Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1386/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: SOUSA PINTO
Descritores: PRIVAÇÃO ILEGÍTIMA DO USO DE LOCADO
RESPONSABILIDADE CIVIL
DANOS PATRIMONIAIS
EQUIDADE
Data do Acordão: 11/23/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CASTELO BRANCO - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 566º, Nº 3, 1045º, 1051º, AL. D), 1053º E 2068º DO CÓDIGO CIVIL E ARTIGOS 66º E 85º DO RAU.
Sumário: I – a privação ilegítima do uso de locado cria, em regra, um dano patrimonial passível de ser indemnizado;
II – Mesmo que não se prove que o proprietário no decurso do período em que esteve privado do seu imóvel o teria arrendado, não está afastado o seu direito a ser indemnizado, com base em juízos de equidade que tenham em conta, designadamente, o valor da fracção autónoma no mercado de arrendamento.
Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra,

I – RELATÓRIO

A... e B... vieram intentar a presente acção declarativa de condenação com forma de processo sumário contra C..., D..., E..., F...., G..., H..., I..., J..., K..., L..., M..., N..., O...., P..., pedindo a condenação dos réus no pagamento de indemnização não inferior ao montante de € 3.740,98, acrescida de juros legais vencidos, do quantitativo de € 530,91 e dos que se vencerem sobre o montante de € 3.740,98, a partir da citação do réus, até integral pagamento.
Para tal alegam os autores que são donos de uma fracção autónoma, objecto de contrato de arrendamento, que veio a caducar por morte dos locatários. Contudo, o réu Manuel Pinto, acompanhado de alguns sobrinhos do falecido locatário, arrogaram-se o direito de sucederem na herança deixada pelos de cujos e tomaram posse do arrendado, levando consigo as chaves do mesmo.
Os autores redigiram uma carta, recebida por todos os réu com excepção do Manuel Pinto, onde exigiram uma indemnização mensal pela ocupação da dita fracção a partir de Janeiro de 2000, não inferior ao valor locativo da fracção, que computaram em quantia não inferior a 50.000$00, mais tendo declarado que preferiam a entrega rápida do locado ao recebimento da fracção, porquanto careciam da casa para habitação própria e de uma filha.
Os réus, contudo, só entregaram o locado em 16 de Maio de 2001, juntamente com um cheque no valor de 54.343$, para pagamento da renda em dívida desde Janeiro de 2000 a Maio de 2001.
Os autores devolveram tal quantia, por entenderem que não lhes é devido o pagamento das rendas referenciadas mas indemnização pela privação da fracção durante o período de tempo decorrido entre Janeiro de 2000 a Maio de 2001, correspondente ao valor locativo do imóvel, actualizado.
Contestando referem os réu que, nos casos de caducidade do contrato de arrendamento, a restituição do prédio só pode ser exigida três meses após a verificação do facto que determina a caducidade; nunca tomaram posse do andar, tendo sido a P.S.P. de Castelo Branco que, depois de ter feito as averiguações necessárias, fez a entrega do locado ao réu Manuel Pinto; os autores não têm direito a qualquer indemnização já que os réus não tinham qualquer legitimidade para entregarem o andar em data anterior àquela em que fizeram, em virtude de ter sido intentada uma acção pelo Ministério Público para que se declarasse vaga a favor do Estado a herança deixada por óbito de Fernanda Pinto.
A fls. 171 os autores impugnaram a força probatória do documento junto com a contestação.
Foi proferido despacho saneador e seleccionada a matéria de facto assente e a matéria controvertida, nos termos que constam de fls. 174 e seguintes.
A fls. 181 foi requerida a rectificação de lapsos de escrita detectados em tal despacho, o que foi deferido, o mesmo tendo acontecido no início do julgamento.
Procedeu-se a audiência de julgamento, com observância do legal formalismo, nos termos que constam da respectiva acta.
O Tribunal respondeu à matéria levada à Base Instrutória, nos termos que constam de fls. 259 e seguintes, sem que qualquer das partes tenha deduzido reclamações.
Foi proferida sentença, que julgou parcialmente procedente e provada a acção e, em consequência, condenou o réu C... a pagar aos autores A... e B... a quantia de € 271,53 (54.434$00), acrescida de juros vencidos desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento, à taxa legal 7% ao ano até ao dia 13-04-2003 e a 4% a partir dessa data, até efectivo e integral pagamento, por força da entrada em vigor da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, que revogou a Portaria n.º 263/99, de 12 de Abril, absolvendo-o do demais peticionado; Tal decisão absolveu ainda os demais réus do pedido contra eles formulado.
Inconformados com tal sentença, vieram os autores recorrer da mesma, tendo nas suas alegações de recurso apresentado as seguintes conclusões:
a) Os A.A. são legítimos donos e possuidores da fracção L, correspondente ao 3.º andar frente, servindo de habitação, do prédio identificado no artigo 1.° da P.I., em virtude de a haverem comprado, no dia 14/5/1984, a Maria Teresinha Domingos Reis Sanches, por escritura identificada no mesmo artigo.
b) A referida fracção tinha sido dada de arrendamento ao de cujus José Ferreira Pinto exclusivamente para a habitação, por Maria Teresinha Domingos Reis Sanches e António de Azevedo Afonso, pelo prazo de um mês, renovável, por contrato, reduzido a escrito, de 2/6/1971.
c) O José Ferreira Pinto consorciou-se em 19/6/1979, com Maria Fernanda Dias Rodrigues, em 2as núpcias dele e 1.as dela, no regime imperativo de separação de bens.
d) Em 27 de Novembro de 1999, ambos faleceram: o José Ferreira Pinto às 8 horas e 15 minutos e a Maria Fernanda Dias Rodrigues, às 8 H 10 m.
e) Ela faleceu sem quaisquer descendentes ou ascendentes vivos, tendo-lhe sucedido, por vocação da lei, como seu único herdeiro, seu marido, José Ferreira.
f) Este deixou, como herdeiros, o seu irmão, o Réu, C... e os restantes Réus, sobrinhos daquele, melhor identificados nos artigos 40° e 41° da P.I. e no cabeçalho da mesma.
g) Não existiam pessoas a quem pudesse ser transmitido o direito a habitação, na fracção locada, nos termos do artigo 85° do RAU.
h) Assim, o contrato caducou, ope legis, no momento do óbito do José Ferreira Pinto, nos termos do disposto no artigo 1051°, al. d) do Código Civil.
i) Nos termos do estatuído no artigo 1053° do C. Civil, os herdeiros dos de cujus deviam ter restituído aos Autores, ora apelantes, a dita fracção, até 27/2/2000.
j) Os apelados só restituíram aos apelantes a fracção locada em 16 de Maio de 2001.
k) Restituição que devia ter lugar sem necessidade de qualquer notificação para tal, dos apelados, em virtude, repete-se, de se tratar de extinção do Contrato por caducidade, o mesmo é dizer, OPE LEGIS.
l) No entanto, através da carta registada com A.R., endereçada a diversas entidades e datada de 14/7/2000, que constitui o seu documento n.º 4, junto com a PI, os ora apelantes informaram tais entidades, entre elas, o ilustre patrono dos apelados, Dr. António Manuel Soares Videira, de que careciam, com urgência, da fracção locada para a sua habitação e de uma filha.
m) Sendo certo que os apelantes ocuparam a casa logo que lhes foi entregue pelos apelados, até porque a casa onde viviam tinha diminutas habitações (Vide ponto 21° da Fundamentação Fáctica) e a filha do casal, Cristina Maria Diogo Catarino, funcionária dos C.T.T., em Lisboa, passou a habitar a dita fracção com uma filha de 2 anos de idade, logo que obteve a sua transferência para os serviços da mesma entidade em Castelo Branco (Vd. pontos 22 e 23 da FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA).
n) Tendo a carta aludida em l), sido endereçada ao cabeça de casal das mencionadas heranças, o Réu C..., sob registo e com A.R., para a sua residência, e tendo os serviços dos C.T.T. cumprido todas as formalidades legais para a entrega da Carta, sem êxito, deve o mesmo Manuel da Silva ser considerado como notificado do conteúdo da mesma carta, em virtude de a não ter recebido, por culpa sua, nos termos do artigo 224°, n°2 do C. Civil.
o) Não foram julgados como justificados, nem o são, efectivamente, os motivos alegados pelos Réus para não entregarem aos Autores, atempadamente, a fracção locada, designadamente, o facto de estar a correr os seus termos, no 3° Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Castelo Branco, sob o n.° 254/01, a acção referida nos pontos 8 e 9 da matéria de facto dada como provada pela douta sentença recorrida (Vide FUNDAMENTAÇÃO, al. A, 8 e 9).
p) Sendo assim, assiste aos apelantes o direito de receber dos apelados a indemnização prevista no artigo 1045.° do C. Civil, correspondente ao valor locativo actual da fracção arrendada, no entendimento da doutrina e jurisprudência aplicáveis, no caso vertente.
q) Actualização a operar nos termos do artigo 9.º do Código Civil. considerando as circunstâncias em que o artigo 1045.° do C. Civil foi elaborado, designadamente, a data e a desvalorização do escudo desde 2 de Junho de 1971, data do contrato de arrendamento, e o tempo presente.
r) Indemnização do montante de 3.202$00, nos meses de Dezembro de 2000, Janeiro e Fevereiro de 2001, em vigor à data do decesso dos de
cujus e 50 000$00 nos meses de Março de 2001 a Maio de 2002 (Vide artigo 1053° do C. Civil).
s) Assim, devem os apelados, e não apenas o apelado C... pagar, solidariamente, aos apelantes a quantia de 759.606$00,
acrescida dos juros, á taxa legal, a contar da sua citação na presente acção, até efectivo pagamento da referida quantia.
t) É que, embora tenha sido o C... o herdeiro que, na qualidade de cabeça de casal, reteve as chaves do locado, desde o
óbito dos de cujus (em 27/11/1999), até 16/5/2002, trata-se de uma dívida da herança, pelo que, nos termos do artigo 2068.° do C.Civil. todos os herdeiros são solidariamente, responsáveis pelo seu pagamento, porquanto aceitaram a herança, pura e simplesmente (artigo 2052.° do C. Civil), como se mostra da contestação da presente
acção.
u) A douta sentença por erro de interpretação e aplicação violou, entre outras disposições legais, os artigos 1052.°, al. d), 1053.°, 1045.° e 2068.° do C. Civil.
v) Deve, consequentemente, ser revogada, substituindo-se por acórdão a proferir de harmonia com o conteúdo das presentes conclusões.

*
O apelado, C..., apresentou as suas contra-alegações, nas quais sustenta não ser devida a indemnização pedida pelos recorrentes, defendendo ainda que os juros em que foi condenado não são devidos, dado não ter entrado em mora e finaliza, referindo que os demais RR não deveriam ter sido absolvidos, antes deveria ter-se verificado a sua condenação solidária, com o ora apelado.

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO;
QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as várias questões colocadas pelos recorrentes, sendo certo que o objecto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos artigos 660.º, n.º 2, 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso em apreço, os recorrentes não impugnam a matéria de facto, sendo que o recurso se cinge à matéria de direito.
Vejamos então quais as questões a conhecer:

a) Da indemnização
b) Da obrigação solidária de indemnizar

III - FUNDAMENTOS

1. De facto

São os seguintes os factos que foram dado como provados na sentença e que aqui teremos de considerar:

1. Os autores são donos e legítimos possuidores da fracção autónoma designada pela letra “L”, correspondente ao 3.º andar frente, servindo de habitação, do prédio em regime de propriedade horizontal, sito na Quinta das Pedras, cidade, freguesia e concelho de Castelo Branco, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 4309 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Castelo Branco sob o n.º 217/180185-L, em virtude de a haverem comprado, no dia 14/05/1984, a Maria Teresinha Domingos Reis Sanches, por escritura lavrada de fls. 99 V a 100 e de IV a 2, do Livro de Notas para Escrituras diversas, respectivamente, n.º 297 A, do 2.º Cartório Notarial de Castelo Branco.
2. A referida fracção tinha sido dada de arrendamento pela vendedora Maria Teresinha Domingos Reis Sanches e por António de Azevedo Afonso, senhorios, a José Ferreira Pinto, exclusivamente para sua habitação, por contrato reduzido a escrito datado de 2 de Junho de 1971, com início em 1 de Janeiro do mesmo ano, e pelo prazo de um mês, renovável, mediante a renda de 500$00, a pagar, nesta cidade, em casa do senhorio, no primeiro dia útil do mês anterior àquele que respeitar.
3. O inquilino contraiu matrimónio em 19 de Junho de 1979 com Maria Fernanda Dias Rodrigues, no regime de separação de bens, tendo ambos falecido em 27 de Novembro de 1999.
4. Dos assentos de óbito respectivos consta que o marido faleceu às 8 horas e 1 minutos de 27-11-1999, e a mulher faleceu às 8 horas e 2 minutos do mesmo dia.
5. Os falecidos José Ferreira Pinto e Maria Fernanda Dias Rodrigues viviam sozinhos e nenhum deles deixou descendentes ou ascendentes.
6. A Maria Fernanda Dias Rodrigues não deixou qualquer parente sucessório, nem testamento ou disposição de última vontade.
7. O réu Manuel Silva Pinto, irmão do José Ferreira Pinto, e alguns dos sobrinhos deste vieram ao seu funeral, o qual ficou inumado no cemitério de Castelo Branco, fazendo-se acompanhar pelo Ilustre Advogado Sr. Dr. António Manuel Soares Videira, com escritório na Rua Francisco José Vitorino 8, 3.º Esq., Linda-a-Velha.
8. Em 18-04-2001 o Ministério Público nesta comarca intentou neste Tribunal, petição para Liquidação em Benefício do Estado da Herança de Maria Fernanda Dias Rodrigues Pinto, que correu termos no 3.º Juízo sob o n.º 254/01 e, nessa acção, vieram os herdeiros do de cujus José Ferreira Pinto, ora réus, contestar a titularidade do estado sobre as heranças em causa, juntando assento de óbito daquela Maria Fernanda onde se encontra averbada a rectificação de que o momento do seu falecimento ocorreu às 8 horas e 10 minutos do dia 27-11-1999 e o assento de óbito de José Ferreira Pinto em que é rectificado que este faleceu às 8 horas e 15 minutos.
9. A acção mencionada veio a ser julgada improcedente por sentença de 24 de Setembro de 2002, não tendo sido declarada vaga a favor do Estado a herança aberta por óbito de Maria Fernanda Dias Rodrigues Pinto.
10. Conforme consta da escritura de habilitação de herdeiros de fls. 45 a 49, a Maria Fernanda Dias Rodrigues Pinto não deixou descendentes nem ascendentes vivos, tendo-lhe sucedido como seu único herdeiro o marido, José Ferreira Pinto e os herdeiros deste foram: C..., na qualidade de seu irmão germano; os seus sobrinhos, Maria Adélia da Silva Araújo e Sá, E..., F... e G..., filhos de Maria Adélia, irmã germana do de cujus, pré- falecida; os seus sobrinhos H..., I..., J..., K..., L..., M..., P...Rodrigues Pinto Oliveira, N... e O..., filhos do irmão do autor da sucessão, pré-falecido, Claudino Ferreira Pinto.
11. A herança por óbito de José Ferreira Pinto foi constituída pelos móveis que se encontravam no locado e verbas pecuniárias depositadas na C.G.D., agência de Castelo Branco.
12. Os réus entregaram o locado em 16 de Maio de 2001, através de carta que C... enviou ao autor, datada de 14 de Maio do mesmo ano.
13. Nessa carta o réu enviou aos autores um cheque com a importância de Esc. 54.434$00, para pagar a renda em dívida desde Janeiro de 2000 a Maio de 2001, inclusive.
14. A última renda paga pelo José Ferreira Pinto, respeitante a Dezembro de 1999, ascendeu ao montante de 3.202$00.
15. Através de carta datada de 31 de Maio de 2001, com o teor de fls. 72/73 dos autos, os autores devolveram a quantia referida em 13. ao remetente.
16. Os autores enviaram a carta que consta de fls. 55 a 57, cujo teor aqui se reproduz na íntegra, datada de 10 de Março de 2000, sob registo datado de 14 de Julho de 2000, e com aviso de recepção, ao Sr. Procurador da República do Círculo Judicial de Castelo Branco, ao Sr. Director de Finanças do Distrito de Castelo Branco, ao Sr. Chefe da 1.ª Repartição de Finanças do concelho de Castelo Branco ao Sr. Dr. António Manuel Soares Videira e ao réu Manuel Silva Pinto.
17. O Manuel Pinto e os sobrinhos que compareceram ao funeral intitularam-se de herdeiros do de cujus.
18. E, depois do funeral, deslocaram-se para as suas residências, levando o Manuel Silva Pinto as chaves do locado.
19. A carta referida em 16. foi recebida por todos os destinatários, com excepção de Manuel Silva Pinto.
20. Em 2000 o valor da renda do locado, se a fracção entrasse no mercado de arrendamento, seria cerca de 50.000$00 mensais.
21. A casa onde os autores residem tem divisões com as áreas de 10,36 m2, 14,85 m2, 10,6 m2 e 10,55 m2, uma cozinha com área de 8,92, duas casas de banhos, também pequenas e os autores, depois de lhes ter sido entregue o locado, abriram uma porta da fracção onde residem para a fracção constituída pelo locado.
22. A filha dos autores, passou a residir com os pais em 2 de Dezembro de 2002 na fracção constituída pelo locado, com uma filha de 2 anos de idade.
23. A filha dos autores tinha solicitado a sua transferência para Castelo Branco, nos CTT, onde trabalha, já antes do falecimento dos de cujus, tendo conseguido a transferência na altura referida em 22.
24. As chaves do locado foram entregues ao Manuel Silva Pinto pela Polícia de Segurança Pública de Castelo Branco.

2 – De Direito

Apreciemos agora as diversas questões suscitadas pelos apelantes, nas suas doutas conclusões.

a) Da indemnização

Pretendem os recorrentes que este Tribunal condene o apelado no pagamento de uma indemnização, nos termos do disposto no art.º 1045.º, n.º 1, do Código Civil (adiante identificado tão só pelas letras CC), embora tendo em conta a necessidade de actualização das rendas devidas, a operar nos termos do artigo 9.º do Código Civil, considerando as circunstâncias em que o artigo 1045.° do CC foi elaborado, designadamente, a data e a desvalorização do escudo desde 2 de Junho de 1971, data do contrato de arrendamento, e o tempo presente (al. q) das conclusões de recurso).
O Senhor Juiz do Tribunal a quo, na sentença recorrida, referiu não haver lugar à aplicação da referida indemnização prevista no art.º 1045.º, n.º 1, do CC (posição que tem a nossa concordância), sendo certo porém que posteriormente veio defender a impossibilidade de, no caso, ser arbitrada uma indemnização baseada na responsabilidade extra-contratual, acabando por condenar o ora apelado no pagamento aos ora apelantes das rendas vencidas desde Janeiro de 2000 até Maio de 2001, no montante global de 54.434$00.
Afigura-se-nos que nenhuma das posições será a que melhor leitura faz dos normativos em causa.
Vejamos porquê.
Como dissemos já, parece-nos correcto o raciocínio desenvolvido pelo Senhor Juiz, no sentido de considerar que ao caso em apreço não será de aplicar a indemnização prevista no apontado art.º 1045.º, n.º 1, do CC, na medida em que esse normativo é aplicável às situações em que está em causa uma indemnização de natureza contratual.
Ora, no caso em apreço, o apelado e os seus co-réus não eram locatários da fracção, nem se encontravam em situação de poderem assumir essa qualidade, pois que não reuniam nenhuma das condições previstas no art.º 85.º do RAU (Regime do Arrendamento Urbano – Dec.-Lei n.º 321-B/90, de 15/10).
Por isso, a situação não se reconduz à previsão do citado art. 1045º, nº 1, nem é susceptível de aí ser acolhida por interpretação extensiva, visto que, concebendo-se nesse dispositivo legal um caso de indemnização de natureza claramente contratual, o mesmo só poderá ter aplicação quando esteja em causa a falta de restituição da coisa locada, por quem no respectivo contrato, já findo, tinha a posição de locatário, a quem nesse mesmo contrato assumia a posição de locador.
Na realidade, a finalidade deste normativo é a de possibilitar que em situações de atraso por parte do locatário na entrega da coisa locada, fique desde logo estabelecido o critério a fixar na indemnização a atribuir ao locador, pelo retardamento de tal entrega, valor esse que tem na sua génese o acordo de vontades das partes quanto ao montante da renda ou do aluguer. Entendeu-se que se os contraentes atribuíram à locação determinado valor, será na base do mesmo que a indemnização deverá ser arbitrada (em singelo ou em dobro, consoante haja ou não mora por parte do locatário), respeitando-se assim os seus critérios e vontades.
Ora, se esta é a lógica da indemnização prevista para o incumprimento contratual, na vertente de retardamento da entrega do locado, claramente se infere que para os casos de incumprimento extra- -contratual os critérios tenham de ser distintos, desde logo porque não se registou qualquer prévio acordo de vontades, pois que nenhum negócio jurídico foi celebrado entre as partes envolvidas. E, a ser assim, não poderá logicamente ser aplicável a essas outras situações, o disposto no art.º 1045.º do CC, que, como se viu, parte de pressupostos distintos.
Por isso, a responsabilidade do apelado para com os apelantes tem natureza extracontratual.
Mas, se até aqui nos encontramos de acordo com a posição que o Senhor Juiz do Tribunal a quo defendeu na decisão recorrida, já quanto às consequências que derivam dessa postura colocamo-nos em perfeita discordância com ele.
A questão tem a ver com a posição distinta que se tem face ao dano patrimonial resultante da privação do uso de um bem.
No Tribunal a quo entendeu-se que os lesados deveriam provar a concreta existência dos prejuízos decorrentes do não recebimento de rendas provenientes do arrendamento que realizariam se a fracção estivesse à sua disposição e não sob a alçada do apelado.
Defendemos que a simples privação ilegal do uso é em si mesmo um prejuízo de que o proprietário deverá ser ressarcido.
Com efeito, a privação do uso de uma coisa por quem detenha sobre a mesma o direito de propriedade, que desde logo pressupõe a faculdade de dispor da coisa de forma plena (o que inclui a possibilidade de até não a utilizar), constitui uma perda patrimonial que deve ser considerada, interessando apenas aquilatar qual o método adequado para quantificar esse dano e concomitantemente poder atribuir a indemnização correspondente, o que poderá inclusive passar pelo recurso a juízos de equidade.
Na realidade, sendo certo que apenas os danos concretos são passíveis de ser ressarcíveis, consideramos que o dano decorrente da “privação do uso” não é um dano abstracto, na medida em que é representado pela impossibilidade objectiva de fruição do bem por determinado período temporal, privação essa que é irreversível e não passível de reconstituição natural, logo, trata-se dum dano concreto indemnizável.
Como se refere no muito bem elaborado Ac. da Relação de Lisboa de 11 de Março de 2003, que teve como relator o Senhor Juiz Desembargador, António Abrantes Geraldes (in CJ N.º 165, ANO XXVIII, TOMO II/2003, págs. 70-74) “A simples invocação das regras da experiência quando se estabelece a comparação entre a situação do proprietário que manteve intacto o seu poder de fruição e a de um outro que dele seja privado temporariamente permite concluir que não existe entre ambas uma equivalência substancial. Verificando-se uma lacuna de natureza patrimonial, correspondente à fatia de poderes de que o proprietário ficou privado, é com naturalidade que deve ser encarada a atribuição de uma compensação monetária, face à constatação de que o simples reconhecimento da ilegitimidade da privação e a condenação na restituição do bem são insuficientes para repor a situação do lesado no estado em que se encontraria caso não tivesse existido tal privação”.
“Uma vez que o sistema atribui ao lesado o direito à reconstituição natural da situação, a recomposição da situação danosa reclama que, pela única via então possível, ou seja, pela atribuição de um equivalente pecuniário, o lesado consiga ser reintegrado”
Neste mesmo sentido de que a “privação do uso” é passível de ser indemnizável, não carecendo para tal de haver a prova de um dano concreto sofrido pelo lesado, para além dessa privação, temos o Ac. do STJ de 6/06/2001, in CJSTJ, tomo II, pág. 124.
No caso em apreço, verifica-se que o arrendatário, José Ferreira Pinto, faleceu em 27/11/1999 e que a última renda paga, respeitava ao mês de Dezembro desse mesmo ano.
Como é referido na sentença recorrida, tendo-se registado a caducidade do contrato de arrendamento atento o decesso do arrendatário (art.º 1051.º, al. d) do CC, ex vi do disposto no art.º 66.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 321-B/90, de 15/10 – RAU), o locado deveria ser entregue no prazo de três meses sobre a verificação desse facto (art.º 1053.º do CC), pelo que se considera que só a partir de 27 de Fevereiro de 2000 é que o apelado passou a deter ilegitimamente a fracção em causa. Até essa data, tal como é referido na sentença, sempre seria devida a renda acordada. Desta forma considera-se que os apelantes têm direito a receber quanto aos meses de Janeiro e Fevereiro de 2000, o quantitativo de 12.808$00 (63,99€) a título de rendas em dobro do locado, dado estas não terem sido pagas no momento devido, aplicando-se aqui analogicamente o disposto no art.º 1045.º, n.º 2 do CC (nas suas conclusões de recurso – al. r) - os apelantes fazem referência, por manifesto lapso, em cada mês a que aludem, a um ano a mais do que aquele a que realmente se pretendem referir).
A partir desses meses, isto é, de Março de 2000 até Maio de 2001 (altura em que se verificou a entrega do locado) têm os apelantes direito a uma indemnização pela privação ilegal do uso da fracção a que estiveram sujeitos, a qual, tendo por base juízos de equidade, computamos em 500.000$00 (2.493,99€) – art.º 566.º, n.º 3 do CC.
Com efeito, na base deste número tivemos em consideração que o valor no mercado de arrendamento duma fracção idêntica à que é objecto de discussão nestes autos era de cerca de 50.000$00/mês (249,39€) e que os apelantes quando o imóvel lhes foi entregue o destinaram para sua habitação (ampliação da anterior), passando nela a residir também, algum tempo depois, as suas filha e neta, situação que leva a que se não possa considerar na totalidade o valor de mercado do arrendamento, pois que o valor de uso pelo próprio será sempre inferior ao que é praticado no mercado, sendo certo que não se apurou que a habitação poderia ter sido arrendada durante todo o período em se registou a privação do uso da fracção.
Os apelantes têm pois direito a receber a indemnização global de 2.557,98€, acrescidos de juros legais desde a citação (art.º 805.º, n.ºs 1 e 3 do CC).

b) Da obrigação solidária de indemnizar

Defendem os apelantes que o montante indemnizatório fixado deverá ser pago solidariamente por todos os demandados na acção e não apenas pelo apelado, pois que consideram que se trata de dívida da herança, sendo por isso, nos termos do disposto 2.068.º do CC, todos os herdeiros responsáveis solidariamente por ela.
Salvo o devido respeito não assiste razão aos recorrentes.
Com efeito, se os apelantes pretendiam a condenação da herança, deveriam ter intentado a acção contra esta, sendo então a mesma representada em juízo pelo cabeça-de-casal, então se vendo se a factualidade ocorrida poderia ou não levar à responsabilização de tal património autónomo.
Porém, não foi essa a atitude assumida pelos apelantes, tendo antes demandado os herdeiros individualmente.
Da matéria dada como provada resultou inequivocamente que, com excepção do recorrido, nenhum outro teve qualquer intervenção em todo o processo, sendo que só ele terá guardado as chaves do locado e, com tal atitude, inviabilizado a fruição do mesmo por parte dos recorrentes.
Assim e sem necessidade de mais considerações, entende-se que só o apelado poderá ser responsabilizado pela ilegalidade que praticou, pois não se registou qualquer nexo causal entre o evento danoso e os demais demandados.
Nesta parte bem andou o Senhor Juiz do Tribunal a quo, ao ter condenado tão só o Réu (aqui recorrido) C..., no pagamento da indemnização.

IV – DECISÃO

Face a todo o exposto, acordam em dar parcial provimento à apelação e, nessa medida, alterar a sentença da 1.ª instância, condenando assim o apelado, C... a pagar aos apelantes, A... e mulher, Maria da Conceição Cabrita Diogo Diogo Catarino a quantia de 2.557,98€ (dois mil quinhentos e cinquenta e sete euros e noventa e oito cêntimos), acrescidos de juros legais desde a citação, a título de danos patrimoniais sofridos por estes, pela privação ilícita do uso da fracção autónoma de que são proprietários.
No mais, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas por recorrentes e recorrido, na proporção de ¼ para os apelantes e de ¾ para o apelado.

Coimbra,