Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1124/07.9TJCBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
FACTOS INDICE RELEVANTES
OPOSIÇÃO DO DEVEDOR
Data do Acordão: 11/20/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA – 5º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 3º, Nº 1; 20º, Nº 1; E 30º, NºS 3 E 4, DO CIRE
Sumário: I – É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas – artº 3º, nº 1, do CIRE.

II – As oito situações elencadas nas alíneas do nº 1 do artº 20º do CIRE constituem os chamados “factos-índice” ou “exemplos padrão” de uma situação de insolvência, isto é, trata-se de ocorrências prototípicas de uma situação de insolvência, ou seja, de situações através das quais, normalmente, se manifesta essa situação.

III – A sua relevância, porém, depende da circunstância deles corresponderem, em concreto, ao “conceito base” de insolvência constante do artº 3º, nº 1, do CIRE: impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas.

IV – Esta impossibilidade, enquanto pressuposto da situação de insolvência, não tem de se referir a todas as obrigações vencidas, bastando que se refira à generalidade das obrigações vencidas.

V – A existência de um activo contabilisticamente superior ao passivo, enquanto elemento de exclusão da situação de insolvência, só releva se ilustrar uma situação de viabilidade económica, passando esta pela capacidade de gerar excedentes aptos a assegurar o cumprimento da generalidade das obrigações no momento do seu vencimento.

VI – Perante a alegação de qualquer facto-índice, o devedor pode opor-se à declaração de insolvência, não apenas com base na inexistência do facto-índice, mas também com base na inexistência da própria situação de insolvência (artº 30º, nºs 3 e 4).

VII – O novo paradigma da insolvência, assentando na primazia do interesse dos credores, e assumindo constituir “custo” destes a recuperação da insolvente, coloca nas mãos dos devedores a opção entre a recuperação e a liquidação.

Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra


I – A Causa


1. Refere-se a presente apelação (subida a este Tribunal em separado) aos autos de insolvência de pessoa colectiva, registados no 5º Juízo Cível de Coimbra sob o nº 1124/07.9TJCBR-B, no qual A... (Requerente e neste recurso Apelada) requereu a declaração de insolvência de B... (Requerida, Insolvente e, neste recurso, Apelante).

Declarada, nos termos constantes da Sentença certificada a fls. 23/39 – que consubstancia a decisão objecto desta apelação –, a insolvência da Requerida [Através da seguinte formulação:
“[…]
Nestes termos e nos mais de direito, na medida em que o factualismo demonstrado é configurador de situação de insolvência da devedora, declaro em situação de insolvência «B...», com sede na Rua Casal de Vagares, nº 32, 3030-141 Coimbra”.
[…]”
[transcrição de fls. 37]], apresentou-se esta, inconformada com tal pronunciamento decisório, a interpor o presente recurso (requerimento certificado a fls. 40), admitido, pelo despacho certificado a fls. 41, como apelação, à qual se fixou, nos termos do artigo 14º, nº 5 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (doravante CIRE) [Trata-se do Código aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março. Este aplica-se por estar em causa insolvência requerida posteriormente a 18/04/2004, data da entrada em vigor do CIRE (cfr. artigos 12º, nº 1 e 13º do DL nº 53/2004).], o regime de subida imediata em separado, com efeito devolutivo.

A rematar as alegações que apresentou (fls. 1/5 desta apelação), formulou a Apelante as seguintes conclusões:

“[…]
1ª- A matéria de facto produzida em audiência de julgamento foi doutamente avaliada e ponderada pelo Tribunal a quo. A resposta dada por este Tribunal à matéria de facto controvertida traduz uma competente análise e uma criteriosa consignação da verdade dos factos.
2ª- Acontece, porém, que a sentença de que ora se recorre sofre de uma contradição notória entre o acervo probatório considerado e a decisão final que declarou em situação de insolvência a Recorrente, traduzindo uma incorrecta subsunção dos factos ao direito.
O acervo fáctico considerado não poderia conduzir […] à sentença proferida – contradição notória e que resulta do texto da própria Sentença.
3ª- De toda a matéria provada em sede de audiência de discussão e julgamento concluímos estar perante uma empresa:
a) com novas alternativas de mercado;
b) merecedora de confiança de fornecedores que lhe vão concedendo crédito e a quem vai pagando;
c) com um activo superior ao passivo (ainda com uma maior diferença do que a que resulta dos balanços contabilísticos, dado o que resultou provado em 16 e 17 da Sentença);
d) merecedora de confiança de instituições como o C. R. Seg. Social, tendo-se celebrado entre ambos acordos de pagamento que já começ[aram] a ser cumprido[s];
e) que tem efectuado pagamentos significativos, quer a particulares quer à Fazenda Nacional, nomeadamente em 2006 e 2007.
4ª- No caso sub judice a recorrente carreou para o processo elementos vários que o Tribunal a quo deu como provados, capazes, em nosso entender, de afastar a presunção do facto-índice, foram eles [:] os pagamentos efectuados à Segurança Social [que já se iniciou]; os pagamentos a credores particulares, bem como o desenvolvimento de novas actividades (factos estes que o Tribunal a quo deu como provados). Não foi este, no entanto, o entendimento do Tribunal a quo, vindo a considerar-se e a decidir-se sem que tais elementos fossem ponderados.
5ª- A Sentença refere a p. [35] parágrafo 5º que «[o]corre no caso concreto ainda outros factos…, a saber: a) suspensão generalizada do pagamento de obrigações vencidas…nestas se incluindo a dívida a fornecedores vários e também as dívidas fiscais – em clara contradição com a matéria dada como provada nos pontos 8 a 11, 19 e 20, pp. [29, 30].
6ª- Em conclusão, entendemos que os requisitos para a declaração de insolvência não se encontram preenchidos, tendo a matéria de facto provada na Sentença […] sido suficiente e adequada para que o Tribunal decidisse em sentido oposto.
7ª- Para que seja feita justiça deverão V. Exs. Declarar nula a Sentença proferida, nos termos do artigo 668ºº, nº 1, alínea c) do Código de Processo Civil, por enfermar de vício notório na subsunção dos factos ao Direito, existindo oposição entre os fundamentos e a decisão.
8ª- Normas violadas: artigos 3º e 20º, nº 1 do CIRE e 668º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Civil.
9ª- Foi violado igualmente o princípio da livre apreciação da prova.
10ª- Nestes termos, e em conformidade, dado que o factualismo demonstrado não configura a situação de insolvência da Recorrente, deverá o requerido em primeira instância ser considerado improcedente por não provado, revogando-se a Sentença recorrida, ordenando-se que cessem todas as limitações legais à actividade empresarial da Apelante, bem como todo o processado decorrente da lei e ordenado pelo Tribunal a quo.
[…]
[transcrição de fls. 11/12]


No despacho que ordenou a subida do recurso a este Tribunal, apreciou a Exma. Juíza, desatendendo-a, a nulidade da Sentença invocada pela Apelante (fls. 15 e vº).

II – Fundamentação

2. O âmbito objectivo do recurso – de qualquer recurso e deste em concreto – é definido (delimitado) pelas conclusões com as quais o recorrente o remata [artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC)], importando, assim, decidir as questões colocadas através dessas conclusões – e, bem assim, as que forem de conhecimento oficioso –, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigo 660º, nº 2 do CPC).

Tendo isto presente, constata-se que a Apelante não impugna a matéria de facto apurada pela primeira instância, afirmando-o, enfaticamente, logo no início das suas alegações (com correspondência no item 1º das conclusões acima transcritas). Assim, considera-se tal matéria fixada, nos exactos termos em que a elencou a Sentença recorrida no seu item IV a fls. 26/30 [Que aqui se reproduz, não obstante o disposto no artigo 713º, nº 6 do CPC, por se entender que facilita o percurso argumentativo do presente Acórdão.]:

“[…]
A. A requerida é uma sociedade por quotas que se dedica à actividade de «fiscalização de obras públicas e privadas; consultadoria geral a empresas, quer a nível administrativo, financeiro ou produtivo; avaliações; peritagens; averiguações ou outras de bens móveis e imóveis; actividade imobiliária em geral, incluindo promoção própria; projectos de engenharia em geral; representação e venda; importação e exportação de produtos e serviços relacionados com o seu objecto social, bem como a construção civil de obras públicas e obras particulares; reparação e demolição de imóveis; execução de trabalhos de saneamento básico arruamentos em zonas urbanas; canalizações; água, esgotos e gás; parques e jardins; construção de reservatórios; sistemas de regadio e obras de aproveitamento hidráulico em geral.” (objecto social).
B. Estando matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Coimbra sob o nº 503 608 378,
C. o seu capital social é de €90.000,00.
D. Constituída como sociedade por quotas, conforme ap. 01/19950720, o seu capital subdivide-se em duas quotas iguais, de que são titulares José Alfredo Alegre Cabo e Helena Maria Alves Apóstolo, ambos gerentes, vinculando-se com a assinatura de dois gerentes.
E. A requerente dedica-se à actividade industrial e comercial de fabrico e aplicação de mobiliário de cozinha e afins.
F. No âmbito da sua actividade que exerce e de que vive, procedeu a pedido da requerida à execução de vários serviços em regime de subempreitada, nomeadamente os constantes das facturas nº 2004001. no valor de €4.376,45, e 2004054, no valor de €13.683,56, de 1-04-2004 e 29-10-2004, no valor global de €28 060,01, a primeira com vencimento em 31-05-2004 e a segunda com vencimento em 28-12-2004.
G. Após execução dos respectivos trabalhos, a requerente emitiu e enviou as facturas à requerida, a qual as aceitou como boas, e delas não reclamou, nem as devolveu.
H. Entretanto, e tendo a requerente instaurado acção executiva sob o processo nº 1201/06.3TBCBR, na 2ª secção da Vara Mista de Coimbra, na qual foi deduzida Oposição à execução, requerente e requerida chegaram a acordo no âmbito desta, em que a requerida reconheceu ser devedora do montante global de €35.255,15 […], tendo a requerente desistido de segunda execução entretanto instaurada sob o processo nº 3043/06.7TJCBR do 3º juízo cível de Coimbra, desistência essa homologada.
I. Cifrando-se o débito em tal valor, a que acrescem juros vencidos e vincendos desde 16-05-2006,
J. E que se liquidam, à data de 19-03-2007, em €3.558,35.
K. Na sequência da Execução Comum 1201/06.3TJCBR a correr termos na 2ª secção da Vara Mista de Coimbra foram registadas duas penhoras na 1ª Conservatória de Registo Predial, incidindo sobre dois prédios urbanos propriedade da Requerida.
L. Encontram-se registadas hipotecas sobre bens da Requerida relativamente aos seguintes credores:
- Caixa Geral de Depósitos, S.A., para garantia do valor € 1.724.868,06;
- Caixa Crédito Agrícola de Coimbra, para garantia do valor € 99.759,58;
- Banco Internacional de Crédito, para garantia do valor € 341.377,28.
M. Mostram-se registadas penhoras sobre os imóveis da Requerida relativamente aos seguintes credores:
- DEOMARSOL para garantia do valor €5.719,30 + €14.067,64;
- À Fazenda Nacional para garantia do valor €95.372,31;
- Cialpa – Serralharia de Inox e Alumínios, Ldª, para garantia do valor €10.054,25.
N. A actividade do sector da construção tem evidenciado ritmos de produção negativos ligados a factores como a insuficiente nível de procura/clientes.
O. A morosidade na venda do produto resultante da conjuntura de mercado justifica a falta de clientes para a sua principal fonte de produção: moradias e/ou terrenos para construção.
P. O principal cliente da requerida é o consumidor final.
[…]
1 – Em resultado da crise do sector, desde início de 2006, a requerida deixou de conseguir vender o produto da sua actividade de construção civil.
2 – A banca deixou de conceder crédito à requerida.
3 – Todo o património da requerida encontra-se onerado com hipotecas e penhoras, a saber, penhoras sobre os imóveis da Requerida relativamente aos seguintes credores: DEOMARSOL para garantia do valor €5.719,30 + €14.067,64; Fazenda Nacional para garantia do valor €95.372,31; Sialpa – Serralharia de Inox e Alumínios, Ldª, para garantia do valor €10.054,25 (valor este já liquidado); e hipotecas relativamente aos seguinte credores: Caixa Geral de Depósitos, S.A., para garantia do valor €1.724.868,06; Caixa Crédito Agrícola de Coimbra, para garantia do valor €99.759,58; e Banco Internacional de Crédito, para garantia do valor €341.377,28.
4 – No ano de 2006, a requerida vendeu património imobilizado para amortizar dívidas a fornecedores, no valor de €7.172,69.
5 – O produto resultante da sua produção nos últimos anos, num montante global de €1.612.266,57 encontra-se para venda no mercado imobiliário.
6 – A requerida tem vindo a desenvolver, paralelamente à actividade de promoção própria, alguns trabalhos na área da Engenharia, executando trabalhos para terceiros ao nível de coordenação de obra, compatibilização e coordenação de projectos, medições, orçamentos e peritagens, tendo prestado – no ano de 2006 – serviços num total de €154.035,62.
7 – A dívida a cobrar junto de clientes particulares e públicos é na ordem dos €8.956,50 tendo sido desenvolvidos esforços por escrito e telefonicamente quer recorrendo à via judicial, no sentido de proceder ao recebimento das referidas dívidas.
8 – A requerida tem vindo a obter confiança de alguns fornecedores, a quem vai pagando.
9 – A requerida tem vindo a efectuar pagamentos junto das finanças, num total de €35.309,90 em 2006 e €12.744,32 em 2007.
10 – A requerida celebrou com a Segurança Social acordo para regularização de dívida, sendo que relativamente a um destes processos (0601200501017080) já foi pago o capital de €2. 347,25 e respectivos juros, estando a aguardar documento rectificativo do valor em dívida relativo ao processo.
11 – No ano de 2006 e 2007 foram efectuados diversos pagamentos a fornecedores, no valor de ao menos €69.452,04.
12 – O valor contabilístico do património imobilizado é de €765. 791,18, conforme consta do balanço de 2005, o último disponível.
13 – O total do património imobilizado vendido durante 2006 foi para amortizar dívidas a fornecedores no valor de €7.172,69.
14 – A requerida possui ainda património fruto da sua produção própria, cujo valor contabilístico é de €1.613.610,63 (somatório dos produtos e trabalhos em curso e matérias primas subsidiárias e de consumo).
15 – O conjunto do património representa €2.379.401,81.
16 – Apesar de a CGD possuir registadas hipotecas sobre vários artigos matriciais (605, 606, 614 e 615), no valor de €1.724. 868,06, à data da oposição não havia sido utilizado o total do financiamento, sendo o valor em dívida a tal instituição de apenas €325.164,00.
17 – O mesmo sucedendo relativamente à Caixa Crédito Agrícola de Coimbra e Banco Internacional de Crédito.
18 – O valor de venda dos imóveis correspondente aos artigos matriciais 605º, 606º, 614º e 615º é actualmente de €1.009.824,57 (sendo terreno destinado a construção contendo duas moradias edificadas em fase de tosco; terreno com projecto licenciado para duas moradias e licenças pagas, movimento de terras e infra-estruturas executadas; terreno com projecto licenciado para duas moradias, e licenças pagas, movimento de terras e infra-estruturas executadas terreno destinado a construção contendo duas moradias em fase de toscos).
19 – Posteriormente a 10/10/2006, a requerida pagou à Fazenda Nacional o valor de €38.161,43.
20 – A requerida regularizou a quantia em divida à credora «Sialpa» no valor de 10.054,25 €.
21 – O valor do património da Requerida é de €2.379.401,81 (valor de venda a preço de custo dos artigos matriciais nº 605, 606º, 615º e 614º, bem como o 508º [,correspondente a um] terreno para construção).
22 – As dívidas a terceiros somam o valor de €2.050.305,00.
23 – A requerida tem procurado novas alternativas de mercado.
[…]”
[transcrição de fls. 26/23]


2.1. Estrutura-se a apelação em torno da discussão do preenchimento da situação de insolvência relativamente à Apelante. Trata-se, pois, de controlar a operação de subsunção dos factos ao direito operada pela Sentença, na caracterização dessa situação, por referência ao pressuposto objectivo caracterizado pelo artigo 3º, nº 1 do CIRE: “[é] considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.

2.1.1. Esta caracterização do recurso exclui, contrariamente ao indicado pela Apelante, que se esteja perante uma nulidade da Sentença impugnada, por os fundamentos desta estarem em oposição com a decisão (artigo 668º, nº 1, alínea c) do CPC). Com efeito, importa ter presente que esta norma se refere, como correctamente observou a Exma. Juíza a quo ao determinar a subida do recurso a fls. 15, aos desvalores da própria Sentença, enquanto documento de conteúdo vinculado e parâmetros definidos (valem, quanto àquele e a estes, as regras constantes dos artigos 658º e seguintes do CPC e o artigo 668º fixa a consequência da infracção destas regras), sendo coisa distinta desses desvalores a crítica ao conteúdo da decisão, enquanto acto de aplicação do direito aos factos. Na essência desta diferença se radica a distinção, por referência aos valores jurídicos negativos da sentença, entre inexistência jurídica e nulidade desta, por um lado, e, por outro lado, revogabilidade do respectivo pronunciamento [V. a caracterização desta distinção em João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, III vol., ed. policopiada, Lisboa, 1978/79, pp. 307/312.]. É, pois, neste último elemento, e não na nulidade da Sentença, que se encontra o espaço de intervenção desta Relação no presente recurso, cumprindo sindicar aqui o acto de julgamento em si, e não o processo de formação do elemento que serviu de suporte a esse acto.

2.2. Na lógica argumentativa da Sentença, a situação de insolvência da Apelante assenta na verificação cumulativa dos factos-índice constantes das alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 20º do CIRE. Trata-se de uma constatação interpretativa que assenta numa leitura compaginada de cada um desses factos (da realidade que lhes subjaz) com o elemento fulcral da situação de insolvência: a circunstância do devedor se encontrar impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas [Este elemento fulcral tem assento no segmento normativo inicial do artigo 3º do CIRE, dispondo a totalidade da norma o seguinte:
Artigo 3º
Situação de insolvência
1. É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
2. As pessoas colectivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma directa ou indirecta, são também considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis.
3. Cessa o disposto no número anterior, quando o activo seja superior ao passivo, avaliados em conformidade com as seguintes regras:
a) Consideram-se no activo e no passivo os elementos identificáveis, mesmo que não constantes do balanço, pelo seu justo valor;
b) Quando o devedor seja titular de uma empresa, a valorização baseia-se numa perspectiva de continuidade ou de liquidação, consoante o que se afigure mais provável, mas em qualquer caso com exclusão da rubrica de trespasse;
c) Não se incluem no passivo dívidas que apenas hajam de ser pagas à custa de fundos distribuíveis ou do activo restante depois de satisfeitos ou acautelados os direitos dos demais credores do devedor.
4. Equipara-se à situação de insolvência actual a que seja meramente iminente, no caso de apresentação pelo devedor à insolvência.].

O estabelecimento dos chamados factos-índice (as oito situações elencadas nas alíneas do nº 1 do artigo 20º do CIRE) assenta numa técnica legal específica, habitualmente designada como estabelecimento de “exemplos-padrão”. Na nossa ordem jurídica constitui paradigma desta técnica o artigo 132º do Código Penal respeitante ao homicídio qualificado: as diversas situações indicadas nas alíneas do nº 2 do referido artigo 132º, constituem protótipos de homicídios cujas circunstâncias revelam, em princípio, especial censurabilidade ou perversidade (mesmo artigo 132º, nº 1), sendo que tanto pode ocorrer que na apreciação concreta se conclua que a presença de elementos contidos no exemplo não signifique esse preenchimento, por não revelar uma “especial censurabilidade ou perversidade”, tal como, simetricamente, podem existir situações, totalmente exteriores aos exemplos, que revelem, não obstante, essa mesma “especial censurabilidade ou perversidade” e que, por isso, integrem o tipo do homicídio qualificado [Esta constitui a interpretação corrente do artigo 132º do Código Penal: “[o] legislador português de 1982 seguiu, em matéria de qualificação do homicídio, um método muito particular […]: a combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica chamada dos exemplos-padrão […]. Por outras palavras, a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a «especial censurabilidade ou perversidade» do agente referida no nº 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos […] exemplarmente elencados no nº 2. Elementos estes assim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos […] aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador” [Jorge de Figueiredo Dias, anotação ao artigo 132º do Código Penal, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial (Dir. Jorge de Figueiredo Dias), Tomo I, Coimbra, 1999, pp. 25/26].] .

Ora, no caso dos factos-índice do artigo 20º, nº 1 do CIRE, trata-se de indicar ocorrências prototípicas de uma situação de insolvência, ou seja de indicar situações através das quais, normalmente, se manifesta essa situação, por corresponderem elas, tendencialmente pelo menos, a uma impossibilidade do devedor cumprir as suas obrigações vencidas, ou seja, por corresponderem ao “conceito-base” – chamemos-lhe assim – contido no artigo 3º, nº 1 do CIRE. Significa isto – e isto constitui a essência da técnica dos “exemplos-padrão” –, por um lado, que a “[…] impossibilidade de [o devedor] cumprir as suas obrigações vencidas” pode ocorrer totalmente fora das facti species elencadas no nº 1 do artigo 20º do CIRE, tal como pode ocorrer, por outro lado, que a verificação de qualquer destas facti species não corresponda em concreto à impossibilidade mencionada no nº1 daquele artigo 3º, rectius que não corresponda a uma situação de insolvência.

É neste sentido que se afirma, caracterizando o sentido interpretativo geral das diversas alíneas do nº 1 do artigo 20º do CIRE, “[…] constitu[irem elas] meros índices da situação de insolvência, tal como definida no artigo 3º […]” acrescentando-se que, “[…] perante a alegação de qualquer facto-índice, o devedor pode opor-se à declaração de insolvência, não apenas com base na inexistência do facto-índice, mas também com base na inexistência da própria situação de insolvência (artigo 30º, nº 3). A lei refere que cabe ao devedor a prova da sua solvência (artigo 30º, nº 4), mas do que se trata é de elidir a presunção de insolvência” [Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, 3ª ed., Coimbra, 2006, pp. 61/62.
Caracterizando a mesma realidade refere Pedro de Albuquerque: “[o]s factos enunciados no artigo 20º/1 do CIRE […] são meros indícios ou presunções de insolvência, podendo demonstrar-se que não obstante a respectiva verificação se não está perante uma hipótese de insolvência (artigo 3º/3 do CIRE)” (“Declaração da situação de insolvência”, in O Direito, 2005/III, p. 514).
No mesmo sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, anotando o artigo 20º do CIRE, indicam estarem em causa o “[…] que, correntemente, se designa por factos-índices ou presuntivos da insolvência, tendo precisamente em conta a circunstância de, pela experiência da vida, manifestarem a insusceptibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações, que é a pedra de toque do instituto” (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, vol. I, reimpressão, Lisboa, 2006, p. 131).]. Aliás, e esta constitui outra incidência particularmente relevante dos factos-índice subjacentes ao mencionado artigo 20º, nº 1, através da alegação destes opera-se a legitimação, fora do caso da apresentação pelo próprio devedor, para requerer a insolvência [É com este sentido que Isabel Alexandre indica que a causa de pedir do processo de insolvência, “[…] que […] consiste no facto do qual decorre a impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas […], só poderá ser indiciada por certos factos”, sendo eles, obviamente, os elencados no nº 1 do artigo 20º (“O processo de insolvência: pressupostos processuais, tramitação, medidas cautelares e impugnação da sentença”, in Revista do Ministério Público, Jul-Set/2005, Nº 103, p. 128). Note-se que esta asserção se refere à insolvência desencadeada por interessado diverso do próprio insolvente, como resulta da leitura conjugada dos artigos 18º e 20º do CIRE.]. Acresce que, desta feita indirectamente, por conjugação com o artigo 30º do CIRE, procede-se desta forma à distribuição, tanto numa perspectiva subjectiva como objectiva, do ónus da prova no processo de insolvência [Pressupomos aqui a dicotomia ónus objectivo – ónus subjectivo da prova, nos termos em que esta dicotomia é enunciada, no quadro da chamada “teoria das normas”, por Pedro Ferreira Múrias: “[…] o ónus da prova objectivo é o instituto que determina segundo qual das versões disputadas deve decidir-se quando é incerta a verificação de algum facto pertinente. O instituto do ónus subjectivo ou ónus da produção de prova prescreve a qual das partes processuais incumbe alguma actividade probatória, sob pena de ver a sua pretensão desatendida” (Por Uma Distribuição Fundamentada do Ónus da Prova, Lisboa, 2000, pp. 20/21). Daí que – e continuamos a citar Pedro Ferreira Múrias: “[…]as normas do ónus da prova, em cuja facti species se encontra a incerteza processual sobre um elemento que preenchesse a previsão da norma material […,] [sejam] normas de decisão […], são «quanto à questão da [sua] eficácia», apenas um meio auxiliar da decisão de mérito que autoriza o juiz a decidir como se tivesse obtido um resultado positivo ou negativo quanto à verificação de certo facto, i.e., através da ficção […]” (ob. cit., pp. 62/63).].

2.3. Através das antecedentes considerações, traçou-se o quadro geral de referência da insolvência, entendida como pressuposto objectivo do processo de execução universal regulado no CIRE – pressuposto que se expressa, através de uma formulação decisória positiva ou negativa, no culminar da “fase declaratória” inicial do processo. Cumpre agora, por ser esse o objectivo da apelação, controlar a fixação desse pressuposto pelo Tribunal a quo.

Já atrás se mencionou a referência da Sentença à verificação in casu dos específicos factos-índice constantes das alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 20º do CIRE [São eles:
“[…]
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a) Suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas;
b) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações;
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[…]”]. Ora, equivalendo esta afirmação – e é neste sentido que ela é feita na Sentença – ao entendimento de que a Requerida/Apelante não afastou a indiciação, operada por esses factos, da situação enunciada no artigo 3º, nº 1 do CIRE, cumpre, pois, apreciar da expressividade desses factos relativamente à situação, referida à Apelante, de impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas.

2.3.1. Numa primeira aproximação constata-se que a Apelante, efectivamente, tem cumprido algumas obrigações vencidas (esse é o sentido dos itens 4, 8, 9, 10 e 11 dos factos provados). Todavia, esse cumprimento, referindo-se a dívidas há muito vencidas, ocorreu paralelamente ao incumprimento reiterado de outras obrigações igualmente vencidas (designadamente da representada pela Requerente da insolvência, aqui Apelada) e tem como pano-de-fundo um quadro de grandes dificuldades económicas, não meramente conjunturais, em que a subsistente actividade produtiva se prefigura, em termos de resultados reais, como de natureza residual ou simbólica [veja-se, no item 6 dos factos, o valor por ela gerado (€154.035,62), comparando-o com o valor da produção dos últimos anos pendente de comercialização (€1.612.266,57) e o montante global do passivo (€2.050.305,00)]. Serve isto para alicerçar a ideia de uma quase paralisação da Apelante, enquanto agente solvente no mercado, ideia esta que a ponderação do que se indica no item 10 dos factos parece confirmar [A celebração de um acordo de regularização pressupõe, pela própria natureza das coisas, que a dívida em causa esteja vencida e não tenha sido satisfeita atempadamente.], tal como o confirma a circunstância de o património da Apelante se encontrar muito significativamente onerado com penhoras (item 3 dos factos) [Que pressupõem uma instância executiva, sendo que esta pressupõe o não pagamento de uma dívida exigível, logo vencida.].

Sugerindo a situação exposta, fortemente, que a suspensão de pagamentos por parte da Apelante assume uma natureza generalizada, constata-se, cumulativamente a isto, que o incumprimento sobre o qual dispomos de uma mais significativa informação, designadamente o em causa relativamente à Apelada, apresenta contornos temporais (perdura vencida e não paga a dívida a esta última desde 2005) e situacionais que revelam, inquestionavelmente, a impossibilidade em que a Apelante se encontra de satisfazer com pontualidade a generalidade das suas obrigações. Só assim se compreende, no sentido já antes indicado, a existência de acordos de pagamento com a Segurança Social e a existência de penhoras. Aliás, tal impossibilidade traduz o pesadíssimo lastro que um passivo de €2.050.305,00 (a maior parte dele já exigível) representa para uma empresa que, não conseguindo vender a sua produção dos últimos anos, no valor de €1.612.266,57, logrou angariar com a sua actividade produtiva no ano transacto escassos (comparativamente à relevância do serviço da dívida) €154.035,62.

2.3.2. O quadro acabado de traçar deve ponderar, conforme indica a Apelante, a existência de um balanço contabilisticamente positivo entre o passivo e o activo patrimoniais [€329.096,81, correspondentes à subtracção ao valor do património (€2.379.401,81) do montante das dívidas (€2.050.305,00)]. Essa ponderação, porém, afastando, aparentemente, a situação em causa no nº 2 do artigo 3º do CIRE [“As pessoas colectivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma directa ou indirecta, são também considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis”.], está longe de caracterizar uma situação de viabilidade económica e de afastar a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas [“A impossibilidade afere-se […] em função da incapacidade ou impotência financeira ou patrimonial do devedor para liquidar a obrigação vencida. Daqui decorre que estamos perante uma impossibilidade de cumprimento objectiva (referida a um «stato di facto») e não simplesmente a um comportamento omissivo (não paga ou não cumpre)” (Nuno Maria Pinheiro Torres, “O Pressuposto Objectivo do Processo de Insolvência”, in Direito e Justiça, 2005/tomo II, p. 170).]. De facto, basta pensar na desproporção entre os resultados da subsistente actividade realizadora de capital da Apelante, as tais “novas alternativas de mercado”, e o montante do passivo exigível para perceber a inviabilidade da Apelante e compreender que um hipotético relançamento desta passaria por algo necessariamente muito mais expressivo e consistente que a “boa vontade” de alguns clientes. Passaria, e sempre “esquecendo” o que consta do item 2 dos factos [“A Banca deixou de conceder crédito à Requerida”.], pela mobilização de novos valores ao abrigo das “aberturas de crédito” em causa nos itens 16 e 17 dos factos e esta mobilização, além de ocupar efectivamente as garantias já constituídas ao abrigo de tais contratos – o que demonstra a pouca consistência do argumento da superioridade do activo –, desencadearia novos encargos financeiros que a Apelante não está notoriamente em condições de satisfazer.

Vale aqui recordar, citando um estudo de Maria João Coutinho dos Santos, que “[a] situação de insolvência sendo, conceptualmente, um fenómeno de índole económica manifesta-se sob a forma de uma insuficiência de liquidez para solver as obrigações financeiras contratuais, a qual é resultante da incapacidade, não necessariamente transitória, da empresa gerar excedente económico” [“Algumas Notas sobre os Aspectos Económicos da Insolvência da Empresa”, in Direito e Justiça, 2005/tomo II, p. 182.]. Esta incapacidade, que os elementos disponíveis de modo algum sugerem ser passageira, é aqui demonstrada pela circunstância de a Apelante não conseguir colocar no mercado (e de assim gerar lucro) a sua produção dos últimos anos.

2.4. A situação da Apelada, caracterizada nos termos acabados de indicar – que são os que emergem dos factos provados –, coloca-nos no âmago da teleologia do CIRE, enfaticamente expressa no respectivo artigo 1º: “[o] processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente”.

É o que se qualifica de “novo paradigma da insolvência” [A expressão é usada por Catarina Serra em O Novo Regime Português da Insolvência. Uma Introdução, 2ª ed., Coimbra, 2007, p. 9.] e corresponde, entre nós, à evolução do direito concursal do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência (o CPEREF, aprovado pelo Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril) para o CIRE que o substituiu. Tal evolução, à qual não é estranho um olhar crítico sobre o passado do instituto [Nas palavras de Menezes Cordeiro: “[…] aquando das reformas vintistas das leis de falência, a problemática socio-económica ligada aos temas concursais levou os legisladores a privilegiar soluções que permitissem a recuperação das empresas […]. A prática do sistema mostrou ser mau caminho. As empresas em dificuldades não se recuperam, pela natureza das coisas, só por si. A obrigatoriedade de percorrer o calvário da recuperação para, depois, encarar a fase concursal, traduziu-se, em regra, num sorvedouro de dinheiro, com especiais danos para os credores e os próprios valores subjacentes à empresa” (“Introdução ao Direito da insolvência”, in O Direito, 2005/III, p. 499).], assenta, nos termos em que a caracteriza Catarina Serra, na consideração de que “[o] regime da falência passa a ter [com o CIRE] a missão principal de saneamento da economia («falência-saneamento») e a tarefa fundamental de identificar os agentes económicos capazes e viáveis, que merecem ser apoiados, mas também os agentes económicos […] incapazes, que devem ser eliminados” [O Novo Regime…, cit., p. 10.]. É com base nesta teleologia que o CIRE eliminou o primado da recuperação sobre a falência, transformando aquela (a recuperação), tão-só, numa possível finalidade, em alternativa à liquidação, do processo de insolvência, totalmente dependente da vontade dos credores [“ A primazia do interesse dos credores – cfr. artigo 46º/1 [do CIRE] – pretende afastar o óbice da recuperação: esta deixa de ser o fim último do processo; surge à frente, como mera eventualidade, totalmente dependente da vontade dos credores” (Menezes Cordeiro, “Introdução…”, cit., p. 500).].

Significa isto, que a pretensão de manutenção de actividade da Apelante deve passar pela ponderação dos seus credores, através da possível consideração, constatada e declarada a insolvência, da aprovação de um “plano de insolvência” (artigos 192º e seguintes do CIRE). Com efeito, se é sobre os credores que incidirá fundamentalmente o “custo” da recuperação, importando esta, desde logo, o protelamento da satisfação dos respectivos créditos, é aos credores que compete avaliar a possibilidade, que a Apelante antevê como factível, de relançar a sua actividade económica. Ao Tribunal competia tão-só – e foi o que ele fez – determinar se a situação da B... correspondia à facti species do artigo 3º, nº 1 do CIRE.

É esta, como se disse, a teleologia do CIRE, sendo evidente que a Sentença apelada a captou correctamente, na consideração que fez da situação da Apelante como correspondente a uma impossibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas. Resta, pois, confirmar tal entendimento, o que se fará subsequentemente à formulação da seguinte síntese conclusiva do percurso argumentativo seguido neste Acórdão:

I – Os “factos-índice” elencados no nº 1 do artigo 20º do CIRE constituem “exemplos-padrão” que, como tal, correspondem a situações prototípicas de insolvência.
II – A sua relevância, porém, depende da circunstância deles corresponderem, em concreto, ao “conceito-base” de insolvência constante do artigo 3º, nº 1 do CIRE: impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas.
III – Esta impossibilidade, enquanto pressuposto da situação de insolvência, não tem de se referir a todas as obrigações vencidas, bastando que se refira à generalidade das obrigações vencidas.
IV – A existência de um activo contabilisticamente superior ao passivo, enquanto elemento de exclusão da situação de insolvência, só releva se ilustrar uma situação de viabilidade económica, passando esta pela capacidade de gerar excedentes aptos a assegurar o cumprimento da generalidade das obrigações no momento do seu vencimento.
V – O novo paradigma da insolvência, assentando na primazia do interesse dos credores, e assumindo constituir “custo” destes a recuperação da insolvente, coloca nas mãos dos credores a opção entre a recuperação e a liquidação.

III – Decisão

3. Assim, na improcedência da apelação, decide-se confirmar a Sentença recorrida.

Custas em ambas as instâncias a cargo da massa insolvente (artigo 304º do CIRE).

Coimbra,
(J. A. Teles Pereira)
(Jacinto Meca)
(Falcão de Magalhães)