Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
591/05.0TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: INÁCIO MONTEIRO
Descritores: HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA NEGLIGENTE – PLURALIDADE DE INFRACÇÕES
Data do Acordão: 06/04/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA FIGUEIRA DA FOZ – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 15º ,30º,137.º, N.º 1, 148.º, Nº1 DO CÓDIGO PENAL
Sumário: A unidade da acção ou da omissão nos crimes negligentes não exclui a possibilidade de uma pluralidade de juízos de culpa, quando uma pluralidade de lesões jurídicas tenha sido causada, sempre que os resultados da acção lhe possam ser imputados, por poderem ter estado no seu âmbito de previsão.
Decisão Texto Integral: Processo comum, com intervenção do tribunal singular, do 2.º Juízo, do Tribunal Judicial da Figueira da Foz
***

Acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra
*
No processo supra identificado, o tribunal a quo decidiu:
a) Condenar o arguido A………….., pela prática de um crime de homicídio por negligência p. e p. pelo art. 137.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 210 dias de multa, à razão diária de € 8,00 e pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência p. e p. pelo art. 148.º, nº1, do Código Penal, na pena de 70 dias de multa à mesma taxa diária.
Em cúmulo jurídico, foi o arguido na pena única de 270 dias de multa, à taxa diária de € 8,00, o que perfaz o total de € 2.160,00 (dois mil cento e sessenta euros) a que correspondem 180 dias de prisão subsidiária.
b) Na procedência do pedido de indemnização cível formulado, condenar a seguradora B a pagar ao Centro Hospitalar de Coimbra, o montante de € 5.528,32 (cinco mil, quinhentos e vinte e oito euros e trinta e dois cêntimos), acrescido dos juros legais de mora, contados a partir da notificação, até efectivo e integral pagamento, á taxa legal de 4%;
*
O arguido, inconformado, recorreu da sentença, formulando as seguintes conclusões:
«1) A douta sentença apreciou mal a prova produzida, pois dos depoimentos prestados, designadamente pela testemunha ocular C (depoimento registado de voltas 383 a 1132 do lado B, da cassette 1 - excertos acima transcritos), mas também pela própria outra interveniente, D (depoimento registado de voltas 2100 até final do lado A e de voltas 0 a 382 do lado B, tudo da cassete 1), fotografias e croquis (corroborado em audiência pelo seu autor), não pode resultar que o arguido fosse em despiste, derrapagem ou excesso de velocidade.
2) Igualmente foi mal apreciada a prova ao considerar-se que a condutora D tivesse encostado o mais à direita possível, para a sua berma, o que só é afirmado por ela, mas infirmado pelo condutor que seguia atrás do arguido, o já referido C (conforme excertos acima transcritos), que não só não refere isso, como refere que o arguido nunca invadiu a berma esquerda (e a própria D também não afirma este último ponto).
3) Ninguém refere que o arguido conduzisse com falta de cuidado e de atenção: ao contrário, além dos depoimentos abonatórios que o referem como um condutor prudente, calmo e experiente, a referida testemunha C refere que o arguido, antes de subitamente invadir a hemi-faixa esquerda, conduzia à sua frente, de forma inteiramente normal e a uma velocidade idêntica à sua, de cerca de 80km/h.
4) Como tal, deve ser suprimido o ponto 11. dos Factos Provados e alterada a redacção dos pontos 4. e 5., propondo-se a seguinte redacção:
"4. Esta apercebeu-se que o arguido circulava em contra-mão na sua direcção".
"5. A referida condutora, procurando evitar a colisão, guinou para a sua esquerda, ocupando a faixa de rodagem contrária".
5) Independentemente das propugnadas alterações da matéria de facto provada, o constante do ponto 11. deve, sempre, ser eliminado, pois que não contém qualquer facto, mas sim um juízo de valor, juízo esse que não se pode alicerçar nos factos provados (pontos 1 a 10 e 12 a 21).
6) E tal matéria de facto provada (referidos pontos 1 a 10 e 12 a 21) é clara e manifestamente insuficiente para fundamentar a decisão de condenação do arguido.
7) Ao invés, da mesma, não só não resulta nenhum facto passível de censura ético-jurídica (certo que invadiu a hemi-faixa esquerda, mas se, como alega e ninguém desmentiu, tal se deveu a um súbito desfalecimento ou quebra de tensão, o que se lhe pode censurar?), como resulta que foi a manobra inábil, inadequada e temerária da condutora do Renault que provocou o acidente, ocorrido já na hemi-faixa do arguido, a qual este retomou logo que recobrou.
8) Ainda que assim não fosse, a douta sentença violou o disposto no art. 30.º, n.º 1, do Código Penal.
9) Na verdade, desse normativo não decorre a pluralidade de infracções (homicídio involuntário + ofensa à integridade física), mas antes uma única infracção (homicídio involuntário), visto que, como é jurisprudência tradicional, em matéria de crimes involuntários, em casos de acidentes de viação, não se poderá considerar que exista, por parte do agente, uma pluralidade de resoluções ao adoptar um comportamento negligente e inconsciente, mas apenas uma resolução, merecedora de um único juízo de censura;
10) A douta sentença violou ainda, por errónea interpretação ou aplicação, o disposto nos arts. 47.º, 71.º e 77.º, todos do Código Penal.
11) Na verdade, atendendo aos critérios legais, designadamente à culpa do arguido (que a própria douta sentença considera ligeira), à sua situação económica e à sua conduta anterior e posterior ao crime, e tendo em conta a moldura penal de 10 a 360 dias, seria adequada uma multa de 120 dias pelo (único) crime, o de homicídio por negligência (funcionando a ofensa à integridade física, como agravante).
12) E, ainda que assim se não entendesse, e se considerasse haver pluralidade de infracções, atendendo aos mesmos factores, seria adequada a pena de 110 dias de multa pelo primeiro crime e de 35 dias pelo segundo, conducentes a uma pena única dos mesmos 120 dias de multa, em cúmulo jurídico.
13) E, ainda que também assim não fosse, e se considerassem correctas as penas parcelares aplicadas (210 + 70 dias), sempre, em cúmulo, a pena não deveria ultrapassar os 230 dias, atento o critério do art. 77.º, do CP.
14) Igualmente, tendo em conta o critério do art. 47.º, n.º 2, deveria o seu montante diário ser fixado em não mais de €6,00 diários».
*
Na resposta o Ministério Público, na 1.ª instância, sustenta que o tribunal recorrido apreciou devidamente a prova; inexiste insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; existe uma pluralidade de infracções e que a pena se mostra justa e adequada.
Nesta instância o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu douto parecer também no sentido da manutenção da sentença recorrida.
Cumprido que foi o disposto no art. 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, não houve respostas.
Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
Atentemos na matéria de facto dada como assente e respectiva motivação.
Factos provados:
1. No dia 12 de Março de 2005, cerca das 14H00 o arguido conduzia um veículo ligeiro de mercadorias de matrícula XX-XX-XX seguindo pelo IC-1 no sentido Leiria/Figueira da Foz.
2. Na mesma estrada, em sentido contrário, seguia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula YY-YY-YY conduzido por D que nele transportava a sua irmã e a sua tia-avó E .
3. Ao chegar próximo do Km 123,075 dessa mesma estrada, o arguido, em despiste, saiu fora da sua via de trânsito, invadindo a faixa de rodagem contrária, na qual circulava o veículo conduzido pela condutora supra referida.
4. Esta, ao aperceber-se que o arguido circulava em contra-mão na sua direcção, procurou encostar-se o mais à direita possível para a sua berma.
5. Porém, como o arguido também avançava em direcção a essa berma e em despiste a referida condutora, procurando evitar a colisão, guinou para a sua esquerda ocupando a faixa de rodagem contrária.
6. Nesse preciso momento, o arguido guinou para a mesma faixa de rodagem, colidindo violentamente com o mencionado veículo, próximo do eixo da via.
7.A estrada apresenta-se, naquele local, como uma recta com boa visibilidade.
8. O tempo estava bom.
9. Do descrito embate resultaram para a ofendida E as lesões descritas no relatório da autópsia de fls 55 a 61, nomeadamente lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, fractura da tíbia direita, ateromatpose grave genelarizada, palidez visceral generalizada que viriam, directa e necessariamente, a causar-lhe a morte.
10. Do mesmo embate resultaram para a ofendida D , vários ferimentos, melhor descritos no auto de exame médico de fls. 88 a 90 e de fls 99 e 100, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, em especial, “complexo cicatricial com sete por dois centímetros na metade direita da região frontal. Sem alterações da mobilidade da articulação tíbio-társica” e que lhe determinaram, directa e necessariamente, 31 dias de doença, 20 dos quais com afectação da capacidade de trabalho geral, mas sem afectação para o trabalho profissional.
11. O embate e as suas consequências ficaram a dever-se à circunstância de o arguido conduzir com falta de cuidado e de atenção, em desrespeito das regras de cuidado na circulação rodoviária, as quais podia e devia ter previsto.
12. O arguido exerce a profissão de armador de ferro, por conta da empresa “F ”;
13. Tem um vencimento fixo mensal de € 600,00, a que acresce a quantia média mensal de € 100,00 correspondente a horas extraordinárias que efectua aos sábados.
14. Vive em casa própria.
15. A sua esposa não trabalha.
16. Tem dois filhos maiores.
17. Não tem antecedentes criminais
18. No dia 12.03.2005 deu entrada no Centro Hospitalar de Coimbra E , onde recebeu tratamento no Serviço de Urgência e ficou internada até 02-05-2005.
19. A assistência que lhe foi prestada foi originada pelos ferimentos apresentados em consequência do supra descrito de 1. a 9.
20. Os encargos com a assistência que lhe foi prestada no Centro Hospitalar de Coimbra, importam na quantia de € 5.528,32 (cinco mil quinhentos e vinte e oito euros e trinta e dois cêntimos).
21. Por contrato de seguro titulado pela apólíce n.º 067824501 a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo XX-XX-XX encontrava-se transferido para a “Companhia Seguradora B ”.
Factos não provados:
Com interesse para a decisão da causa, para além dos enunciados, nenhuns outros factos se provaram, em especial que:
- O arguido, quando saiu da estrada por onde seguia, o fizesse desgovernado, avançando a grande velocidade.
- O arguido teve uma súbita e momentânea perda de consciência, provavelmente provocada por uma quebra de tensão, sendo esse o motivo pelo qual invadiu a semi-faixa contrária.
- Que a colisão se deu devido à reacção inepta da condutora do outro veículo ao iniciar a temerária manobra de ir para a faixa contrária onde colidiu com o arguido.
- Que a morte de E resultou de uma infecção hospitalar.
*
Motivação
A convicção do tribunal formou-se no que aos factos provados respeita, com base nos seguintes elementos de prova:
- croquis de fls. 30, conjugado com o depoimento isento e credível prestado em audiência pelo seu autor, G , soldado da GNR que se deslocou ao local do acidente instantes depois da sua eclosão, tendo elaborado o mesmo com base nas medições por si efectuadas no local e nos vestígios do acidente.
- reprodução fotográfica de fls. 35 e 36 feita ainda no dia do acidente.
- relatório de autópsia de fls. 55 a 61 e de exames médicos de fls. 88 a 90; de fls. 99 e 100; fls. 172 e 173.
Tais relatórios foram corroborados pela Prof. D.ra H , perita médica que estabeleceu o nexo de causalidade entre as lesões causadas pelo acidente e a morte de E : o acidente ocorre em Março e a morte em Julho. Explica que há uma continuidade das lesões no sentido de que a vítima morre por complicações das mesmas. Com efeito, há uma melhoria na parte neurocirúrgica que permite a alta médica, mas sem interrupção nesse processo, pois tudo o que ocorre depois surge na mesma sequência, nomeadamente a complicação brônquio- pulmonar.
- depoimentos conjugados de C (condutor do veículo que seguia cerca de 200 metros atrás do veículo ligeiro de mercadorias conduzido pelo arguido, no momento em que, de repente, o vê invadir a hemi-faixa contrária à que seguiam, fazendo-o sem que estivesse a efectuar qualquer manobra de ultrapassagem; tendo esta testemunha, assim, conhecimento privilegiado das circunstâncias de tempo, de modo e de lugar em que decorreu aquela invasão da faixa contrária e em que, por causa dela, ocorreu o acidente a que se reportam os autos. Segundo esta testemunha, o arguido circulava a uma velocidade compreendida entre os 70 e os 90 Km /h, tendo por referência a seguida pela própria testemunha (de 80 Km/h), o que se nos afigura razoável face ao limite de 70 Km /h que consta do auto de notícia para aquele local. Finalmente, por esta testemunha foi identificado o local de embate.
- de D (ofendida e condutora do veículo que foi embatido pelo veículo do arguido, a qual depôs de modo isento e credível, nomeadamente sobre o momento em que vê o arguido fora da sua faixa de rodagem e em que a ofendida, nas suas palavras, pensa que “tem que sair dali” por o mesmo vir em sua direcção).
Da conjugação dos depoimentos das testemunhas de defesa conclui-se que o arguido além de ser uma pessoa responsável, activa, é muito trabalhadora, sendo que, nas palavras de I chega a trabalhar 16 h por dia às vezes, versão esta corroborada pelo arguido ao fazer alusão às suas condições pessoais.
- CRC de fls. 184;
- a apólice junta aos autos em sede de audiência de julgamento.
-a certidão da dívida hospitalar.
Não se produziu em julgamento qualquer outra prova que permitisse dar como provados outros factos para lá dos que, como tal se descreveram.
De facto, do depoimento da perita médica foi possível concluir pela ausência de qualquer interrupção do nexo causal do processo que conduziu à morte da E .
Por falta de qualquer prova sobre a alegada quebra de tensão do arguido ou qualquer outro problema de saúde compatível com a conduta retratada nos factos provados não foi possível dar como provados os factos e versão apresentada pelo arguido.
Finalmente o choque entre os dois veículos não permite concluir por qualquer atitude temerária da ofendida, pois esta ao tentar fugir do obstáculo que lhe surgiu pela frente, vê afinal o arguido retomar a sua mão, vindo ambos a chocar um no outro, num ponto que nada faria prever.
Além disso, pese embora na origem de tal consequência esteja a invasão da faixa contrária pelo arguido, o facto é que já na confluência do embate tudo se ficou a dever às descritas circunstâncias».
*
O Direito:
São apenas as questões suscitadas pelas recorrentes e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.

Questões a decidir:
a) Apreciar se houve erro de julgamento quanto aos pontos 4, 5 e 11, dos factos provados.
b) Apreciar se existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
c) Apreciar se o arguido com a sua conduta negligente praticou um homicídio por negligência e um crime de ofensa à integridade física por negligência ou apenas um só crime de homicídio por negligência, agravado pelo resultado.
d) Aferir da adequação das penas parcelares e da pena única aplicadas.

a) Da impugnação da matéria de facto com base em erro de julgamento
Quando se pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar, nos termos do art. 412.º, n.º 3, do CPP:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.
c) As provas que devem ser renovadas.
Impõe ainda o disposto no n.º 4, do mesmo artigo que, havendo gravação das provas produzidas oralmente em audiência, as especificações a que se referem as al. b) e c), daquele n.º 3 se façam por referência ao consignado na acta, nos termos do art. 364.º, do CPP, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
Este artigo na nova redacção é bastante preciso quanto à forma como impugnar a matéria de facto, com base em erro de julgamento.
Não basta questionar a matéria de facto fixada na sentença de uma forma genérica, pois o recurso não serve para o recorrente obter uma decisão mais favorável, mas sim para corrigir erros de julgamento e designadamente quanto à fixação da matéria de facto, segundo os critérios processualmente fixados na lei.
O recorrente, observando aquelas formalidades, disse quais os pontos de facto que concretamente considera incorrectamente julgados, importando assim apreciar se houve erro de julgamento quanto aos pontos 4, 5 e 11, dos factos provados.
Os factos provados acima impugnados foram considerados na sentença recorrida na seguinte forma:
«4. Esta, ao aperceber-se que o arguido circulava em contra-mão na sua direcção, procurou encostar-se o mais à direita possível para a sua berma.
5. Porém, como o arguido também avançava em direcção a essa berma e em despiste a referida condutora, procurando evitar a colisão, guinou para a sua esquerda ocupando a faixa de rodagem contrária».
(…)
11. O embate e as suas consequências ficaram a dever-se à circunstância de o arguido conduzir com falta de cuidado e de atenção, em desrespeito das regras de cuidado na circulação rodoviária, as quais podia e devia ter previsto».
Com a impugnação da matéria de facto o recorrente propõe a seguinte redacção para os pontos 4 e 5:
Ponto 4: «Esta apercebeu-se que o arguido circulava em contra-mão na sua direcção».
Ponto 5: «A referida condutora, procurando evitar a colisão, guinou para a sua esquerda, ocupando a faixa de rodagem contrária».
Quanto ao ponto 11 propõe que seja eliminado.
Apreciemos então se o depoimento da testemunha C e da ofendida D , prova oferecida nos termos do art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPP, impõem decisão diversa da recorrida.
A testemunha ocular C , cujo depoimento se encontra registado em fita magnética, na cassete 1, lado B, contador 383 até 1132, em nada serviu à senhora juíza quanto à velocidade a que seguia o arguido.
Por isso, não se compreendem, as considerações que o recorrente tece sobre o seu depoimento nesta parte e também não se compreende a alusão que dele se faz relativamente à velocidade.
Também não têm qualquer relevância os depoimentos das testemunhas arroladas pelo arguido sobre a sua aptidão enquanto condutor e enquanto cumpridor das regras de trânsito se nada disseram quanto às causas do acidente.
A testemunha C referiu que seguia no mesmo sentido Leiria - F. Foz, cerca de 200 metros atrás do veículo conduzido pelo arguido, que no seu entender “…possivelmente provocou o acidente”, esclarecendo ainda que “…de repente dispara para a faixa da esquerda, não sei porquê…”.
Não merece qualquer dúvida, perante o depoimento desta testemunha que o veículo conduzido pelo arguido passou a transitar pela meia faixa de rodagem esquerda atento o sentido de marcha em que seguia, sem qualquer justificação.
Por sua vez a ofendida D , cujo depoimento se encontra gravado em fita magnética, na cassete 1, lado A, contador 2100 até final do lado A e cassete 1, lado B, contador 000 até 382, foi peremptória a dizer que o veículo do arguido vinha “desgovernado” e continuando a explicar diz concretamente “O carro vinha na minha direcção, não vinha direito, vinha completamente aos ziguezagues…”.
Por outro lado, a reacção da testemunha, face às regras da experiência comum, não era exigível outra atitude à arguida que não fosse abandonar a meia faixa de rodagem por onde transitava, pois viu iminente o embate.
É o próprio recorrente que oferece a ofendida para pretender uma decisão diversa quanto á matéria de facto impugnada, mas em nada o seu depoimento impõe decisão diversa. Pelo contrário ainda alicerça mais a convicção com que o tribunal a quo deu como provados os pontos 4 e 5, no sentido de que a ofendida viu-se forçada a abandonar a meia faixa de rodagem direita, atento o seu sentido de marcha, por quando refere:
“…eu vi o carro direito a mim e vi naquele momento que se eu continuasse ali naquele sítio, se eu parasse ali naquele sítio, eu ia morrer, assim como toda a gente que estava dentro do carro. Eu acho que ali tive um instinto de sobrevivência, eu tinha que sair dali, porque senão quer onde eu estivesse, o carro ia embater em mim”.
Porém, não resulta efectivamente claro do seu depoimento que procurou encostar-se o mais à direita possível para a sua berma, o que se confirma aliás com o croquis elaborado e junto aos autos a fls. 30.
Por isso, procede em parte a impugnação da matéria de facto dos pontos 4 e 5, dos factos provados, que passam a ter a seguinte redacção:
«4. Esta, apercebeu-se que o veículo XV, conduzido pelo arguido circulava na meia faixa esquerda, atento o sentido de marcha deste, isto é, Leiria- Figueira da Foz.
5. Porém, como o arguido avançava na direcção do veículo YY, conduzido pela ofendida D e em despiste, esta procurando evitar a colisão, guinou para a sua esquerda ocupando a faixa de rodagem contrária, por onde passou a transitar».
Quanto ao ponto 11 dos factos provados, nenhum depoimento dos oferecidos pelo recorrente nos permite tirar um conclusão diversa da constante da sentença, pois resulta da conjugação dos diversos elementos de prova com seja o croquis e designadamente das testemunhas atrás referidas que nada justificou a invasão da meia faixa de rodagem por onde transitava a ofendida.
O croquis de fls. 30 é elucidativo quanto à culpa do arguido na produção do acidente, pois o veículo XX por si conduzido, deixou “rastos de travagem em despiste dos pneumáticos, numa extensão de 43,00 metros”.
Rasto de travagem que o arguido não conseguiu explicar, que para um condutor com reflexos em ¾ do segundo, em pavimento seco, segundo a tabela constante do Código da Estrada de Oliveira Matos, extraída de Les accidents de la circulation, pág. 30, de Marguerite Mercier, dá uma velocidade superior a 100 km/h.
Porém, não é imputada a contra-ordenação de excesso de velocidade, o que nos impede de nos pronunciarmos em sede de recurso, sob pena de violação do princípio da proibição da reformatio in pejus.
Com estes elementos de prova, e não tendo o arguido conseguido provar qualquer causa de justificação para invadir a meia faixa de rodagem esquerda atenta o sentido em que seguia, a senhora juíza tinha de dar necessariamente como provada a matéria de facto do ponto 11, com base nos elementos de prova tão evidentes e ainda tendo em conta as regras da experiência.
*
b) Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
E existirá insuficiência para a decisão da matéria de facto provada?
É manifesto que tal vício não existe.
Se não vejamos.
Estamos perante insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício previsto no art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP, quando o recorrente pretende ver provados factos, os quais só devem ser considerados se importantes para a decisão e sendo-o, os mesmos implicam alteração da decisão.
Resulta do art. 339.º, n.º 4, do CPP que a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto existe se houver omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre aqueles factos e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento.
Admite-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal “a quo”através dos meios de prova disponíveis, seriam dados como provados, determinando uma alteração da qualificação jurídica da matéria de facto, ou da medida da pena ou de ambas – Cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, 2.ª Ed., pág. 737 a 739.
Verifica-se pois o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP, quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação (e da medida desta) ou de absolvição – Cfr. entre outros os Acórdãos do STJ de 6/4/2000, in BMJ n.º 496, pág. 169 e de 13/1/1999, in BMJ n.º 483, pág. 49.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não se confunde com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, a qual resulta da convicção do julgador e das regras da experiência.
No caso em apreço o tribunal recorrido apreciou todos os factos articulados com interesse para a decisão da causa, não se compreendendo as 7.ª e 8.ª conclusões da motivação de recurso, pois se outro fundamentos não houvesse por certo que seria rejeitado por manifesta improcedência.
Ora, tendo-se pronunciado o tribunal sobre todos os factos que lhe foram submetidos à apreciação e dada a correcção e acerto da matéria de facto quanto aos pontos 4 e 5, dos factos provados, considerados factos laterais, mas para melhor compreensão da decisão, a factualidade dada agora como assente em nada beliscam com o sentido da decisão, antes a confirmam dando com mais precisão a forma como ocorreu o acidente.
Concluímos deste modo que a sentença não sofre de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
*
c) Da unidade e pluralidade de infracções
Está assente nos autos que o acidente foi provocado por culpa exclusiva do arguido, do qual resultaram graves lesões corporais para E , as quais foram causa directa, necessária e adequada da sua morte e lesões corporais para D , que a afectaram na sua saúde e na capacidade de trabalho geral.
O tribunal recorrido condenou assim o arguido por dois crimes: um de homicídio por negligência, por da sua conduta negligente ter resultado simultaneamente a morte de uma pessoa e outro de ofensa à integridade física por negligência, por ter causado lesões que afectaram a saúde e a integridade física de outra pessoa.
Alega o arguido que praticou um único crime de homicídio por negligente, agravado “…por terem ainda resultado do acidente as lesões corporais da condutora do outro veículo”.
Sustenta a sua tese no facto de que as infracções cometidas pelo arguido foram apenas resultantes de um único acto criminal, agravadas pelo resultado em termos de pluralidade de eventos.
Nestes termos entende que apenas deveria ser aplicado ao arguido um único juízo de censura, e em consequência apenas deveria ser punido pelo crime a que coubesse a pena mais grave.
Analisemos pois a conduta do arguido e façamos o enquadramento jurídico-penal, quanto à tipificação do crime de homicídio por negligência e do crime de ofensa à integridade física por negligência e se há unidade ou pluralidade de crimes em resultado da mesma acção.
Não vamos discutir se o arguido actuou ou não com negligência, questão já sobejamente abordada na douta sentença e não posta em causa nos fundamentos do recurso.
Importa sim classificar o comportamento negligente do arguido.
Nos termos do art. 137.º, n.º 1, do CP, “Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
Estamos pois perante um crime negligente, material de dano em que o resultado consiste na morte de uma pessoa.
São elementos do tipo de homicídio negligente: a violação de um dever de cuidado; a morte de uma pessoa; a inserção do resultado no âmbito de protecção da norma que prescreve o dever de cuidado; a previsibilidade do resultado (ou a omissão concreta da vontade de o representar, como sucede no âmbito da negligência inconsciente) e a possibilidade do agente se aperceber e cumprir o dever de cuidado.
Nos termos do art. 148.º, n.º 1, do CP, “Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.
Nos crimes negligentes materiais, a negligência poderá ser consciente ou inconsciente, respectivamente consagradas nas al. a) e b), do art. 15.º, do CP.
Na negligência consciente o agente represente a possibilidade de produzir o resultado, sem que no entanto se conforme com a sua realização.
Na negligência inconsciente o agente “não chega sequer a representar a realização do facto”, isto é não chega a aperceber-se da possibilidade de produzir o resultado, o que equivale a dizer que não só não quer o resultado proibido como também não representa o perigo.
Ora, quanto ao elemento subjectivo de cada tipo legal, não tendo o arguido previsto como possível que da sua conduta resultasse o embate e as consequências do mesmo, a negligência é inconsciente.
O arguido agiu com violação de deveres objectivos de cuidado e de atenção ao trânsito rodoviário, de que podia e era capaz, o que fez invadindo a meia faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha e pela qual transitava o veículo da lesada D, com violação do disposto no art. 13.º, n.º 1, do CE, contribuindo assim de forma decisiva e exclusiva para a ocorrência do acidente, provocando lesões graves para ambas as vítimas e que foram para uma delas causa directa e necessária da sua morte, conforme relatório de autópsia.
Questiona-se na motivação de recurso se o arguido deve ser condenado por um só crime (homicídio negligente), agravado pelo resultado ou pelos dois crimes (homicídio por negligência e ofensa à integridade física por negligência).
Segundo o art. 30.º do CP “o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos (concurso heterogéneo), ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente (concurso homogéneo)”.
Pode argumentar-se, seguindo a tese do recorrente, que nos crimes negligentes não existe uma direcção de vontade do agente para a produção do resultado típico, não lhe podendo ser imputados vários crimes ao arguido e formular-se-lhe mais do que um juízo de censura, apesar de haver um resultado múltiplo, isto é a morte de uma pessoa e ofensa à integridade física de outra.
Assim, para esta tese estaríamos perante um crime de homicídio negligente, agravado pelo resultado.
Já seguimos o entendimento de que estaríamos perante um único crime, assente essencialmente na argumentação de nos crimes negligentes, mesmo que se preencham vários tipos legais de crime, ou várias vezes o mesmo tipo legal, o agente não previu os resultados típicos da respectiva conduta e por isso mesmo só pode ser dirigido ao arguido um juízo de censura.
Porém, a jurisprudência já não era unânime, mesmo ao nível desta Relação.
O Ac. da Rel. Coimbra, de 29/03/2000, acessível in http://www.trc.pt, relatado pelo ilustre senhor desembargador Serafim Alexandre, expressa a opinião de sentido diverso, o qual votava vencido nos anos de 2004 e 2005, enquanto adjunto, nos processos em que fomos relator, por considerar que existiam tantos crimes quantos os resultados verificados.
Àquele tempo, a jurisprudência das Relações era predominante no sentido de que o agente praticava um único crime, podendo consultar-se a título de exemplo os seguintes arestos:
Ac. da Rel. Coimbra de 2/03/1988, in CJ Ano XIII, T. 2, pág. 78; Ac. Rel. Évora, de 17/10/1989, in BMJ 390, pág. 482 e Ac. Rel. Porto de 28/03/2001, in CJ, XXVI, T. II, pág. 215.
Também vinha decidindo praticamente de forma unânime a jurisprudência do STJ, de que são exemplo os seguintes arestos:
Ac de 16/01/1985, in BMJ 343, pág. 184;
Ac de 28/05/1985, in BMJ 347, pág. 214;
Ac de 7/09/1986, in BMJ 359, pág. 358;
Ac de 7/03/1990, in BMJ 3395, pág. 258;
Ac de 13/10/1990, in http://www.stj.pt
Porém, cremos que a tese mais adequada e que melhor protege os bens jurídicos que se pretende acautelar é a de que o condutor que, com culpa, ocasiona acidente de viação de que resulta a morte e/ou a ofensa à integridade física de diversas pessoas, pratica tantos crimes quantos os resultados típicos verificados.
O resultado verificado (morte e ofensas corporais, danos…) é precisamente o que se pretende evitar com as normas infringidas pelo arguido - art. 137.º e 148.º, do CP e art. 13.º, do CE.
O art. 30.º, n.º 1 do Código Penal não faz qualquer distinção entre dolo e negligência, nem entre negligência consciente e inconsciente, para decidir do concurso de crimes, preceito este que teve por fonte principal o art. 33.º do Projecto de Parte Geral do Código Penal de 1963, que acolheu a solução do Prof. Eduardo Correia sobre a unidade e pluralidade de infracções.
De acordo com este autor a teoria naturalística, segundo a qual a unidade da conduta é o índice da unidade do crime, não é de acolher, pois conduziria a decidir o número de crimes pelo número de acções, conduzindo a soluções inaceitáveis em casos de concurso ideal quando, com uma só acção, se viola uma pluralidade de normas (concurso ideal heterogéneo), ou várias vezes a mesma norma (concurso ideal homogéneo).
O critério de destrinça da unidade e pluralidade de crimes terá de ser resolvido no âmbito de uma teoria jurídica e não naturalística. Se a acção tem uma estrutura valorativa, como negação de valores ou interesses pelo homem, há-de ser o número de acções assim entendidas que há-de determinar a unidade ou pluralidade de infracções.
No caso dos autos o arguido com a sua conduta causou lesões a duas pessoas distintas, em dois bens jurídicos distintos - o bem vida e a integridade física - merecedores de protecção jurídica distinta, respectivamente acautelados nos art. 137.º, n.º1 e 148.º, n.º 1, do CP.
Assim, o arguido praticará tantos crimes, quantos os valores ou bens jurídicos forem violados, independentemente de, no plano naturalístico, lhe corresponder apenas uma acção ou omissão, isto é, de estarmos perante um concurso ideal.
A este respeito escreve Eduardo Correia, in Direito Criminal, Vol. II, pág. 200:
«E assim desde logo, se acção tem uma estrutura não naturalística, mas valorativa (é a negação de valores ou interesses pelo homem), há-de ser o número de acções assim entendidas que há-de determinar a unidade ou pluralidade de infracções.
Ou por outras palavras: o número de infracções determinar-se-à pelo número de valorações que, no mundo jurídico-criminal, correspondem a uma certa actividade. Pelo que se diversos valores ou bens jurídicos são negados, outros tantos crimes haverão de ser contados, independentemente de, no plano naturalístico, lhes corresponder uma só actividade, isto é, de estarmos perante um concurso ideal. Inversamente, se um só valor é negado, só um crime existirá, já que a específica negação de valor que no crome se surpreende reúne em uma só actividade todos os elementos que o constituem.
Pluralidade de crimes significa, assim, pluralidade de valores jurídicos negados».
O art. 30.º do Código Penal trata da mesma forma os casos de concurso real e de concurso ideal de infracções.
Também o conceito jurídico-penal de negligência, reflecte o pensamento do Prof. Eduardo Correia, quando no art. 15.º se estipula o seguinte:
«Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto».
Do texto da lei extrai-se que a negligência consiste na omissão de um dever de cuidado, adequado a evitar a realização de um tipo legal de crime, que se traduz num dever de previsão ou de justa previsão daquela realização, e que o agente (segundo as circunstâncias concretas do caso e as suas capacidades pessoais) podia ter cumprido.
O que se pune na negligência não é a vontade do resultado que, por definição falta, mas sim o resultado ou lesão do bem ou bens jurídicos violados com a conduta negligente.
O fundamento principal da punição da negligência radica no facto do agente não ter querido, em face do conhecimento de que certos resultados são puníveis, preparar-se para, perante de certa conduta perigosa, os representar justamente (negligência consciente) ou mesmo para os representar (negligência inconsciente).
O problema de se decidir se num caso concreto existe um ou vários crimes é obviamente diverso do de determinar se tais crimes se devem considerar dolosos ou culposos e, do mesmo modo que é lícito reprovar a actividade do agente, quando de dolo se trate, tantas vezes quantas as lesões jurídicas que ele quis produzir, igualmente é possível censurar a sua conduta por negligente tantas vezes quantas as lesões jurídicas que ele devia prever se produziriam e efectivamente vieram a ter lugar – Cfr. Prof. Eduardo Correia, in A teoria do Concurso em Direito Criminal, Almedina, Coimbra, Ed. de 1983, pág. 109.
Também o Prof. Figueiredo Dias, em anotação ao art.137.º do Código Penal , defende que se através de uma acção são mortas várias pessoas estar-se-á perante uma hipótese de concurso efectivo, sob a forma de concurso ideal, com absoluta indiferença por que a negligência tenha sido consciente ou inconsciente, in Comentário Conimbricense do Código Penal", Tomo I, pág. 114, apoiando o trabalho de anotação dos Dr.s Pedro Caeiro e Cláudia Santos, apresentado na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6.º, Fascículo 1.º, pág.133 e seguintes.
Naquele seu trabalho de anotação os Dr.s Pedro Caeiro e Cláudia Santos refutam a unicidade do juízo de censura em caso de pluralidade de violação de bens jurídicos em crimes negligentes, demonstrando, no essencial, com base no ensinamento daqueles Professores, que a qualificação do resultado nos crimes negligentes não é uma condição objectiva de punibilidade; que o art. 30.º, n.º 1 do Código Penal, ao contrário do Código Penal alemão não faz distinção na punição entre concurso real e concurso ideal homogéneo e heterogéneo; e que o princípio da culpa não afasta a pluralidade de infracções, pois se o agente devia prever a produção das consequências do seu acto, esse dever tanto se verifica em relação a uma violação como a várias.
A unidade da acção ou da omissão nos crimes negligentes não exclui a possibilidade de uma pluralidade de juízos de culpa, quando uma pluralidade de lesões jurídicas tenha sido causada, sempre que os resultados da acção lhe possam ser imputados, por poderem ter estado no seu âmbito de previsão.
O bem jurídico protegido pelo direito penal é uma concretização de valorações constitucionais expressa ou implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais - Cfr. Prof. Figueiredo Dias, in Temas Básicos da doutrina penal, Coimbra Editora, 2001, pág. 48.
Do acidente em análise nos autos, imputado a culpa exclusiva do arguido ate resultaram para a ofendida E lesões viriam, directa e necessariamente, a causar-lhe a morte e para a ofendida D , vários ferimentos especificados no auto de exame médico e que lhe determinaram, directa e necessariamente, 31 dias de doença.
No termos acima expostos, no caso dos autos existe uma pluralidade de crimes de natureza negligente (homicídio e ofensa à integridade física) por tantos serem os ofendidos, pessoas distintas atingidas e lesadas com a conduta negligente do arguido, em dois bens distintos e eminentemente pessoais - a vida para uma da vítimas e a saúde e integridade física para a outra.
É paradigmático, apontando para esta posição o Ac. do STJ, de 15 de Novembro de 1998, relatado pelo Conselheiro Leonardo Dias – referido por Dr. Dá Mesquita na Revista do Ministério Público, ano 19.º, Outubro/Dezembro de 1998, página 161:
«Não há, em suma, do nosso ponto de vista, razão válida para se continuar a defender que, ainda que só nos casos de negligência inconsciente, o concurso ideal heterogéneo deve ser punido como um único crime. Logo, o que se impõe concluir, é que, qualquer tipo de concurso ideal homogéneo ou heterogéneo, doloso ou negligente se integra na previsão do art. 30.º, n.º 1 do C. Penal, o que significa que o agente que, com uma só acção, realiza diversos tipos legais ou realiza diversas vezes o mesmo tipo legal de crime, independentemente de agir com dolo ou negligência (consciente ou inconsciente), comete tantos crimes quantos os tipos preenchidos ou o número de vezes que o mesmo tipo foi realizado, a punir nos termos do art. 77.º do mesmo código.
Neste sentido decidiram os Ac. RP, de 5/1/2000 (BMJ n.º 493, pág. 416) e de 24/11/2004 (C.J., ano XXIX, 5.º, pág. 213); Ac. RC, de 29/3/2000 (C.J., ano XXV, 2.º, pág. 48), 23/11/2005, proferido no Proc. n.º 2398/05, acessível in www.dgsi.pt ; Ac. RE, de 24/6/2003 (C.J., n.º 167, pág. 267); Ac. RL, de 14/9/2007, proferido no Proc. n.º 2274/2007-5 e 16/5/2007, proferido no Proc. n.º 0645774, acessíveis in www.dgsi.pt e Ac. STJ, de 22/11/2007, proferido no Proc. n.º 05P3638, acessível in www.dgsi.pt .
Neste conformidade não nos merece censura a sentença recorrida ao condenar o arguido A , por um crime de homicídio por negligência e por um crime de ofensa à integridade física por negligência, respectivamente p. e p. pelo art. 137.º, n.º 1 e pelo art. 148.º, n.º 1, do Código Penal, em consequência da mesma conduta negligente inconsciente.
*
b) Da adequação das penas de multa e taxa diária aplicadas ao arguido
A aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do agente; em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (art. 40.º, n.º 1 e 2 do CP).
A defesa da ordem jurídico penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração) é a finalidade primeira que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização.
Ou seja, devendo ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, as penas são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime e em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal. - Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, pág. 55 e seguintes e Ac STJ 29.4.98 CJ, TII, pág. 194.
O arguido A , foi condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência p. e p. pelo art. 137.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 210 dias de multa, à razão diária de € 8,00 e pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência p. e p. pelo art. 148.º, nº1, do Código Penal, na pena de 70 dias de multa à mesma taxa diária.
Em cúmulo jurídico, foi o arguido na pena única de 270 dias de multa, à taxa diária de € 8,00, o que perfaz o total de € 2.160,00 (dois mil cento e sessenta euros) a que correspondem 180 dias de prisão subsidiária.
O crime de homicídio por negligência p. e p. pelo art. 137.º, n.º 1, do Cód. Penal, é punível com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa (entre 10 e 360 dias, por força do art. 47.º, n.º 1).
O crime de ofensa à integridade física por negligência p. e p. pelo art. 148.º, n.º 1, do Código Penal, é punível com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
Não se discute a natureza da pena de multa pela qual o tribunal a quo optou.
Na determinação da medida da pena, nos termos do art. 71.º, do Cód. Penal, atender-se-à a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo legal de crime deponham a favor ou contra o arguido, tendo em conta a culpa do agente e as exigências de prevenção.
A favor do arguido, como decorre da matéria de facto provada, há a considerar o seu bom comportamento anterior não só do ponto de vista criminal como quanto a infracções de natureza rodoviária.
Por outro lado o arguido é devidamente inserida quer familiar quer profissionalmente.
Contra o arguido considerar-se-á a grave violação das regras estradais já atrás apontadas e constante da matéria de facto dada como provada, sendo certo para além de se lhe imputar a contra-ordenação do art. 13.º, do CE, dever-se-lhe-ia ter imputado também logo na acusação um contra-ordenação por excesso de velocidade, que embora agora não o possa ser em sede de recurso, mas que há a ter em conta para compreender a culpa do arguido, designadamente o ponto 11, dos factos provados.
As consequências da sua conduta são graves.
Por isso nada justifica a alteração das penas parcelares e da pena única aplicadas já com evidente brandura, atenta a gravidade da conduta do arguido e as prementes razões de prevenção geral e especial.
Vejamos agora se foi adequadamente fixada a taxa diária da multa.
Nos termos do art. 47.º, n.º 2, do Cód. Penal cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 1,00€ e 498,80€ que o tribunal deve fixar em função da situação económica e financeira do arguido e dos seus encargos pessoais.
Embora o art. 47.º, do CP, preveja apenas, para a fixação do montante da taxa diária de multa, a situação económica e financeira do arguido e seus encargos, devemos ter também em conta que deve ser fixada de modo a constituir um real sacrifício para o condenado, conforme se decidiu no Ac. do STJ, de 2 de Outubro de 1997, in CJ/STJ, Ano 97, Tomo 9, pág. 183.
Só excepcionalmente se deve fixar a taxa diária da multa no mínimo e que, como regra, não deve, hoje, ser inferior a 1.000$00 (5 €) - Ac. RC de 95.05.31, Rec. 352/95; de 95.07.13, CJ, T. IV, pág. 48 e de 96.10.03, BMJ, n.º 460 /822 e do STJ, de 97.10.02, CJ, T. 3, pág. 183.
Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, pág. 128, quando se refere à determinação do quantitativo diário da multa, ao fixar-se um diferencial tão acentuado entre o limite mínimo e máximo “deste modo se visa dar realização, também quanto à pena pecuniária, ao princípio da igualdade de ónus e sacrifícios”.
Assim, dada a situação económica do arguido constante dos autos e a função que deve desempenhar a multa enquanto pena, de forma alguma se justifica que se reduza a taxa diária da multa já fixada de forma justa e adequada em 8,00 €.
*
Decisão:
Pelos fundamentos expostos, decidem os juízes da Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra, na procedência parcial quanto á impugnação da matéria de facto, alterar os pontos 4 e 5, da matéria dos factos provados, que passam a ter a seguinte redacção:
«4. Esta, apercebeu-se que o veículo XX, conduzido pelo arguido circulava na meia faixa esquerda, atento o sentido de marcha deste, isto é, no sentido Leiria- Figueira da Foz.
5. Porém, como o arguido avançava na direcção do veículo YY, conduzido pela ofendida D e em despiste, esta procurando evitar a colisão, guinou para a sua esquerda ocupando a faixa de rodagem contrária, por onde passou a transitar».
Quanto ao mérito do recurso, julga-se totalmente improcedente, confirmando-se integralmente a sentença, uma vez que a alteração da matéria de facto não implica qualquer alteração na condenação.
Custas pelo arguido, cuja taxa de justiça se fixa em 8UCS.

Coimbra, …………………………….…………..


....................................................................
Inácio Monteiro


....................................................................
Alice Santos