Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3914/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO PIÇARRA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO EM TRABALHADOR INDEPENDENTE
TRIBUNAL COMPETENTE
Data do Acordão: 12/21/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SEVER DO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: LAT APROVADA PELA LEI Nº 100/97, DE 13/09 . ARTº 85º, AL. C), DA LEI 3/99, DE 13/01 .
Sumário: I – A competência do tribunal para o julgamento de uma causa afere-se pelo pedido nela formulado e pela causa de pedir que lhe está subjacente, ou seja, pelo quid disputatum ou quid decidendum .
II – O novo regime instituído para os acidentes de trabalho, resultante da Lei nº 100/97, de 13/09, ampliou o conceito de acidente de trabalho, alargando-o também aos trabalhadores independentes ou por conta própria .
III – Compete ao tribunal de trabalho, nos termos do artº 85º, al. c) da Lei 3/99, de 13/01, conhecer do pleito em que se discute a indemnização por danos sofridos em consequência de um acidente ocorrido quando o autor exercia a sua actividade profissional de chapeiro por conta própria .
Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

Relatório
I A... instaurou acção declarativa, com processo ordinário, contra B..., no tribunal da comarca de Sever do Vouga, alegando, síntese, que:
É trabalhador independente, exercendo a actividade de chapeiro por conta própria.
No dia 19 de Agosto de 2001, teve que deslocar-se a diversos locais, no exercício dessa actividade.
Nessa deslocação, sofreu um acidente de que resultaram diversas lesões, que lhe determinaram incapacidade permanente parcial não inferior a 28,02%.
Além de ter gasto 400,00 €uros em consultas e tratamentos médicos, deixará de auferir anualmente a quantia de 2.139,72 €uros durante os 22 anos de vida activa.
Responsável pelo pagamento dessas importâncias é a ré, com quem havia celebrado contrato de seguro do ramo de trabalhadores independentes.
Com tais fundamentos, concluiu por pedir a condenação da ré a pagar-lhe, a título de indemnização por danos patrimoniais, a quantia de 55.485,40 €uros, acrescida de juros moratórios desde a citação.
A ré contestou, sustentando que o autor apenas se encontra afectado de incapacidade parcial permanente de 18,83%, aceitando, por isso, pagar-lhe a correspondente pensão anual, nos termos da legislação laboral e do contrato de seguro do ramo de trabalhadores independentes com ele celebrado.
No saneador, o Mm.º Juiz declarou incompetente em razão da matéria o tribunal da comarca e absolveu a ré da instância.
Inconformado, interpôs o autor recurso de agravo, visando a revogação de tal despacho. Concluiu, assim, a sua alegação recursiva:
1. O autor é trabalhador por conta própria e foi nessa qualidade que celebrou com a ré o contrato de seguro do ramo “trabalhadores independentes”, titulado pela apólice n.º 07-11-209807, com vista a transferir a responsabilidade civil pelos danos que a si próprio adviessem, no exercício da sua actividade profissional;
2. Foi enquanto trabalhador independente e no exercício daquela sua actividade, que o autor sofreu o acidente dos autos;
3. Nos termos do art.º 85º, alínea c) da LOTJ – Lei 3/99, de 13 de Janeiro – são da competência do tribunal de trabalho o conhecimento, em matéria cível, das questões emergentes de acidente de trabalho, ou seja, acidentes de que são vítimas os trabalhadores por conta de outrem (art.º 2º, n.º 2 da Lei 100/97, de 13 de Setembro);
4. De acordo com o art.º 77º, n.º 1 da LOTJ, compete aos tribunais de competência genérica “preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outro tribunal”;
5. Nesse sentido se pronunciou expressamente o ac. da RP de 05/12/94, in CJ, 1994, 5º, pág. 272, que refere “É o tribunal de competência genérica – e não o tribunal de trabalho – o competente para conhecer da acção emergente de acidente de trabalho proposta por um sinistrado, trabalhador por conta própria, contra uma seguradora, com quem celebrara antes um contrato de seguro, que garantia a cobertura de sinistros de trabalho de que fosse vítima em consequência da sua actividade profissional”;
6. Além de que o tribunal de trabalho de Aveiro, relativamente ao mesmo acidente, já se havia pronunciado pela sua incompetência em razão da matéria, o que levou o autor a instaurar a presente acção no tribunal de competência genérica, pelo que também por aqui haveria o tribunal judicial da comarca de Sever do Vouga, que decidiu oficiosamente julgar-se incompetente, ter apreciado a questão que foi levada à sua apreciação, quanto mais não fosse para salvaguardar o direito que tem o autor de ver apreciado o litígio;
7. Ao decidir nos termos em que o fez o tribunal a quo violou o disposto nos art.ºs 2º, n.ºs 1 e 2 da Lei 100/97, de 13/09, 77º, n.º 1 e 85º, alínea c) da LOTJ – Lei 3/99, de 13/01, 101º, 102º, n.º 1, 103º, 105º, n.º 1, 288º, n.º 1, alínea a), 493º, n.º 2, 494º, n.º 1, alínea a) e 510º, n.º 1, alínea a) do CPC.
Não foi oferecida contra alegação e o Mmº Juiz a quo manteve, em sede de sustentação, o seu despacho, pelo que, obtidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.
II – Além do que consta do antecedente relatório, são relevantes para a apreciação do recurso os seguintes elementos:
1. O autor sofreu o acidente de 19 de Agosto de 2001, no exercício da sua actividade profissional, por conta própria.
2. Nessa data encontrava-se em vigor o contrato de seguro do ramo trabalhadores independentes celebrado entre ele e a ré.
IIIFundamentação de Direito
A apreciação e decisão do recurso, delimitado pelas conclusões da alegação do agravante (art.ºs 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil), passa pela resolução da única questão jurídica por ele colocada a este tribunal e que consiste em determinar qual é foro competente em razão da matéria para conhecer da problemática emergente do acidente em que aquele radica a sua pretensão indemnizatória.
Como se sabe, um dos pressupostos processuais relativos ao tribunal é o da competência, pois, para que possa decidir sobre o mérito da causa, é necessário que o tribunal, perante o qual a acção foi proposta, seja o competente. No plano interno, o poder jurisdicional apresenta-se dividido por diferentes categorias de tribunais, de acordo com a natureza das causas. Na instituição das diversas espécies de tribunais e na demarcação da respectiva competência a lei atende à matéria da causa, ou seja, ao seu objecto encarado sob o ponto de vista qualitativo – o da natureza da relação substancial pleiteada - e obedece a um princípio de especialização, com as vantagens que lhe são inerentes, isto é, reserva para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e especificidade das normas que os integram Cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 94..
Dentro da organização judiciária, os tribunais de comarca constituem a regra e gozam, por isso, de competência não discriminada (competência genérica), enquanto os restantes tribunais têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas (art.ºs 211º, n.º 1 da CRP, 67º do Cód. Proc. Civil, 18º, n.º 2 e 77º da Lei 3/99, de 13 de Janeiro). Assim, uma causa só será da competência (residual) de um tribunal de competência genérica, desde que não exista disposição que atribua essa competência a tribunal especializado.
In casu, a questão coloca-se entre o tribunal de trabalho (competência especializada) e o tribunal da comarca de Sever do Vouga (competência genérica), sendo certo que a metodologia a adoptar é apurar, previamente, se a competência para o pleito entre o autor e a ré está ou não atribuída àquele, na certeza de que não estando, recairá necessariamente sobre o último.
No despacho recorrido entendeu-se que a competência radicaria no tribunal de trabalho, na medida em que a questão submetida à apreciação e decisão do tribunal emerge de acidente de trabalho. A discordância do agravante funda-se, essencialmente, na inexistência de qualquer contrato de trabalho, o que, na sua óptica, constituiria óbice inultrapassável à qualificação como de trabalho o acidente por ele sofrido, uma vez que tudo se situaria no âmbito do trabalho independente ou por conta própria, sem qualquer subordinação jurídica.
Avançando, agora, na apreciação do caso e tendo presente que a competência do tribunal para o julgamento de uma causa se afere pelo pedido nela formulado e pela causa de pedir que lhe está subjacente, ou seja, pelo quid disputatum ou quid decidendum Cfr., neste sentido, Manuel de Andrade, obra citada, pág. 91, e, entre outros, ac. do STJ de 12/1/94, CJ/STJ, ano II, 1994, Tomo I, pág. 38, ac. do STJ de 20/5/98, BMJ 477, pág. 389, e ac. do STJ de 7/11/02, CJ/STJ, ano X, Tomo III, pág. 124., vê-se pela petição inicial que o autor pretende ser ressarcido pela ré dos danos que sofreu em consequência de um acidente ocorrido quando exercia a sua actividade profissional de chapeiro. Trata-se, pois, de um acidente de trabalho, qualificação que, ao contrário do que antes sucedia, não está hoje dependente da existência de contrato de trabalho ou prestação de trabalho subordinado a qualquer empregador.
Na verdade, a matéria relativa aos acidentes de trabalho esteve durante algumas décadas regulada pela Lei 2.127, de 3 de Agosto de 1965, e pelo DL 360/71, de 21 de Agosto, que nada previam quanto a acidentes ocorridos fora do âmbito do contrato de trabalho, ou seja, no caso de trabalhadores independentes ou por conta própria. A situação alterou-se entretanto com a nova LAT, aprovada pela Lei 100/97, de 13 de Setembro, que entrou em vigor a 1 de Janeiro de 2000, como decorre dos art.ºs 1º, n.º1 a) e 71º do DL 143/99 de 30.4, com a redacção que lhe foi dada pelo art.º 1º do DL 382-A/99, de 22 de Setembro.
O novo regime instituído para os acidentes de trabalho, já aplicável ao caso em apreço, dado o acidente ter ocorrido após a sua entrada em vigor, ampliou o conceito de acidente de trabalho, alargando-o também aos trabalhadores independentes ou por conta própria, a quem impôs igualmente a celebração de contrato de seguro que, em caso de acidente de trabalho, garante aos mesmos e respectivos familiares indemnizações e prestações em condições idênticas às dos trabalhadores por conta de outrem (art.ºs 1º, 2º e 3º da Lei 100/97, de 13 de Setembro).
Deste modo, inexistindo hoje qualquer diferenciação entre acidentes decorrentes de trabalho subordinado ou de trabalho independente, compete ao tribunal de trabalho, nos termos do art.º 85º al. c) da Lei 3/99 de 13.1, conhecer do presente pleito que incide precisamente sobre um acidente de trabalho.
Aliás, esta orientação tem sido unanimemente seguida por este tribunal em diversos arestos sobre esta temática, citando-se, por bem elucidativos, os seguintes, com os respectivos sumários:
I - Actualmente, o conceito de acidente de trabalho deixou de implicar necessariamente a existência de um vínculo de subordinação jurídica, matriz caracterizadora de uma relação juslaboral típica - artºs 1º da LCT e 1152º do CC - para contemplar, da mesma maneira, numa acepção mais ampla, os sinistros (também eles acidentes de trabalho) sofridos por trabalhadores por conta própria, situações onde essa subordinação a outrem pura e simplesmente se não verifica.
II - Nos termos do artº 85º al. c) da Lei 3/99 de 13.1, que alterou a Lei 39/87, LOTJ de 23 de Dezembro compete aos Tribunais do Trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, não resultando daí, qualquer diferenciação entre acidentes decorrentes de trabalho subordinado ou de trabalho independente.
III - Assim, os tribunais competentes para conhecer dos acidentes de trabalho sofridos por trabalhadores independentes são os tribunais do foro laboral Ac. de 14/11/02 proferido no agravo 2937/02 (relator: Desembargador Fernandes da Silva), acessível em www.dgsi. pt, n.º Convencional: JTRC9134..
I - Actualmente, o conceito de acidente de trabalho deixou de implicar necessariamente a existência de um vínculo de subordinação jurídica, matriz caracterizadora de uma relação juslaboral típica - artºs 1º da LCT e 1152º do CC - para contemplar, da mesma maneira, numa acepção mais ampla, os sinistros (também eles acidentes de trabalho) sofridos por trabalhadores por conta própria, situações onde essa subordinação a outrem pura e simplesmente se não verifica.
II - Nos termos do artº 85º al. c) da Lei 3/99 de 13.1, que alterou a Lei 39/87, LOTJ de 23 de Dezembro compete aos Tribunais do Trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, não resultando daí, qualquer diferenciação entre acidentes decorrentes de trabalho subordinado ou de trabalho independente.
III - Assim, os tribunais competentes para conhecer dos acidentes de trabalho sofridos por trabalhadores independentes são os tribunais do foro laboral Ac. de 14/11/02 proferido na apelação 2929/02 (relator: Desembargador Fernandes da Silva), acessível em www.dgsi. pt, n.º Convencional: JTRC9133..
I - Tratando-se de um acidente de trabalho, como tal caracterizado por autor e ré, não obstante o trabalhador ser independente, é o Tribunal do Trabalho o competente.
II - O artº 85º al. c) da Lei 3/99 não distingue se são da exclusiva competência dos Tribunais do Trabalho apenas as questões emergentes de acidentes de trabalho em que sejam vítimas os trabalhadores por conta de outrem, ou se são também as questões em que sejam vítimas os trabalhadores independentes Ac de 24/09/02 proferido no agravo 1735/02 (relator: Desembargador Monteiro Casimiro), acessível em www.dgsi. pt, n.º Convencional: JTRC3016..
I – No domínio de vigência da nova LAT (Lei 100/97, de 13/9) os acidentes em serviço sofridos por trabalhadores independentes são acidentes de trabalho.
II – Assim, para conhecer das questões emergentes de tais acidentes são competentes os tribunais de trabalho Ac. de 15/01/02, CJ, ano XXVII, 2002, Tomo I, pág. 12, e ac. de 14/06/02, CJ, ano XXVII, 2002, Tomo III, pág. 64..
O mero enunciado destes sumários ilustra bem a falta de razão do agravante e o bom fundamento do despacho por ele posto em crise, tanto mais que a sua argumentação e a jurisprudência em que se abona está já ultrapassada, na medida em que, como se viu, no caso de trabalhador independente, não é indispensável a existência de contrato de trabalho para qualificar como de trabalho o acidente que o mesmo sofra no exercício da sua actividade, por conta própria. O conceito de acidente de trabalho é hoje, de acordo com a referida orientação deste tribunal, que aqui também se sufraga, mais amplo e abrange, sem dúvida, o que o agravante sofreu e no qual radica o pedido formulado nesta acção.
Resta, por fim, refutar o argumento do agravante no sentido de que o tribunal recorrido devia apreciar e julgar a causa, visto que o tribunal de trabalho de Aveiro se declarara já incompetente em razão da matéria, questão que, saliente-se, nem sequer está devidamente comprovada e certificada. Admitindo, contudo, que tal sucedeu e que essa decisão transitou em julgado, nem mesmo, nesse caso, o tribunal recorrido estava impedido de se declarar incompetente em razão da matéria, já que aquela decisão não tem valor algum fora do processo em que foi proferida (art.º 106º do Cód. Proc. Civil).
Em suma, não há motivo para o agravante se insurgir contra a douta decisão da 1ª instância, que, ao declarar o tribunal da comarca incompetente em razão da matéria, fez a melhor interpretação dos artºs 67º, 101º, 105º, 106º, 288º, n.º 1 a) do Cód. Proc. Civil, 18º, n.º 2 e 77º da Lei 3/99, de 13 de Janeiro.
III – Decisão.
Nos termos expostos, nega-se provimento ao agravo e consequentemente confirma-se o despacho recorrido.
Custas pelo agravante, sem prejuízo, porém, do apoio judiciário de que goza.
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Coimbra, 21 de Dezembro de 2004