) vieram deduzir oposição ao inventário requerendo a suspensão da instância em virtude de pretenderem instaurar acção judicial para declaração de nulidade de doação realizada a 02 de Outubro de 2002 e impugnaram a relação de bens no que respeita as verbas 10 e 11, em virtude da opoente não ter ratificado a gestão de negócios em seu nome e alegado interesse e exercida pela cabeça-de-casal aquando da celebração da escritura pública de doação, no que respeita as verbas 6, 7, 8 e 9, em virtude da invalidade e ineficácia da aludida doação, suscitaram a omissão de relacionação da verba nº 2 descrita na escritura de doação, acusaram a falta de descrição de quatro bens móveis, negando que as verbas 37 a 40 estivessem na posse da opoente, afirmando que as verbas 42, 44, 45 e 46 estão ainda na casa onde o falecido viveu e que a verba nº 46 foi entregue à filha da opoente pela cabeça-de-casal, como se tratasse de uma liberalidade.

A cabeça-de-casal veio pronunciar-se sobre o requerimento oferecido por A (…) e (…) afirmando que a questão suscitada não é uma daquelas que justifique a remessa para os meios comuns, já que a regra é a de que se resolvem no inventário todos os assuntos relacionados com a partilha, constituindo a remessa para os meios comuns uma excepção, sendo o caso dos autos de simplicidade manifesta, afirmou que os bens móveis cuja falta foi acusada pelos opoentes foram vendidos pelas irmãs, tendo o produto da venda sido dividido entre ambas, que o bem imóvel cuja falta de descrição foi acusada já não existe e que por lapso foi descrita a verba nº 11 que já foi partilhada pelas herdeiras nestes autos, concluindo pelo indeferimento do requerimento dos opoentes e pela condenação da opoente como litigante de má fé em multa e indemnização.

A 25 de Setembro de 2009, A (…) e (…)(vierem comprovar a instauração, no dia anterior, de acção declarativa contra a cabeça-de-casal tendo em vista a declaração de ineficácia ou de invalidade da escritura pública de doação celebrada a 02 de Outubro de 2002.

A 18 de Outubro de 2009, foi proferido despacho onde se exarou que por serem objecto de litígio seis dos nove imóveis relacionados, tendo os restantes bens móveis pouco valor, ao abrigo do disposto nos artigos 1335º, nº 2, 276º, nº 1, alínea c) e 279º, nº 1, todos do Código de Processo Civil, declarou a suspensão da instância no processo de inventário até ser proferida decisão na acção ordinária nº 1476/09.6T2AVR.

A 06 de Novembro de 2009, inconformada com a decisão proferida a 18 de Outubro de 2009, a cabeça-de-casal interpôs recurso de apelação contra essa decisão oferecendo as seguintes conclusões:

1. O Tribunal não pode ordenar a suspensão, se a propositura da acção prejudicial tiver tido exclusivamente em vista obter a suspensão, como é o caso dos autos, pelas razões acima descritas que são ponderosas e objectivas.

2. Não é de decretar a suspensão da instância quando se afigure de todo provável que a acção prejudicial vai ser julgada improcedente.

3. Não consta dos autos, prova bastante (mormente certidão judicial) de que a acção prejudicial foi, de facto, proposta, não sendo suficiente a fotocópia da p.i. junta, que apenas indicia que “aquela terá dado entrada”, o que nada quer dizer.

4. O regime do processo de inventário deve observar o princípio da celeridade processual.

5. Considerando o tempo previsível da decisão da acção prejudicial, nunca inferior a 3/4 anos, os prejuízos da suspensão superam as vantagens, não podendo esta ser decretada.

6. Ao não decidir como vem de dizer-se, violou o douto despacho recorrido, salvo melhor opinião, o disposto nos arts. 1335º, nº 2, 276º, nº 1, todos do CPC, pelo que deve ser revogado, com as legais consequências.

Os recorridos ofereceram contra-alegações em que pugnam pela total confirmação do despacho sob censura.

Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.

2. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigo 684º, nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil

As questões a decidir são a de saber se a acção que motivou a prolação da decisão sob censura de suspensão da instância nestes autos com fundamento em pendência de causa prejudicial foi intentada apenas para obter essa decisão, se essa acção vai ser provavelmente julgada improcedente e ainda se os prejuízos decorrentes da suspensão da instância no inventário superam as vantagens da mesma.

3. Fundamentos de facto resultantes de prova documental autêntica junta a folhas 5 e 6 e 20 a 24 destes autos, das declarações da cabeça-de-casal prestadas a 25 de Fevereiro de 2009, da relação de bens de folhas 15 a 19 na parte em que não é afectada pelo incidente suscitado pelos recorridos nestes autos, nos documentos de folhas 111 a 118 não impugnados pelos recorridos e nos documentos de folhas 85, 87 e 124 a 133 não impugnados pela cabeça-de-casal


3.1

            Manuel (…) faleceu no dia 24 de Julho de 2003, no estado de viúvo de (…) com quem foi casado em segundas núpcias, sem deixar testamento e deixando duas filhas, Maria (…), viúva e A (…), casada no regime da comunhão geral de bens com (…)

3.2

            No dia 02 de Outubro de 2002, no primeiro Cartório Notarial de ...., foi lavrada escritura pública onde foi exarado que Manuel (…), viúvo e (…)viúva, por si e como gestora de negócios de (…), aí compareceram, declarando o primeiro que era dono dos seguintes bens:

Um

            - metade indivisa do prédio rústico composto de terra de eucaliptos e pinhal, sito na (…), freguesia e concelho de (…), inscrito na matriz sob o artigo 2173, com o valor patrimonial correspondente à fracção de 25,71 €, descrito na Conservatória do Registo Predial de (…)sob o número seiscentos e quatro, registada a metade indivisa a favor do doador pela inscrição G-dois;

Dois

            - Rústico, composto de terreno de lavradio, sito à (…), concelho de ...., inscrito na matriz sob o artigo ...., com o valor patrimonial de 116,59 €, descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o número sessenta e três, registado a favor do doador pela inscrição G-um;

Três

            - Urbano, composto de casa de rés-do-chão, sito no lugar e freguesia de ...., concelho de ...., inscrito na matriz sob o artigo ...., com o valor patrimonial de 1692,32 €, descrito na Conservatória do Registo Predial de .... sob o número sessenta e seis, registado a favor do doador pela inscrição G-um;

Quatro

            - Rústico, composto de terra de junco, sito às pedras, (…) inscrito na matriz sob o artigo ...., com o valor patrimonial de 47,19 €, descrito na Conservatória do Registo Predial de .... sob o número setecentos e catorze, registado a favor do doador pela inscrição G-um;

Cinco

            - Rústico, composto de terra de junco, sito às pedras(…) inscrito na matriz sob o artigo ...., com o valor patrimonial de 27,53 €, descrito na Conservatória do Registo Predial de .... sob o número setecentos e quinze, registado a favor do doador pela inscrição G-um;

Seis

            - Rústico, composto de terra de Lavoura, sito à (…) freguesia da (…) concelho de (…), inscrito na matriz sob o artigo ...., com o valor patrimonial de 51,42 €, descrito na Conservatória do Registo Predial de .... sob o número quatrocentos e trinta e oito, registado a favor do doador pela inscrição G-um.

3.3

            No dia e local referido em 3.2, Manuel (…) declarou que com reserva de usufruto, por força da quota disponível, doava a (…)os prédios identificados em 3.2 sob os números um, três, cinco e seis e metade indivisa do prédio identificado sob o número dois e à representada de (…), (…), metade indivisa do prédio identificado sob o número dois e o prédio identificado sob o número quatro, declarando (…)que nas qualidades em que intervém aceita as respectivas doações, sendo os outorgantes advertidos pelo Sr. Notário na presença do qual foram emitidas as declarações de que o acto era ineficaz em relação à dona do negócio enquanto não for por ela ratificado.

3.4

            Além dos bens imóveis mencionados em 3.2 foram descritos nestes autos um prédio rústico com o valor patrimonial de € 109,82 e dois prédios urbanos com os valores patrimoniais de, respectivamente, € 12.878,57 e € 2.446,93, duas sepulturas com os valores de € 150,00 e € 300,00, respectivamente e trinta e cinco[1] verbas móveis a que foram atribuídos valores que totalizam € 1.185,00.

3.5

            No dia 03 de Outubro de 2005, no Cartório Notarial do Licenciado ...., em ...., foi lavrada escritura pública de partilha intitulada de “Permuta, Hipoteca e Partilha e onde foi exarado que aí compareceram, como primeiros outorgantes, (…), viúva, (…) e marido (…), casados sob o regime da comunhão geral de bens e como segundos outorgantes, (…), (…) e (…), estes na qualidade de únicos sócios e em representação da sociedade “(…)Lda.”, declarando todos que entre os primeiros outorgantes e a representada dos segundos outorgantes é feita a seguinte permuta:

A) os primeiros outorgantes cedem e transferem para a representada dos segundos outorgantes, no valor de quinhentos mil euros, o seguinte prédio, integrante da herança deixada por óbito de Manuel (…) de quem as outorgantes mulheres foram declaradas únicas herdeiras, conforme escritura de habilitação abaixo referida:

- Urbano, composto de terreno destinado a construção, com a área de mil oitocentos e sessenta metros quadrados e seis decímetros quadrados, sito (…)freguesia de ...., concelho de ...., omisso à matriz, com participação para sua inscrição feita em trinta de Setembro de dois mil e cinco, tendo-lhe sido atribuído o artigo P-2.426 (anteriormente inscrito na matriz rústica sob o artigo número ...., o qual por sua vez, foi o anterior artigo rústico 2.224 da freguesia da Glória) descrito na Conservatória do Registo Predial de .... sob o número sessenta e três, registado a favor do referido Manuel (…), pela inscrição G-um, devendo-se a divergência entre a inscrição matricial e a descrição predial, quanto à área do prédio, a simples erro de medição, sendo a área correcta aquela que acima se indicou.

B) Os segundos outorgantes em nome da sua representada, no valor global de quinhentos mil euros, cedem e transferem para os primeiros outorgantes, para integrar a referida comunhão hereditária, as seguintes fracções autónomas, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal que irá ser construído e implantado nos lotes números seis, sete e dez, resultantes do loteamento que vier a ser aprovado, o qual integra vários prédios, incluindo o atrás objecto desta permuta:

- habitação tipo T-dois, situada no penúltimo andar com uma garagem, localizada na cave, à qual atribuem o valor de cento e dez mil euros;

- habitação tipo T-dois, situada no penúltimo andar com uma garagem, localizada na cave, à qual atribuem o valor de cento e dez mil euros;

- habitação tipo T-três duplex, situada no último andar com uma garagem localizada na cave e um arrumo, à qual atribuem o valor de cento e quarenta mil euros;

- habitação tipo T-três duplex, situada no último andar com uma garagem localizada na cave e um arrumo, à qual atribuem o valor de cento e quarenta mil euros;

- Localizadas, um T-dois e um T-três duplex, no lote dez, um T-dois no lote sete e um T-três duplex no lote seis.

- Que a sociedade se obriga a efectuar a entrega das fracções supra referidas devidamente concluídas e aprovadas pelas vistorias das entidades competentes realizadas com vista à obtenção das licenças de utilização na Câmara Municipal de ...., devolutas e livres de quaisquer outros ónus ou encargos, nos prazos a seguir indicados com referência à celebração desta escritura e à aprovação dos respectivos projectos de construção pela Câmara Municipal de ...., dos edifícios onde se situam as fracções:

- o T-três duplex situado no último andar do lote seis, no prazo de dois anos e meio;

- o T-dois situado no penúltimo andar do lote sete, no prazo de dois anos e meio;

- o T-dois e o T-três duplex situados respectivamente no penúltimo e último andar do lote dez, no prazo de três anos e meio.

- Que todas as demais condições acordadas são as que constam do documento arquivado hoje neste Cartório, no maço de documentos relativo a instrumentos avulsos registados, documentos que lhes respeitem e documentos arquivados a pedido das partes, do ano em curso, onde constitui o documento número dezasseis.

- Disseram mais os segundos outorgantes, em nome da sua representada:

- Que pela presente escritura, a sociedade que representam, constitui hipoteca a favor dos primeiros outorgantes sobre o prédio urbano atrás identificado, provisoriamente inscrito na matriz urbana sob o artigo P-2.426 e adquirido por esta escritura de permuta, para garantia da entrega aos mesmos primeiros outorgantes dos prédios (futuras fracções autónomas) que constituem a sua prestação na permuta supra, prédios esses que totalizam o valor de quinhentos mil euros;

- Que esta hipoteca não vence juros e durará por todo o tempo em que durar a obrigação de entrega dos referidos bens futuros, cujo prazo foi estabelecido em contrato apresentado neste Cartório a cujo arquivamento já atrás se aludiu, o qual fará parte integrante desta escritura em tudo aquilo que a ela disser directamente respeito e poderá ser executada logo que vencida definitivamente a obrigação cujo incumprimento assegura.

Disseram ainda os primeiros outorgantes:

- Que aceitam a hipoteca, nos termos exarados; e ainda que por esta mesma escritura e relativamente aos bens acima recebidos nesta permuta fazem a sua partilha, que é necessariamente parcial, pela forma seguinte:

- Que como consta da escritura de hoje, iniciada a folhas --- deste livro, no dia vinte e quatro de Julho de dois mil e três, na freguesia e concelho de Vagos, faleceu, sem ter feito testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, (…)natural da freguesia de Ílhavo (S. Salvador), concelho de Ílhavo, com última residência habitual na (…),  freguesia de ...., concelho de ...., no estado de viúvo de (…)tendo deixado a suceder-lhe, como únicas e universais herdeiras as outorgantes (…) e (…);

- Que perfazendo os bens a partilhar o valor de quinhentos mil euros, cada uma das interessadas tem direito a um quinhão no valor de duzentos e cinquenta mil euros;

- À primeira outorgante (…), são adjudicados o T-dois e o T-três duplex situados respectivamente no penúltimo e último andares do lote dez, no valor de duzentos e cinquenta mil euros, ficando assim preenchido o seu quinhão;

- À primeira outorgante (…) e marido são adjudicados o T-dois situado no penúltimo andar do lote sete e o T-três duplex situado no último andar do lote seis, no valor de duzentos e cinquenta mil euros, ficando assim preenchido o seu quinhão.


3.6

            Com datas de 05 de Setembro de 2008 e 15 de Dezembro de 2008, o Sr. Dr(…) remeteu cartas à cabeça-de-casal nestes autos em que se alude ao “distrate” da doação e a “dar sem efeito a doação”.     

            4. Fundamentos de direito

No âmbito dos incidentes de oposição ao inventário e da impugnação da legitimidade, regulado no Código de Processo Civil, na redacção anterior à introduzida pelo decreto-lei nº 227/94, de 08 de Setembro previa-se que “se para decidir qualquer das questões suscitadas houver necessidade de mais larga indagação, serão os interessados remetidos para o processo comum.

Neste caso, quando se trate de oposição ao inventário, fica este suspenso até que se decida definitivamente, tendo a impugnação de legitimidade a mesma consequência após a descrição dos bens; mas quando se trate de simples impugnação da competência do cabeça-de-casal, o inventário continua validamente com o impugnado” (artigo 1332º, nº 3, do Código de Processo Civil, na citada redacção).

Nessa altura, não existia uma previsão legal que no domínio do processo de inventário previsse a suspensão com base na ocorrência de questões prejudiciais.

No nº 1, do artigo 1335º, do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pelo decreto-lei nº 227/94, de 08 de Setembro, redacção que é aplicável aos presentes autos[2], tendo em vista dissipar a controvérsia quanto à suspensão do inventário por existência de questões prejudiciais[3] prevê-se que se na pendência do inventário[4] se suscitarem questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo de inventário ou a definição dos direitos dos interessados directos na partilha que, por força da sua natureza ou da complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas, o juiz determina a suspensão da instância, até a ocorrência de decisão definitiva, remetendo as partes para os meios comuns, logo que os bens se mostrem relacionados.

Além disso, o nº 2, do artigo 1335º do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos, dispõe que pode “ainda ordenar-se a suspensão da instância, nos termos previstos nos artigos 276º, nº 1, alínea c) e 279º, designadamente quando estiver pendente causa prejudicial em que se debata alguma das questões a que se refere o número anterior.”

            Por isso, no ambiente normativo em que estes autos se enquadram, é impertinente a citação de decisão jurisprudencial deste Tribunal da Relação, de 13 de Julho de 1993, num quadro normativo diverso e em que precisamente se discutia a possibilidade de suspensão do processo de inventário com fundamento em existência de causa prejudicial.

            Aliás, se bem atentarmos nas conclusões das alegações do recurso, não constitui objecto do mesmo a inexistência de uma causa prejudicial, mas sim e apenas a circunstância dessa causa prejudicial ter sido instaurada apenas para obter a suspensão destes autos, da acção prejudicial ser provavelmente improcedente e de os prejuízos decorrentes da suspensão destes autos superarem as vantagens de tal suspensão.

            De facto, se a acção declarativa que motivou a suspensão da instância proceder, a partilha entre as duas herdeiras nestes autos será totalmente igualitária, enquanto que se subsistir válida e eficaz a doação que motiva a controvérsia entre as partes, a cabeça-de-casal terá, pelo menos, uma parte maior da quota disponível do de cujus podendo até dar-se o caso de se registar inoficiosidade da doação a favor da cabeça-de-casal. Neste contexto, não oferece dúvida que a questão da validade e eficácia da doação celebrada a 02 de Outubro de 2002 contende com a definição dos direitos das duas únicas herdeiras do de cujus e do cônjuge meeiro de uma delas, únicos interessados directos na partilha objecto destes autos.

            A simples circunstância da acção que determinou a suspensão da instância ter sido instaurada vários meses após a instauração do processo de inventário não é bastante para concluir que foi unicamente instaurada para obter a suspensão destes autos.

            Antes de mais, refira-se que a verificação da questão prejudicial que os recorridos suscitaram no incidente que impropriamente denominaram de oposição ao inventário, era por si só fundamento bastante para nos termos do nº 1 do artigo 1335º do Código de Processo Civil, determinar a suspensão da instância, até decisão definitiva da questão suscitada, com remessa das partes para os meios comuns, logo que os bens se mostrassem relacionados.

Na verdade, colocando-se questões que têm a ver com uma alegada “incapacidade de exercício” do doador, com um alegado “distrate” da doação por parte das donatárias e com um alegado exercício abusivo de direito por parte da cabeça-de-casal nestes autos, parece patente que são questões que pela sua natureza não se compadecem com uma sua decisão incidental, em sede de inventário, com os inerentes constrangimentos probatórios (vejam-se os artigos ....º e 304º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil).

            A correspondência que foi trocada com a cabeça-de-casal dá conta de que antes da instauração destes autos as partes discutiram a questão da manutenção da doação, pelo que não é lícito inferir que pelo simples facto da acção ter sido instaurada vários meses após a propositura da acção que o foi apenas por motivos chicaneiros, não sérios e apenas para determinar a paragem destes autos.

            A partilha parcial a que todos os interessados nestes autos já procederam (vejam-se os factos provados em 3.5) revela que não consideraram nesse acto a doação do prédio que foi objecto de permuta em partes iguais a ambas as herdeiras, o que pode constituir um sinal de que as partes, ao menos em certa altura, estavam dispostas a fazer “tábua rasa” da doação celebrada a 02 de Outubro de 2002.

            Assim, face ao que precede, não existem elementos de facto que apontem no sentido de que a acção declarativa instaurada a 24 de Setembro de 2009 o foi unicamente para obter a suspensão destes autos, tanto mais que a questão já havia sido suscitada incidentalmente e por força do disposto no artigo 1335º, nº 1, do Código de Processo Civil, a consequência jurídica seria similar.

            Vejamos agora se existem elementos para afirmar, como afirma a recorrente, que é de todo provável que a acção prejudicial vai ser julgada improcedente.

            Na nossa perspectiva, a simples circunstância do de cujus ter já falecido a 24 de Julho de 2003, só por si, não constitui obstáculo à invalidação de negócios em que teve intervenção com fundamento na sua incapacidade de exercício, rectius com base em incapacidade acidental (artigo 257º do Código Civil).

            De todo o modo, na acção que foi tida como causa prejudicial na decisão sob censura, são invocadas outras causas de pedir para colocar em crise a eficácia da doação celebrada a 02 de Outubro de 2002, como seja a renúncia de cada uma das herdeiras à posição jurídica derivada da doação em causa e a existência de uma conduta abusiva porque ofensiva da boa-fé por parte da cabeça-de-casal.

A exclusão da verba nº 2 do pedido formulado na acção que foi considerada prejudicial pelo tribunal a quo, ao invés do que afirma a recorrente, não significa qualquer conformação com a doação, porquanto, como ressalta do exarado em 3.5 dos fundamentos de facto e do que já anteriormente se escreveu, na partilha parcial realizada a 03 de Outubro de 2005 não foi feita qualquer referência à doação da verba permutada e, quer a recorrente, quer os recorridos declararam que o imóvel que permutaram se integrava na herança aberta por óbito de Manuel (…), nenhuma alusão tendo sido feita ao facto desse imóvel lhes ter sido doado pelo de cujus.

            A procedência de todas ou de algumas das causas de pedir invocadas na acção que foi considerada causa prejudicial depende de prova a produzir e seria temerário face aos factos invocados e sem qualquer prova produzida afirmar que essa acção será provavelmente improcedente. Porque a recorrente ainda não exerceu nessa acção o contraditório desconhece-se se vai ser deduzida defesa por excepção, suscitando-se novas questões a decidir.

            Apreciemos finalmente se os prejuízos decorrentes da suspensão destes autos sobrelevam as vantagens inerentes a essa decisão.

            Para o preenchimento deste invocado obstáculo à suspensão destes autos, a recorrente alega que a acção declarativa que motivou a prolação da decisão de suspensão da instância demorará três a quatro anos a decidir enquanto os presentes autos poderiam concluir-se num prazo de três a quatro meses. Porém, neste cômputo da duração provável destes autos, não fora a suspensão da instância sob censura, a recorrente olvida que ainda não foi decidido o incidente suscitado pelos recorridos e que nesta sede ainda há prova a produzir, pelo que a duração invocada pela recorrente padece de evidente optimismo.

            Nos presentes autos pretende-se partilhar a herança aberta por óbito de Manuel (…), falecido a 24 de Julho de 2003.

O presente processo foi instaurado pela recorrente a 27 de Janeiro de 2009, ou seja cerca de cinco anos e meio depois após o óbito do de cujus.

Neste circunstancialismo, é manifesto que nenhuma das partes nestes autos se preocupou em obter uma decisão judicial célere da controvérsia que as separa e por isso, afigura-se algo desajustada a invocação da previsível demora processual da acção declarativa para dilucidação da eficácia e validade da doação celebrada a 02 de Outubro de 2002.

O incidente suscitado pelos recorridos e que ainda não foi objecto de decisão, como já antes se escreveu, tinha por si só a virtualidade de determinar a suspensão do processo de inventário, desta feita com base no disposto no nº 1, do artigo 1335º do Código de Processo Civil.

A determinação e o preenchimento da quota disponível da herança do de cujus bem como a verificação de inoficiosidade da doação cuja validade e eficácia é controvertida dependem do resultado da acção que determinou a suspensão da instância nestes autos.

            Assim, por tudo quanto precede, não existe base segura e inequívoca para concluir que a suspensão destes autos causará mais prejuízos do que as vantagens decorrentes de tal decisão.

Ao invés, face ao direito aplicável (artigo 1335º, nº 1, do Código de Processo Civil), tudo aponta no sentido de que a decisão do incidente fosse exactamente no sentido da suspensão destes autos, com remessa dos interessados para os meios comuns, mesmo sem a pendência de causa prejudicial. Daí que, ao contrário do afirmado pela recorrente, até exista base para afirmar que a instauração da acção, a 24 de Setembro de 2009, sem que o tribunal a quo ainda tivesse decidido o incidente suscitado pelos recorridos, constituiu um factor de maior celeridade processual, antecipando-se a remessa para os meios comuns que necessariamente resultariam de uma decisão fundada no disposto no nº 1, do artigo 1335º do Código de Processo Civil.

Por tudo quanto precede conclui-se pela total improcedência do recurso de apelação.

5. Dispositivo

Face ao exposto, acordam, em conferência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto nestes autos por (…) e, em consequência, em confirmar integralmente a decisão sob censura.

Custas do recurso de apelação pela recorrente.


[1] Aparentemente foram relacionadas trinta e seis verbas móveis. Porém, atentando na relação de bens verifica-se que a verba nº 25 não corresponde qualquer bem e por isso são apenas trinta e cinco as verbas móveis relacionadas.
[2] A Lei nº 29/2009, de 29 de Junho aprovou um novo regime jurídico do inventário que determina uma certa desjudicialização do processo de inventário, regime que, a não ser objecto de novo adiamento ou de revogação, entrará em vigor a 18 de Julho de 2010 (veja-se o artigo 87º, nº 1, da Lei nº 29/2009, na redacção introduzida pela Lei nº 1/2010, de 15 de Janeiro). 
[3] Sobre o estado da questão antes da entrada em vigor do decreto-lei nº 227/94, de 08 de Setembro, veja-se, Partilhas Judiciais, Volume I, Almedina 1990, João António Lopes Cardoso, páginas 202 a 210.
[4] O inventário deve considerar-se pendente desde a sua propositura (artigo 267º, nº 1, do Código de Processo Civil).