Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
63/07.8TBMGR-T.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
EXECUÇÃO POR CUSTAS
MINISTÉRIO PÚBLICO
ISENÇÃO DE CUSTAS
Data do Acordão: 03/24/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MARINHA GRANDE – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 2º, Nº 1,AL. A), E 116º C. C. J. E 146ºDO CIRE
Sumário: I – Compete especialmente ao Ministério Público, nos termos do artº 3º, nº 1, al. g), do respectivo Estatuto (Lei nº 47/86,de 15/10), promover a execução das decisões dos Tribunais para que tenha legitimidade.

II – Nos termos dos artºs 116º e segs. do C. C. J., o M.º P.º tem legitimidade para executar, na parte relativa a custas, todas as decisões judiciais.

III – A reclamação no processo de insolvência – que constitui um processo de execução universal (artº 1º do CIRE) – de uma dívida de custas do insolvente, nessa figura se incluindo a propositura da acção prevista no artº 146º do CIRE (verificação ulterior), traduz-se na promoção da execução da sentença judicial que condenou o insolvente nas custas em questão.

IV – Ao intentar a acção de verificação ulterior de créditos (artº 146º do CIRE) para reconhecimento do crédito de custas, o M.º P.º age em nome próprio, na defesa de interesses que lhe são confiados por lei, nomeadamente pelos artºs 116º e segs. do C.C.J. e 3º, al. g), do Estatuto do M.º P.º, aprovado pela Lei nº 47/86, de 15/10.

V – Beneficia, por isso, da isenção subjectiva de custas prevista no artº 2º, nº 1, al. a), do C.C.J..

VI – Face ao que não lhe é exigível o pagamento de taxa de justiça (seja inicial, seja subsequente).

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

         Por apenso aos autos de insolvência nº 63/07.8TBMGR, o Ministério Público junto do Tribunal Judicial da comarca da Marinha Grande, em representação do Estado, intentou, em 19/09/2008, nos termos do artº 146º, nºs 1 e 2, al. b) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), acção declarativa com processo comum e forma sumária contra a insolvente “A... ” e contra os credores reclamantes, pedindo que o crédito por custas judiciais de € 236,20, que indica, seja reconhecido e graduado.

         Com a petição inicial não foi junto qualquer documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça inicial.

         Conclusos os autos, foi proferido o despacho de fls. 13, do teor seguinte:

         “Atento o disposto no art. 2.° e 3.° do Código das Custas Judiciais deixou o legislador de contemplar a isenção de custas do Estado, incluindo seus serviços e organismos, regiões autónomas, autarquias locais.

         Quanto à dispensa de pagamento prévio da taxa de justiça inicial, não tem lugar no caso em apreço, visto o teor do art. 29/1/a) e n.° 2 do Código das Custas Judiciais que aqui não é aplicável. Já no que tange à taxa de justiça subsequente importa considerar o disposto no n.° 4 do art. 29 do Código das Custas Judiciais.

         Assim, notifique o A. tal como disposto no art. 486-A/3 e 4 do Código de Processo Civil, ou seja, para efectuar o pagamento omitido, com o acréscimo da multa de igual montante mas não inferior a 1 UC nem superior a 10 Ucs.

         Prazo: 10 dias.

         Com a advertência de que não o fazendo, e uma vez cumprido o disposto no art. 486-A/5 do Código de Processo Civil, terá como consequência a absolvição da instância (cfr. art. 28 do Código das Custas Judiciais, conjugado com o disposto no art. 467/5/parte final e art. 486-A/3 a 5 do Código de Processo Civil)”.

         Notificado, o Ministério Público apresentou o requerimento de fls. 16 alegando que, não obstante ter-se apresentado como representante do Estado, “agiu em nome próprio ao promover a execução da decisão judicial quanto a custas – artº 3º, al. g) do Estatuto do Ministério Público aprovado pela Lei 47/86, de 15-10 e artº 116º do C.C.J.”, pelo que, nos termos do artº 2º, nº 1, al. a) do C.C.J., está isento de custas. Requereu, por isso, “que se considere como não escrita a expressão «em representação do Estado» constante da petição inicial e se dê sem efeito o despacho de fls. 13, que ordena o pagamento da taxa de justiça inicial”.

         Sobre tal requerimento recaiu o despacho de fls. 17/18, deferindo o pedido de rectificação (eliminação da petição inicial da expressão «em representação do Estado»), mas mantendo, com fundamento em que a situação concreta dos autos não cabe na previsão do artº 3º, al. g) do Estatuto do Ministério Público, o despacho de fls. 13.

         Não tendo o Ministério Público, no prazo concedido, procedido de acordo com o ordenado no despacho de fls. 13, foi, pelo despacho de fls. 21, absolvida “a Requerida da instância, ao abrigo do disposto no nº 6 daquele preceito legal (artº 486º do CPC), conjugado com o disposto no artº 494/corpo e 288/1/e) do Código de Processo Civil”.

         Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, que foi recebido como apelação, com subida imediata, nos autos, e com efeito devolutivo.

         Na alegação apresentada o recorrente formulou as conclusões seguintes:

         1) O Ministério Público propôs acção declarativa com processo sumário nos termos do art. 146º do CIRE como forma de promover a execução de uma sentença, aquela proferida no P. Nº 737/03.5TBLRA, quanto a custas.

         2) Essa função cabe ao Ministério Público no exercício de atribuições que lhe são próprias – art. 116º do C.C.J. e art.3º, al. g) do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei 47/86 de 15-10.

         3) O Ministério Público porque goza de isenção de custas nos recursos, quando age em nome próprio, não pagou a taxa de justiça inicial – art. 2º nº 1 al. a) do C.C.J.

         4) O Tribunal, entendendo que o Ministério Público estava a actuar em representação do Estado, absolveu os requeridos da instância, por falta de pagamento da taxa de justiça inicial nos termos do art. 486° n° 6 do C.P.Civil.

         5) O Tribunal fez uma errada interpretação da qualidade de intervenção do Ministério Público no caso em apreço.

         6) O Tribunal violou o que dispõe o art. 116º e 2º nº 1 al. a) do C.C.J. e art. 3º al. g) do Estatuto do Ministério Público.

         7) O Tribunal deveria, sem mais, ter determinado a citação dos requeridos para a acção.         

         Não foi apresentada resposta.

         Nada obstando a tal[1], cumpre apreciar e decidir.


***

         Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Cód. Proc. Civil[2], é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi colocada apenas a questão de saber se ao propor a presente acção o Ministério Público está ou não a agir em nome próprio, na defesa dos direitos e interesses que lhe são confiados por lei e, consequentemente, se está ou não isento de custas, com a correspondente dispensa de pagamento da taxa de justiça inicial.


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         2. FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. De facto

         A factualidade e incidências processuais relevantes para a decisão do recurso são as constantes do anterior relatório, que aqui se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.


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         2.2. De direito

         O Ministério Público representa o Estado, defende os interesses que a lei determinar, participa na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exerce a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defende a legalidade democrática, nos termos da Constituição, do presente Estatuto e da lei – artº 1º do Estatuto do Ministério Público[3].

Compete, especialmente, ao Ministério Público … promover a execução das decisões dos tribunais para que tenha legitimidade – artº 3º, nº 1, al. g).

Uma das áreas em que o Ministério Público tem legitimidade para promover a execução das decisões dos tribunais é a relativa a custas – artºs 116º e seguintes do Código das Custas Judiciais (CCJ).

Com efeito, estipula o artº 116º, nº 1 do CCJ que o Ministério Público instaurará execução se ao devedor de custas ou multas forem conhecidos bens penhoráveis.

Ao promover a execução das decisões judiciais no tocante a custas o Ministério Público está a agir, não em representação de outrem, nomeadamente do Estado, mas em nome próprio, no âmbito das suas específicas atribuições e competências e no exercício de uma função que lhe está cometida por lei e que visa proteger e prosseguir interesses de ordem pública.

Estabelece o artº 2º, nº 1, al. a) do CCJ que está isento de custas o Ministério Público, nas acções, procedimentos e recursos em que age em nome próprio, na defesa dos direitos e interesses que lhe são confiados por lei.

Não há, pois, dúvida que, estando o Ministério Público, ao promover a execução das decisões judiciais no tocante a custas, a agir em nome próprio e na defesa de interesses que são confiados por lei, beneficia da isenção subjectiva de custas referida. E, consequentemente, estando a taxa de justiça compreendida nas custas (artº 1º, nº 2 do CCJ), não está obrigado a pagar tal taxa (seja a inicial, seja a subsequente).

O processo de insolvência é, como o artº 1º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) proclama, um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente.

Em caso de insolvência, os credores do insolvente apenas poderão, durante a pendência do pertinente processo, exercer os seus direitos em conformidade com o CIRE – artº 90º – tendo necessariamente de integrar-se naquela execução universal, concorrendo com os demais credores, todos submetidos às mesmas regras.

E esse exercício traduzir-se-á na oportuna reclamação de créditos, com vista à sua verificação, reconhecimento, graduação e, na medida possível, pagamento (artºs 128º e seguintes do CIRE), no âmbito do processo de insolvência, estando vedado o recurso à execução singular.

As reclamações de créditos devem ser deduzidas dentro do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência [artºs 36º, al. j) e 128º, nº 1 do CIRE], mas, findo tal prazo, é possível reconhecer ainda outros créditos, no prazo de um ano subsequente ao trânsito em julgado daquela sentença ou no prazo de três meses seguintes à respectiva constituição, por meio de acção proposta contra a massa insolvente, os credores e o devedor (artº 146º do CIRE).

A reclamação no processo de insolvência, em tal figura se incluindo a propositura da acção prevista no artº 146º do CIRE, é a única forma possível de os credores do insolvente lograrem a cobrança, total ou parcial, dos seus créditos, isto é, de se integrarem na execução universal em que o processo de insolvência se traduz. É, portanto, uma forma de execução.

No caso dos autos o Ministério Público intentou a acção prevista no artº 146º do CIRE com vista a obter o reconhecimento, graduação e, na medida possível, pagamento da quantia de € 236,20 relativa a custas judiciais da responsabilidade da insolvente.

Com tal procedimento intentou integrar-se na execução universal que o processo de insolvência constitui e, por essa via, dar à execução a decisão judicial que condenou a insolvente nas custas reclamadas.

A referenciada actuação do Ministério Público insere-se na competência específica que o artº 3º, nº 1, al. g) do respectivo Estatuto lhe confere – promover a execução das decisões dos tribunais para que tenha legitimidade. Age, portanto, em nome próprio, no âmbito das suas atribuições e competências, na defesa de interesses que lhe são confiados por lei, nomeadamente, pelos artºs 116º e seguintes do CCJ.

Beneficia, pois, nos termos do artº 2º, nº 1, al. a) do CCJ, de isenção subjectiva de custas, não lhe sendo exigível que pague taxa de justiça (seja inicial, seja subsequente).

Logram êxito, como se vê, as conclusões da alegação do recorrente, o que importa a procedência da apelação e a revogação da decisão recorrida.

Em cumprimento do disposto no artº 713º, nº 7 do Cód. Proc. Civil, elabora-se o seguinte sumário:

I- Compete especialmente ao Ministério Público, nos termos do artº 3º, nº 1, al. g) do respectivo Estatuto, promover a execução das decisões dos tribunais para que tenha legitimidade.

II- Nos termos dos artºs 116º e seguintes do Código das Custas Judiciais, o Ministério Público tem legitimidade para executar, na parte relativa a custas, todas as decisões judiciais.

III- A reclamação no processo de insolvência – que constitui um processo de execução universal (artº 1º do CIRE) – de uma dívida de custas do insolvente, nessa figura se incluindo a propositura da acção prevista no artº 146º do CIRE (verificação ulterior), traduz-se na promoção da execução da sentença judicial que condenou o insolvente nas custas em questão.

IV- Ao intentar a acção de verificação ulterior de créditos (artº 146º do CIRE) para reconhecimento do crédito de custas, o Ministério Público age em nome próprio, na defesa de interesses que lhe são confiados por lei, nomeadamente, pelos artºs 116º e seguintes do CCJ.

V- Beneficiando, por isso, da isenção subjectiva de custas prevista no artº 2º, nº 1, al. a) do mesmo diploma legal.

VI- E não lhe sendo exigível o pagamento de taxa de justiça (seja inicial, seja subsequente).


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         3. DECISÃO

         Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, consequentemente, em revogar a decisão recorrida.

         Sem custas [artºs 2º, nº 1, al. g) do CCJ e 4º, nº 1, al. a) do DL nº 303/2007, de 24/08].


[1] No despacho recorrido encarou-se a omissão do pagamento da taxa de justiça inicial e a não satisfação do convite a pagá-lo com o acréscimo indicado como uma excepção dilatória inominada, conducente à absolvição da instância, tendo-se proferido decisão nesse sentido.
  A ser assim, o recurso não seria admissível, por o valor da acção não ser superior à alçada do tribunal recorrido (artº 678º, nº 1 do CPC).
  Contudo, se bem vemos, o processado que para a situação a lei prevê seria a recusa do recebimento da petição inicial por parte da secretaria [artº 474º, al. f) do CPC], a reclamação para o juiz (artº 475º, nº 1) e o recurso, sempre admissível, do despacho que confirmasse o não recebimento (artº 475º, nº 2).            
  De resto, a situação dos autos apresenta alguma similitude com o indeferimento liminar, do qual, nos termos do artº 234-A, nº 2, é sempre admitido recurso até à Relação.
  Essas as razões pelas quais se entende que o exíguo valor da acção - € 236,20 – não determina a inadmissibilidade do recurso nem, consequentemente, constitui obstáculo ao conhecimento do seu objecto.
[2] Diploma a que pertencem todas as disposições legais adiante citadas sem menção da origem. Esclarece-se, contudo, que, dada a data da propositura da acção – 19/09/2008 – a versão aplicável é a resultante da revisão operada pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro.
[3] Redacção dada pela Lei nº 60/98, de 27 de Agosto. 
  Veja-se também o artº 219º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, de acordo com o qual “ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática”.