Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1903/08.7TBPMS-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: LEASING
CESSÃO DE POSIÇÃO CONTRATUAL
FORMA ESCRITA
Data do Acordão: 04/28/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PORTO DE MÓS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 3.º, N.º 1, DO DL N.º 149/95 DE 24.6 E 424.º, N.º 1 E 220.º, DO CC
Sumário: a) – A exigência da forma escrita para o consentimento do locador na cessão da posição contratual em contrato de locação financeira constitui uma formalidade ad substantiam, gerando a sua falta nulidade do negócio (art.ºs 3.º, n.º 1, do DL n.º 149/95 de 24.6 e 424.º, n.º 1 e 220.º, do CC);

b) – O consentimento pode ser prévio ou posterior à cessão, em ratificação, com manifestação de vontade expressa ou tácita, revelada de documentos de onde resulte o reconhecimento de contraprestações próprias do contrato, v. g., recebimento de despesas da nova locatária e autorização expressa, em forma escrita, de uso, por esta, da coisa locada.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

            1. Relatório

A...., Lda. deduziu no 1.º Juízo do TJ de Porto de Mós, por apenso a uns autos de procedimento cautelar de arresto, embargos de terceiro contra B....”, pedindo seja a embargante declarada legítima possuidora de um equipamento constituído por “um centro de maquinação vertical da marca MAS, 1000, com o n.º de série 275 SCH-071-47-481”, na sequência de cessão de posição contratual num contrato de locação financeira, sendo pertença do “Banco C....”, bem como condenar-se a embargada a reconhecer a sua posse e restituir o bem e pagar-lhe, ainda, os danos derivados da apreensão e remoção, a liquidar ulteriormente, à razão diária de € 250,00.

Alegou para tanto, em resumo, que no dia 22.10.09 foi abordada por um funcionário judicial do Tribunal de Alcobaça no sentido de remover e entregar à requerida aquela máquina, que se encontrava na sua posse, nas suas instalações, vindo no dia imediato a ser desmontada e daí levantada.

A anterior locatária da máquina, “D...., Lda.”, por ter entrado numa situação de dificuldades financeiras solicitou ao proprietário/locador “ C....” a cessão da sua posição contratual à embargante, o que este autorizou através da “declaração” de 22.10.09 (doc. n.º 5 junto com a petição, fls. 20) e por contrato de 30.3.09 foi formalizada a cessão da posição contratual (doc. n.º 6, fls. 21) [entre a “ D....” e a embargante].

O “ C....” aprovou e concordou com a cessão como se extrai do documento junto a fls. 23 (doc. n.º 7).

Declarada insolvente a ” D....” por sentença de 17.3.09, o respectivo administrador acordou na cessão, sendo que o processo desta foi começado a negociar no mês de Fevereiro de 2009.

A embargante tem estado a pagar regular e pontualmente as prestações ao “ C....” referentes ao contrato de “leasing” do mencionado equipamento, de que é legítima possuidora.

Juntou documentos e arrolou 5 testemunhas.

No despacho inicial o Ex.mo Juiz rejeitou liminarmente os embargos por falta de probabilidade séria da existência do direito invocado pela embargante, uma vez que a cessão da posição contratual em contrato de locação financeira está sujeito a documento, que no caso faltou.

Inconformada com o indeferimento, recorreu a embargante apresentando alegações com as seguintes conclusões:

a) – O possuidor de boa fé tem o direito de deduzir embargos quando alguém pretenda retirar-lhe uma máquina com que está a trabalhar, demonstrando clara e inequivocamente a posse legítima;

            b) – A posse por mais de 1 ano consecutivo só cede perante alguém que invoque melhor posse;

            c) – O consentimento para a cessão de posição contratual num contrato de locação financeira pode ser verbal;

            d) – Quando o locador, num contrato de locação financeira, emite um documento a dizer que o cessionário está na posse do equipamento a que se refere o contrato, corresponde isso a um consentimento seu para a cessão da posição contratual havida;

e) – E, se dúvidas houvesse, o documento escrito do locador junto sob n.º 7 (fls. 23/44) significa claramente que o “ C....” deu consentimento escrito à cessão;

f) – O despacho recorrido violou os art.ºs 424.º e 1276.º do Cód. Civil e 508.º do Cód. Proc. Civil, pelo que deve ser revogado.

Foram dispensados os vistos ao abrigo do disposto no n.º 4 do art.º 707.º do CPC.

Cumpre apreciar, sendo que são questões a decidir:

            a) – Se o consentimento para a cessão da posição contratual em contrato de locação financeira está sujeito a forma escrita;

            b) – Se os documentos juntos comportam tal forma de consentimento, ou constituem uma sua ratificação.


*

            2. Fundamentos

            2.1. De facto

            De relevante para a reapreciação da decisão recorrida resulta dos documentos juntos a seguinte factualidade:

            a) – Entre o “C....” como locador e “D...., Lda.” como locatária foi, em 24.4.07, elaborado um contrato de locação financeira (fls. 34, doc. n.º 4 junto com a petição de embargos) de um equipamento denominado “centro de maquinação da marca MAS”;

            b) – Com data de 30.3.09 aquela sociedade “ D....” cedeu a sua posição contratual de locatária nesse contrato de locação financeira à embargante em contrato assinado por ambas as sociedades não sendo, todavia, assinado pelo Banco locador (fls. 42 – doc. n.º 6);

            c) – Com data de 12.8.09 o Banco endereçou à embargante a carta de fls. 44 (doc. n.º 7) com o seguinte teor: “Como é do V/ conhecimento, após a formalização do contrato de cessão datado de 13.4.2009, fomos confrontados com a notícia da declaração de insolvência da Empresa D...., cuja sentença é datada de 17.3.2009, pelo que foi necessário submeter à apreciação do Administrador de Insolvência entretanto nomeado, a validação deste contrato, fazendo-o assim depender do seu parecer.

            O Sr. Administrador de Insolvência da massa insolvente da firma D...., Lda. pronunciou-se acerca deste processo, tendo dado acordo à cessão do contrato a favor da “ A....Lda., declinando, contudo, a responsabilidade de liquidação das rendas vencidas, anteriores à data da sentença de insolvência.

            O processo de negociação foi iniciado no decurso do mês de Fevereiro, com a assinatura por parte da empresa D.... Lda. da carta de autorização, sem a qual não teria sido possível avançar com esta operação.

            As rendas vencem-se ao dia 25 de cada mês e as despesas referentes a esta Cessão foram debitadas na V/ conta com data de 23.3.2009, pelo que a renda de Março é devida pela F...., pois venceu-se durante o período de resolução do contrato.

            Em face do exposto, tendo presente a posição manifestada pelo Sr. Administrador de Insolvência e por forma a considerarmos definitivo o contrato de Cessão, vimos solicitar o V/ acordo para procedermos ao débito da V/ conta DO n.º 1032763, pelo valor de € 818,72, correspondente à renda do mês de Março.

            d) – Com data de 22.10.09 o Banco emitiu a “declaração” de fls. 41 (doc. n.º 5) na qual declarou ser ele “o legítimo proprietário do equipamento “Centro de Maquinação MAS, data de fabrico: 04/1999, Cursos: 100x600x500, Mod. MCV 1000, Comando: Heidenhain Inc 426 CB”, que adquiriu à sociedade E...., em 11.5.07, e que o mesmo equipamento constitui o objecto do contrato de locação financeira n.º 4000057294, celebrado com a D...., Lda., ora insolvente, a correr termos pelo 2.º Juízo do tribunal da comarca da Marinha Grande, proc. n.º 241/09.5TBMGR. Actualmente este mesmo equipamento está na posse da empresa F..... com a devida autorização do Banco declarante”.


*

            2.2. De direito

            Sabido que são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o objecto do conhecimento deste, já acima vimos quais são as questões que delas resultam e nos compete apreciar, ou seja:

            a) – Se o consentimento para a cessão da posição contratual em contrato de locação financeira está sujeito à forma escrita;

            b) – Se os documentos juntos com a petição de embargos comportam essa forma de consentimento ou podem entender-se como sua ratificação.

            O despacho recorrido deu resposta afirmativa à 1.ª questão e resposta negativa à 2.ª.

            E, antecipando, se lhe assiste razão quanto à 1.ª, o mesmo já não acontece quanto à 2.ª.

            Dispõe o n.º 1 do art.º 424.º do CC que “no contrato com prestações recíprocas qualquer das partes tem a faculdade de transmitir a terceiro a sua posição contratual desde que o outro contraente, antes ou depois da celebração do contrato, consinta na transmissão”.

            E o art.º 425.º do mesmo diploma que “a forma da transmissão, a capacidade de dispor e de receber, a falta de vícios da vontade e as relações entre as partes definem-se em função do tipo de negócio que serve de base à cessão”.

            De tais preceitos ressalta que a cessão da posição contratual supõe 2 contratos: o contrato-base, no caso a locação financeira de coisa móvel não sujeita a registo e o contrato-instrumento de cessão, ou seja, o da transmissão de uma das posições derivadas daquele, no caso, a posição de locatário.

            Envolve 3 sujeitos: o que transmite a sua posição (cedente), no caso a “D...., Lda.”, o terceiro que adquire a posição transmitida (cessionário), ou seja a embargante, e a contraparte do cedente no contrato originário (cedido – o Banco).

            A relação contratual que tinha como um dos titulares o cedente é a mesma de que passa a ser sujeito o cessionário após o novo negócio.

            Por outro lado, a cessão é um contrato de causa variável, uma vez que lhe são aplicáveis as disposições relativas ao respectivo negócio.[1]

            Negócio, aqui, de locação financeira regulado pelo DL n.º 149/95 de 24.6. e cujo art.º 3.º dispõe (n.º 1) que “os contratos de locação financeira podem se celebrados por documento particular”.

            O teor literal do preceito e a forma verbal usada pode levar a supor que a redução a escrito é meramente facultativa.

            Assim não é, como logo o inculcam os n.ºs 2 a 4 do mesmo preceito, a supor sempre documento escrito.

            O próprio preâmbulo do diploma o esclarece quando diz que “simplifica-se a forma do contrato, limitando-se a simples documento escrito” e isto porque a lei anterior (DL n.º 171/79 de 6.6.), no art.º 8.º, obrigava a locação financeira de coisas móveis a documento particular e imóveis a escritura pública, passando agora uns e outros a estar sujeitos à forma escrita, sim, mas de mero documento particular.[2]

            Ora, acompanhando a forma da transmissão da posição contratual as regras do negócio-base, onde obviamente se inclui o consentimento da contraparte do cedente no contrato originário, já vimos que também o consentimento do Banco locador deveria ter assumido a forma escrita.

            Constitui uma formalidade ad substantiam cuja falta é cominada com a nulidade (art.º 220.º do CC).

            Se não o fez no contrato firmado por cedente e cessionário, será que o fez depois, em ratificação, como legalmente o permite o citado n.º 1 do art.º 424.º do CC?

            - Olhando os documentos juntos, deles parece resultar, não obstante a falta, ainda, de contraditório, essa manifestação de vontade.

            Desde logo, porque tal manifestação pode ser não só expressa como tácita.[3]

            Não só a carta do Banco locador de fls. 44 (endereçada à embargante) refere a “formalização do contrato de cessão datado de 13.4.2009”, como ele próprio diligenciou para que o administrador da insolvência da anterior locatária “ D....” ratificasse a cessão (v. art.º 81.º, n.º 1 do CIRE).

            Por outro lado, tendo o Banco confessadamente debitado na conta da embargante as despesas referentes à cessão e não obstante não vir provado o pagamento da renda do mês de Março por débito em conta daquela e que condicionava o carácter definitivo da cessão, o facto de em 22.10.09, ou seja mais de 2 meses após aquela missiva, o Banco ter declarado que o equipamento estava na posse da embargante com a devida autorização, é sinal de que terá procedido àquela ratificação na forma devida.

            Em suma, foi, salvo o devido respeito, precipitada a conclusão da manifesta improcedência do pedido que subjaz ao despacho recorrido ou, no seu dizer, da falta de probabilidade séria da existência do direito invocado pela embargante, pelo que não poderá subsistir.


*

            3. Resumindo e concluindo, em jeito de sumário (art.º 713.º, n.º 7, do CPC):

            a) – A exigência da forma escrita para o consentimento do locador na cessão da posição contratual em contrato de locação financeira constitui uma formalidade ad substantiam, gerando a sua falta nulidade do negócio (art.ºs 3.º, n.º 1, do DL n.º 149/95 de 24.6 e 424.º, n.º 1 e 220.º, do CC);

            b) – O consentimento pode ser prévio ou posterior à cessão, em ratificação, com manifestação de vontade expressa ou tácita, revelada de documentos de onde resulte o reconhecimento de contraprestações próprias do contrato, v. g., recebimento de despesas da nova locatária e autorização expressa, em forma escrita, de uso, por esta, da coisa locada.


*

            4. Decisão

            Face a todo o exposto, na procedência da apelação, nos termos referidos, acordam em revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que dê sequência aos autos de embargo, com realização, ou não, de outras diligências probatórias, então vindo os mesmos a ser recebidos ou rejeitados, nos termos dos art.ºs 354.º e ss do CPC.

            Sem custas.


[1] V: P. Lima e A. Varela, “Código Civil, Anot.”, I, pág. 400 e ss.
[2] V., neste sentido, A. Neto, “Operações Bancárias”, 1.ª ed., Março de 2008, pág. 588 e Calvão da Silva, “Direito Bancário”, pág. 422 e ss, aí citado.
[3] P. Lima e A. Varela, ob. cit., pág. 402.