Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4219/06.2TBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
Data do Acordão: 04/01/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: AVEIRO - 1º J CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: AL. C) DO Nº1 DO ART. 668º DO C.P.C E ART. 483º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. A sentença deve ter uma estrutura argumentativa lógica, no sentido de que as premissas precedem a conclusão, que delas deve decorrer naturalmente; Quando assim acontece, inexiste nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão (sem prejuízo de poder verificar-se erro de julgamento).

2. O cômputo dos danos em fase processual posterior, por via do incidente de liquidação, só se justifica quando se provou o dano mas não se logrou determinar o seu montante exacto: não vale, portanto, para os casos em que o demandante não logrou provar os pressupostos da obrigação de indemnizar, maxime a ocorrência de danos (prova fracassada).

Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra 

I. RELATÓRIO

A... com sede na ...., intentou a presente acção declarativa, com forma de processo sumário, contra B... , com sede em ..., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 11.492,50, acrescida de juros de mora, à taxa de 9,32% a partir da citação e até integral pagamento, sobre a quantia de € 9.042,21.

Para fundamentar a sua pretensão invoca, em síntese, que:

Por sentença de 25/01/2002, proferida na acção sumária nº 756/2001 do 1º Juízo Cível de Aveiro, transitada em julgado, a ré foi condenada a entregar à autora a viatura mista ligeira, de marca Toyota, modelo Hilux, do ano de 1995, com a matrícula 00-00-EX.

A ré nunca tomou a iniciativa de entregar a viatura à autora, pelo que esta teve de instaurar execução para entrega de coisa certa, no âmbito da qual a viatura foi apreendida a 23/12/2003. A ré tinha conhecimento, desde 23/02/2001, que a viatura era propriedade da autora, por esta lhe ter escrito uma carta a informá-la de tal.

A ré não entregou a viatura à autora no estado em que a recebeu, tendo-lhe retirado algumas peças e provocado danos, que importaram no valor de € 1.816,64. Entre 23/02/2001 e 23/12/2003, a viatura sofreu uma quebra no seu valor de € 7.232,57.

A ré contestou, excepcionando a nulidade da petição inicial, por a factualidade alegada nos artigos 4º a 8º da petição inicial ser contraditória entre si e impedir que a ré a compreenda e a prescrição do direito de indemnização que a autora pretende fazer valer com esta acção. Impugna, ainda, alguns dos factos articulados na petição inicial, invocando, em síntese, que:

A autora entregou o veículo a C... , pessoa que era conhecida e amiga do dono da autora, tendo comprado o veículo e, em troca, deu um outro à autora, quase novo;

O C... entregou o veículo à ré para reparação, a que a ré procedeu, não tendo aquele pago o custo da reparação, razão pela qual a ré reteve o veículo, entendendo que este pertencia àquele e não à autora.

Mesmo não tendo contestado a acção 756/2001, a verdade é que esta já conheceu dos eventuais prejuízos que a autora alegou, e fixou a respectiva compensação pelo que nessa medida, e quanto a este aspecto, há caso julgado formal e nada mais há a decidir.

O veículo não se desvalorizou nem teve qualquer desgaste enquanto esteve com a ré.

A autora respondeu, propugnando pela improcedência das excepções.

Foi proferido despachado saneador que julgou inexistente a nulidade apontada e improcedente a excepção de prescrição e fixou-se a factualidade assente, com elaboração de base instrutória, sem reclamações.

Realizou-se audiência de julgamento e respondeu-se aos quesitos, sem reclamações.

Proferiu-se sentença, que concluiu da seguinte forma:

“Julgo, pelo exposto, a presente acção improcedente e, em consequência, absolvo a Ré B... , dos pedidos.

Custas pela A..

Registe e notifique”.

Não se conformando, a autora recorreu, formulando as seguintes conclusões:

“Encontrando-se assente nos autos que: - Por sentença de 25/01/2002, proferida na Acção Sumária nº 756/2001 deste 1º Juízo Cível de Aveiro, devidamente transitada em julgado, foi a ora Ré, a pedido da ora A., condenada:

a) - a entregar a esta (também A. naquela acção) a viatura mista ligeira, de marca TOYOTA, modelo HILUX, do ano de 1995, com a matrícula 00-00--EX;

- A ora A. propôs, a 24/06/2003, por apenso à mesma acção, Execução Sumária para obter a entrega coerciva da viatura referida de matrícula 00-00--EX - fls. 48/49.

- Este veículo foi apreendido, a 23/12/2003, no lugar de Atranquilhos, Creixomil, Guimarães, por um agente da PSP, e entregue a D... , sócio-gerente da A., como fiel depositário.

- Na altura da apreensão, o contador do veículo 00-00--EX marcava 89.352 quilómetros, tinha o pára-brisas partido, falta do emblema 4x4 Toyota dos dois lados, falta do veio de transmissão traseiro e a bainha da frente, lado direito, empenada.

- A 23 de Fevereiro de 2001, a A. enviou à demandada uma carta, na qual a informava de que era proprietária daquela viatura e solicitava que esta procedesse à sua entrega.

- A viatura 00-00--EX tinha, no início de 1997, o valor comercial de (2.700.000$00, correspondente a) € 13.467,54.

- A A. sabia, pelo menos desde 12 de Setembro de 2001, que a viatura estava nas oficinas da Ré, cuja localização conhecia perfeitamente

e julgando o Tribunal a acção improcedente, a sentença padece de nulidade, por a fundamentação se encontrar em oposição com a decisão, nos termos da al. c) do Art. 668º do C.P.C.;

II- Dados como assentes aqueles factos, impõe-se a condenação da demandada a indemnizar a demandante pelos danos sofridos, nomeadamente, pelo período de paralização do veículo, bem assim, pelas peças em falta neste, condenação que, uma vez que os autos o não fornecem, terá de ser relegada para liquidação em momento ulterior.

III- Assim sendo, absolvendo a sentença ao invés de condenar, viola a mesma o disposto nos arts. 483º e ss do Código Civil”.

Não foram apresentadas contra alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

   

II. FUNDAMENTOS DE FACTO

A 1ª instância deu por provada a seguinte factualidade:

1 - A autora é uma sociedade comercial que tem por objecto a compra, venda e reparação de veículos automóveis, novos e usados (A).

2 - Foi concessionária da marca TOYOTA (B).

3 - Por sentença de 25/01/2002, proferida na acção sumária nº 756/2001 deste 1º Juízo Cível de Aveiro, devidamente transitada em julgado, foi a ré, a pedido da autora, condenada:

a) - a entregar a esta (também autora naquela acção) a viatura mista ligeira, de marca TOYOTA, modelo HILUX, do ano de 1995, com a matrícula 00-00--EX;

b) - a pagar à ora autora a indemnização de € 314,88;

c) - a pagar à ora autora juros de mora à taxa de 7% sobre € 13.641,54, desde a citação até integral pagamento - fls. 9/13 (C).

4 - A ora autora propôs, a 24/06/2003, por apenso à mesma acção, execução sumária para obter a entrega coerciva da viatura referida de matrícula 00-00--EX - fls. 48/49 (D).

5 - Este veículo foi apreendido, a 23/12/2003, no lugar de Atranquilhos, Creixomil, Guimarães, por um agente da PSP, e entregue a D..., sócio-gerente da A., como fiel depositário.(E)

6 - Na altura da apreensão, o contador do veículo 00-00--EX marcava 89.352 quilómetros, tinha o pára-brisas partido, falta do emblema 4x4 Toyota dos dois lados, falta do veio de transmissão traseiro e a bainha da frente, lado direito, empenada (F).

7 - No início de 1997, apareceu, nas instalações comerciais da autora, um amigo do sócio-gerente desta, o Sr. E... , dizendo que pretendia comprar a viatura 00-00--EX. Foi-lhe permitido que levasse a viatura, após ter deixado, à troca, um veículo de marca Toyota Carina, e se ter comprometido a pagar a diferença de preço entre os dois veículos. O referido E... nunca mais apareceu na A... (1º, 2º, 3º, 14º e 15º).

8 - O E... teve um acidente com a viatura 00-00--EX e entregou-a para reparar nas oficinas da ré (4º, 5º e 10º).

9 - A 23 de Fevereiro de 2001, a autora enviou à demandada uma carta, na qual a informava de que era proprietária daquela viatura e solicitava que esta procedesse à sua entrega (6º).

10 - A viatura 00-00--EX tinha, no início de 1997, o valor comercial de 2.700.000$00, correspondente a € 13.467,54 (8º).

11 - A ré fez, na viatura, a reparação encomendada e aguardou que o mesmo E... aparecesse para a levantar e pagar a reparação (11º).

12 - O E... sempre se intitulou dono da viatura e foi nessa qualidade que contratou os serviços da ré (12º).

13 - A ré aceitou fazer a reparação da viatura por estar convencida de que ele era o proprietário da viatura (13º).

14 - O C... recebia da A... patrocínios para realização de provas de todo o terreno (16º).

15 - A reparação feita na viatura 00-00--EX pela ré consistiu em trabalhos de mecânica, chapeiro, pintura e electricista (19º).

16 - Nunca foi pago à ré o valor desta reparação (20º).

17 - A reparação feita pela ré valorizou o veículo (21º).

18 - A viatura esteve sempre parada nas oficinas da ré (22º).

19 - A autora sabia, pelo menos desde 12 de Setembro de 2001, que a viatura estava nas oficinas da ré, cuja localização conhecia perfeitamente (24º).

III. FUNDAMENTOS DE DIREITO

1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo apelante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C. – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 664 do mesmo diploma.

No caso, impõe-se apreciar:

- se ocorre a nulidade de sentença prevista no art. 668º, nº1, al) c do C.P.C., a saber, contradição entre os fundamentos e a decisão;

- da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual consignados no art. 483º do Código Civil (diploma a que aludiremos quando não se fizer menção de origem) com particular incidência nos elementos alusivos ao requisito dano.

2. A apelante vem arguir uma nulidade de sentença, invocando que a factualidade assente impunha decisão diferente da que foi proferida, isto é, impunha que se conc E...se por um juízo de procedência do pedido formulado pela autora e não de improcedência, como aconteceu. Acrescenta que não tendo o tribunal “valores para quantificar os prejuízos (danos), teria de relegar a condenação para quantia que se vier a apurar em liquidação ulterior, que não absolver. Ao fazê-lo, cometeu o Tribunal recorrido a nulidade apontada (…)”.

A nulidade invocada ocorre nas hipóteses em que “o juiz escreveu o que queria escrever; o que sucede é que a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto”. [ [i] ]

Socorrendo-nos do conceito de silogismo, temos que a sentença deve ter uma estrutura argumentativa lógica, no sentido de que as premissas precedem a conclusão, que delas deve decorrer naturalmente. [ [ii]

Atentemos, então, nos fundamentos expressos na decisão:

“A narração que a petição inicial desta acção faz factos não é conforme à realidade apurada, uma vez que: em primeiro lugar, a viatura não foi entregue, no início de 1997, a “um indivíduo” que apareceu nas suas instalações para comprar a viatura e a levou para a experimentar; a viatura foi entregue a E..., amigo do sócio-gerente da A., que se apresentou nas instalações desta para a comprar, deixou um Toyota Carina de retoma e comprometeu-se a pagar o resto. Depois, a viatura não foi deixada nas instalações da Ré pelo E... para este obter informações técnicas sobre a mesma, mas para ser reparada dos danos que sofrera em acidente. Também não é conforme à realidade apurada dizer que o tal “indivíduo” tinha uma dívida perante a ora Ré, pois o que aconteceu foi que ele, E..., amigo pessoal do sócio-gerente da A..., tinha em dívida e nunca chegou a pagar a reparação da viatura 00-00--EX.

Portanto, dos factos provados resulta que: 1º - a A. sabia, tinha de saber, quem levou a viatura; 2º - o E... levou a viatura, mas deixou outra em retoma – a perda nunca poderia, por isso, ser total, como a A. pretende com o pedido que faz, pois parte do preço da mesma já está pago com a retoma da viatura Toyota Carina; 3º - a retenção da viatura não é apropriativa e, nem sequer, gratuita, uma vez que o arrogado proprietário devia o preço da reparação e, obviamente, que a Ré tinha o direito a ser paga da mesma, pagamento esse que nunca aconteceu.

Independentemente e para além disso, temos que não se provou que a viatura tivesse sofrido prejuízos do montante de € 1.816,64 – resposta negativa ao quesito 7º, sendo certo que a prova cumpria à A., nos termos do art. 342º, nº 1, do C. Civil.

Claro está que, para a A. ter direito à diferença de preço entre o valor da viatura em início de 1997 (€ 13.467,54) e aquele que diz que tinha à data da apreensão, era indispensável que a A. tivesse provado, como lhe cumpria (e nem sequer o alegou), que a viatura tinha, à data (não se sabe qual é) que a Ré a recebeu para a consertar, ainda este mesmo valor. E não teria decididamente, uma vez que sofreu um acidente, cujas dimensões se desconhecem.

Por outro lado, a A. não pode exigir da Ré uma indemnização que a integre do valor da viatura.

Quando muito, poderia exigir o valor dos prejuízos sofridos por ela em resultado da guarda deficiente da mesma, se houvesse qualquer contrato de depósito entre ela (A.) e a Ré. Mas, não existe, uma vez que esta a recebeu, para reparação, do E..., pensando justificadamente que era deste.

Na acção, cuja sentença consta de fls. 9/13, a viatura foi mandada entregar à A., por, não tendo a Ré contestado a acção, ter ficado, desde logo, demonstrado ser aquela a proprietária da viatura e a detenção ilícita desta por parte da Ré.

Mas, não ficou demonstrado que a A. tivesse o direito a ser ressarcida pela desvalorização da mesma. Nem ficou isso demonstrado na presente acção. Antes demonstrado ficou que a A. a entregou, no seguimento de um contrato de compra e venda (verbal, parece) ao E..., que deu, em retoma, outro veículo. (…)

A acção tem, pois, de improceder. Quanto à desvalorização da viatura, por falta de legitimação da A. para obter o respectivo ressarcimento da Ré, uma vez que aquela deveria procurar a entrega da pessoa a quem entregou a viatura, por saber quem era, ou o pagamento do restante do preço. Quanto aos danos que o veículo apresentava, por desconhecimento do seu autor e por a Ré não estar vinculada a não ser para com a pessoa que lhe entregou a viatura, naturalmente que contra o preço da reparação.

Daqui decorre que o juízo de improcedência feito pelo tribunal a quo está alicerçado nas razões expostas na decisão. A questão suscitada não se insere, pois, no campo das nulidades da sentença e, a ser correcta a apreciação feita pela apelante – e não é, como veremos adiante –, situamo-nos tão só perante hipótese de erro de julgamento e não de vício de nulidade.

Inexiste, pois, a referida nulidade, impondo-se, ao invés, a apreciação do mérito da sentença recorrida.

3. A argumentação da apelante é, grosso modo, a seguinte: a responsabilidade que impende sobre a ré é “extra-obrigacional ou extra-contratual”, pois nenhum negócio foi celebrada entre ambas pelo que, estando a demandada obrigada a entregar o veículo e não o tendo feito, provando-se, ainda, que o veículo apresentava falta de peças quando foi entregue à autora, então “daí resulta o dever de indemnizar”. 

É inequívoco que dos factos provados resulta que as partes nunca celebraram qualquer negócio entre elas, pelo que a responsabilidade da ré, a existir, teria de enquadrar-se no domínio da responsabilidade extracontratual, com a correlativa averiguação dos pressupostos consignados no art. 483º, salientando-se que não encontramos na sentença recorrida qualquer afirmação que denote entendimento divergente do que se expôs – aliás, nem a autora, na petição inicial, nem a ré, em sede de defesa, alguma vez invocaram a celebração de um contrato entre ambas.

Configurando-se a acção como uma acção declarativa de condenação, deduzindo-se um pedido de tutela indemnizatória – art. 4º, nº2, alínea b) do C.P.C. – vejamos, então, em breve síntese, os respectivos pressupostos.

                                             *

Para que haja imputação de responsabilidade civil subjectiva (aquiliana) e, por consequência, obrigação de indemnizar, exige a lei a concorrência de vários pressupostos: facto voluntário, ilicitude, nexo de causalidade entre o facto e o dano, culpa e dano – art. 483º, nº1.

Na base da responsabilidade por factos ilícitos está, necessariamente, uma conduta da pessoa sobre quem vai recair a obrigação de indemnizar (um facto voluntário), acrescendo o requisito alusivo à ilicitude (facto contrário ao direito), perspectivando-se a mesma no campo da violação de um direito de outrem, ou consubstanciando a violação de um preceito da lei tendente à protecção de interesses alheios.

Na primeira modalidade, que ora nos interessa, incluem-se especialmente as ofensas de direitos absolutos e dos direitos de personalidade.

No caso, a ré foi condenada, por sentença transitada em julgado, a entregar à autora um veículo, com base na ponderação que esse veículo pertencia à autora – “Resulta da matéria de facto provada que a A é a legítima proprietária da viatura 00-00--EX”, refere-se na sentença de fls. 9 a 13 dos autos, a que se reporta a factualidade enunciada sob o nº3.

Qualquer juízo valorativo acerca do direito de retenção conferido à ré, em função do contrato celebrado com o E..., que lhe entregou o veículo para reparação, intitulando-se dono da viatura, procedendo a ré à reparação do mesmo, no convencimento de que aquele era efectivamente o titular do direito de propriedade sobre o veículo, não tendo ainda sido paga pelo serviço prestado – arts. 754º e 756º, al) a – só teria pertinência no processo aludido, sendo irrelevante para a decisão do presente litígio, conformada que está a obrigação de entrega do veículo, nos termos fixados na decisão referida, já transitada. [ [iii] ]

A autora nunca alegou que, proferida a decisão, se dirigiu às instalações da ré com vista a recolher o veículo e que a ré se recusou a entregá-lo, limitando-se a invocar que a ré nunca tomou “a iniciativa de entregar a viatura” à autora – art. 4º da petição inicial. Ora, entendemos que não era à ré que incumbia tomar “a iniciativa de entregar a viatura” à autora, como esta refere, mas sim à autora, concretamente, diligenciar pela entrega, tanto mais que se provou que sabia onde o veículo se encontrava. O certo é que a ré foi citada na acção executiva com vista à entrega do veículo e não o fez, consumando-se a entrega apenas com a apreensão do bem.

Assentamos, pois, na ilicitude do facto, sendo evidente a sua imputação subjectiva à ré, que actuou com culpa, na modalidade de dolo – art. 487º – [ [iv] ].

Passemos agora à análise dos elementos alusivos ao dano, uma vez que “para haver obrigação de indemnizar, é condição essencial que haja dano, que o facto ilícito e culposo tenha causado um prejuízo”. [ [v] ]

A obrigação de indemnização emergente de responsabilidade civil extracontratual abarca os prejuízos de ordem patrimonial, únicos em causa no processo, com vista a colocar o lesado na situação que estaria se não tivesse ocorrido o evento que obriga à reparação (teoria da diferença), computando-se a indemnização em dinheiro se a reconstituição natural não for possível – arts.  562.º, 564.º e 566.º.

Relativamente a estes, acentuamos a distinção entre dano emergente e lucro cessante, entendendo-se aquele como “o prejuízo causado nos bens ou nos direitos já existentes na titularidade do lesado à data da lesão” e este abrangendo “os benefícios que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito, mas que ainda não tinha direito à data da lesão”. [ [vi] ]

                                             *  

Reportando-nos ao caso em apreço, temos que a autora pede a condenação da ré a pagar-lhe uma indemnização de €7.232,57 pelos “prejuízos correspondentes à quebra do valor do veículo” entre a data de 26/02/2001 (referida sob o nº9 dos factos provados) e a data da entrega (apreensão) do mesmo, em 23/12/2003.

A demandante invoca que ”tem direito a ser ressarcida pelos prejuízos causados pelo esbulho ilegítimo perpetrado pela demandada” – art. 21º da petição inicial – e alude, concretamente, aos prejuízos relativos à “quebra do valor comercial do veículo” e à “compensação pelo uso que a demandada fez da mesmo”, referindo que, relativamente a esta, tal compensação já foi fixada na sentença referida.

Em sede de alegações de recurso a apelante alude, agora, aos danos causados à autora pela ré, “quanto mais não seja a título de paralisação”.

Ora, parece-nos que a autora se está a reportar a diversos tipos de danos, confundindo conceitos, sendo certo que, por ora, se está a analisar apenas dos danos decorrentes da violação, por parte da ré, da obrigação de entrega atempada do veículo. Assim:

a) o dano correspondente à quebra do valor da coisa, nos termos a que a autora alude, consubstancia invocação de lucro cessante: veículo que, pelo mero decurso do tempo, em termos comerciais, vê reduzido o seu valor de mercado, ponderando a data em que a sociedade autora, que se dedica à compra, venda e reparação de veículos, interpelou a ré para entregar o veículo e o momento em que esse facto ocorreu;

b) dano proveniente do uso que o detentor faz da coisa: estamos perante danos emergentes, e, no processo, a autora não peticiona qualquer indemnização a este título – aliás, não foi invocado qualquer desgaste do veículo em consequência de actuação da ré;  

c) dano resultante da privação do veículo, cuja indemnização a autora também não peticiona nos autos, aludindo apenas a essa matéria nas alegações de recurso e tão só para afirmar nos moldes supra enunciados no relatório. [ [vii]

Por outro lado, a autora labora em erro de interpretação quando alude ao processo 756/2001.

Não é verdade que a indemnização fixada no processo 756/2001 se refira à “compensação pelo uso que a demandada fez da viatura”, o que não surpreende porquanto nesse processo nunca sequer se considerou que a ré tenha usado ou fruído do veículo em causa, facto que também nos presentes autos a autora não invocou – apurou-se apenas que a ré procedeu à reparação do veículo que lhe foi entregue, especificamente, para esse efeito e ainda que a viatura esteve sempre parada nas oficinas da ré (cfr. o nº 18 dos factos provados).

Analisando a sentença proferida nesse processo, verifica-se que se condenou a ré no pagamento à autora de uma indemnização de €314,88 acrescida de juros.

Em sede de fundamentação dessa específica condenação, pode ler-se (cfr. a decisão de fls. 11/12 dos autos, referenciada sob o nº 3):

“A A. tem direito, com certeza, a uma indemnização por ter estado privada do veículo e de o poder vender, como era sua intenção.

Essa indemnização só pode, contudo, corresponder ao rendimento que ela poderia tirar do capital por que vendia o veículo, do capital, portanto, do valor do veículo. Esse rendimento é o juro correspondente à taxa passiva das operações bancárias e que se pode calcular em 3%.

Portanto, a A. até à citação, não tem direito a indemnização calculada segundo os juros moratórios legais das obrigações pecuniárias, mas a uma indemnização calculada segundo os juros remuneratórios.

Esta indemnização é devida desde 26/02/2001, data em que se presume ter sido recebida a carta referida em I), uma vez que antes a ré não podia saber que a proprietária e legítima possuidora do veículo era a A.

Feitas as contas, a indemnização devida é de €302,77 (60.700$00).

Sobre este montante incide, nos termos do art. 120-A da TGIS, imposto de selo de 4%, pelo que a ré deve, ainda, imposto de selo no montante de 2.428$00.

No total a Ré pagará 63.128$00”.

Por outro lado, a ré foi ainda aí condenada, como consta da factualidade assente, a pagar à autora “juros de mora, à taxa de 7% sobre 2.700.000$00 (€ 13.641,54), desde a citação até integral pagamento”, sendo que a quantia de €13.641,54, como resulta da fundamentação de facto exposta nessa decisão, corresponde, exactamente, ao preço pelo qual a autora pretendia vender o veículo – deu-se aí como provado que “no início de 1997 surgiu nas instalações da A. um senhor, que se identificou como sendo E..., e que se mostrou interessado na compra do veículo 00-00--EX, em 2ª mão, que o A. tinha disponível e à venda por 2.700.000$00”.    

Considerando essa decisão, entende-se que a indemnização que a autora pretende que lhe seja fixada nestes autos, em função da “quebra do valor do veículo”, está já consumida pela indemnização fixada no aludido processo, não se vislumbrando, para além daqueles aí referenciados, prejuízos autónomos que mereçam aqui ser ressarcidos.

Também não se provou, em concreto, qualquer desvalorização da coisa – ao invés, apurou-se que a reparação feita pela ré, que consistiu em trabalhos de mecânica, chapeiro, pintura e electricista, valorizou o veículo.

Acresce que mal se compreenderia que, datando a sentença de 25/01/2002, só em 24/06/2003 a autora tenha instaurado acção executiva, pretendendo agora penalizar a ré pela quebra do valor do veículo em função também desse concreto período de tempo.

4. Cumpre agora analisar da pretensão formulada pela apelante, de condenação da ré a pagar-lhe €1.816,64 pelo prejuízo “correspondente às peças em falta e aos danos provocados” no veículo, valendo aqui as considerações atrás expostas sobre os pressupostos da responsabilidade civil.

A autora começa por referir que a “demandada estava obrigada a restituir à demandante a viatura no estado em que a mesma se encontrava à data em que a recebeu, sendo que não o fez” – arts. 16º e 17º da petição inicial. 

Ora, considerando que a viatura foi entregue nas oficinas da ré para reparação, por um terceiro, (o C...) na sequência de um acidente que este teve com a viatura, e que foi efectivamente reparada pela ré (a reparação consistiu em trabalhos de mecânica, chapeiro, pintura e electricista), é no mínimo incompreensível a invocação da autora …

Acrescenta, ainda, que a ré:

- “provocou-lhe danos e retirou-lhe algumas peças que diminuíram substancialmente o seu valor comercial” –17º da petição inicial;

- “retirou daquele veículo automóvel dois emblemas “4 x 4 Toyota” (um de cada lado) e o veio de transmissão traseiro” – art. 18º;

- ”provocou no veículo os seguintes danos: partiu-lhe o pára-brisas e empenou a bainha da frente do lado direito” – art. 19º do mesmo articulado.

Terminando por referir que os “danos provocados ascendeu ao valor de €1.816,64” – art.20º.

Na fase do saneamento do processo, ficou desde logo assente, sob a alínea F), que na altura da apreensão do veículo, este tinha o pára-brisas partido, falta do emblema 4x4 Toyota dos dois lados, falta do veio de transmissão traseiro e a bainha da frente, lado direito, empenada.

No mais, a matéria invocada pela autora foi levada ao quesito 7º da base instrutória – “Os danos referidos em F) foram provocados pela R e ascendem ao valor de €1.816,64?”–, quesito que mereceu resposta negativa.

Donde se conclui que, pese embora os estragos que o veículo apresentava aquando da entrega, a autora não logrou provar que esses estragos foram provocados pela ré. Acresce que, para além da matéria supra referida, a autora não alegou qualquer outro facto pertinente, no sentido de que a ré, por acção ou omissão, de alguma forma, deu azo ou motivou os estragos aludidos.

Estamos no domínio da responsabilidade extracontratual pelo que é sobre a autora que recai o ónus de alegação e prova dos elementos constitutivos do seu direito – art. 342º, nº1. [ [viii] ]

E nem se diga que incumbia à ré o dever de guarda e vigilância do veículo, uma vez que estava nas suas instalações e no âmbito dos deveres que impendem sobre aquele que presta serviços de reparação, porquanto isso significaria assacar à ré a responsabilidade inerente ao credor que tem direito de retenção sobre a coisa (direito real de garantia), nos termos do art.671º, al) a, aplicável ex vi do disposto no art.758º, quando, no caso, exactamente, se considerou que a ré devia proceder à entrega do veículo, ou seja, não se lhe reconheceu esse direito.       

Assim, temos de concluir pela completa ausência de prova sobre a ilicitude do facto que terá originado os estragos aludidos.

5. Em suma, a questão não é de relegar para fase processual posterior o cômputo/liquidação dos danos, como pretende a autora. O que se trata é, tão só, que a autora não logrou provar os pressupostos da obrigação de indemnizar, maxime a ocorrência de danos, ou seja, estamos perante hipótese em que o demandante fracassou no ónus de prova dos factos constitutivos do seu direito.

Improcedem, pois, as alegações de recurso.

                                             *

Conclusões:

1. A sentença deve ter uma estrutura argumentativa lógica, no sentido de que as premissas precedem a conclusão, que delas deve decorrer naturalmente; Quando assim acontece, inexiste nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão (sem prejuízo de poder verificar-se erro de julgamento). 

2. O cômputo dos danos em fase processual posterior, por via do incidente de liquidação, só se justifica quando se provou o dano mas não se logrou determinar o seu montante exacto: não vale, portanto, para os casos em que o demandante não logrou provar os pressupostos da obrigação de indemnizar, maxime a ocorrência de danos (prova fracassada)   

                                             *

Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença recorrida.

Custas pela apelante.


[i] Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, Reimpressão, vol. V, p.141.  

[ii] Cf. o Ac. STJ de 07-05-2008, proferido no processo  3380/07  (Relator: Vasques Dinis), assim sumariado:

“I -A decisão tem como antecedentes lógicos os fundamentos de direito (premissa maior) e os fundamentos de factos (premissa menor), não podendo o sentido da decisão achar-se em contradição ou oposição com os fundamentos, o que sucede sempre que na construção da sentença os fundamentos expressos pelo juiz, necessariamente, haveriam de conduzir a uma solução de sentido antagónico: a proposição final (conclusão) revela-se incompatível com as proposições logicamente antecedentes (fundamentos), o que traduz um vício de raciocínio. II -A nulidade de oposição entre os fundamentos e a decisão não se confunde com o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, ou com a inidoneidade dos fundamentos para conduzir à decisão”.

[iii]A esse propósito pode ler-se nessa sentença: “A ré não contestou, pelo que não se disponibilizou sequer a provar, como lhe competia, gozar do direito de retenção. Tem, pois, de ser condenada a restituir a viatura 00-00--EX à A”. Refira-se que a fundamentação de direito dessa decisão é sucinta, a que não será alheia a circunstância da ré não ter apresentado contestação e o disposto no art. 484º do C.P.C. 

[iv] Almeida Costa, in Direito das Obrigações, Almedina, 11ª edição revista e actualizada, p.579,   distingue entre ilicitude e culpa referindo que “reflectem aspectos distintos da conduta do agente, posto que intimamente relacionados. Pode dizer-se que a ilicitude encara o comportamento do autor do facto sob um ângulo objectivo, enquanto violação de valores defendidos pela ordem jurídica (juízo de censura sobre o próprio facto); ao passo que a culpa pondera o lado subjectivo desse comportamento, ou seja, as circunstâncias individuais concretas que o envolveram (juízo de censura sobre o agente em concreto). Daí que o regime jurídico das causas de exclusão da ilicitude se apresente autónomo da disciplina das causas de exclusão, atenuação ou agravamento da culpa”.    

[v] Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Almedina, 4ª edição, vol. I, p.523.
[vi] Antunes Varela, obr. cit., p. 525.
 [vii] Daí que não releve para o processo a questão de saber se “a ilegítima privação de um bem é susceptível de, por si só, constituir o agente ou o responsável na obrigação de indemnizar o credor ou o lesado, sem necessidade de prova de outros factos ou se, ao invés, a indemnização apenas pode ser atribuída quando se comprove a existência de prejuízos concretos”, a que alude Abrantes Geraldes, in Temas da Responsabilidade Civil, I Vol. (Indemnização do dano da privação do uso), 3ª edição revista e actualizada, Almedina, p.13.
[viii] Saliente-se que, no âmbito da responsabilidade contratual, nos termos do art. 799º, nº1, é sobre o devedor que recai o ónus de provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da prestação não procede de culpa sua.