Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3770/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. COELHO DE MATOS
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
EXECUÇÃO DE BENS COMUNS DO CASAL
Data do Acordão: 01/27/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MARINHA GRANDE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CIVEL
Decisão: NÃO PROVIDO O AGRAVO; IMPROCEDENTE A APELAÇÃO
Legislação Nacional: ART. 825º, 1404º A 1408 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E ART. 616º E 818º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:
1. A impugnação pauliana abrange todos os bens transmitidos por doação, ainda que integrados em comunhão conjugal, no património do donatário, nos termos do artigo 616.º, n.º 1 do Código Civil.
2. Por isso o credor impugnante pode penhorar os bens doados, mesmo que um dos cônjuges não seja devedor.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. O A., com sede em Lisboa, propõe contra B., e mulher , C e D , solteira, menor e filha destes réus, acção de impugnação da doação de bens móveis que os réus B e mulher fizeram à ré sua filha D.
Alega o autor, em síntese, que correm termos, na comarca de Lisboa, duas execuções contra os primeiros réus, que têm por título executiva livranças com aval dado pelos executados. Que as livranças duma dessas execuções foram emitidas em Outubro e Dezembro de 1994 e venceram-se em Agosto de 1999 e que as livranças da outra execução foram emitidas em Maio de 1999 e venceram-se em Junho desse mesmo ano.
Em Maio de 1998 os dois primeiros réus fizeram escritura de doação de todo o recheio da sua residência à sua filha menor D, composto pelos móveis que vêm discriminados na petição inicial.
Entende o autor que a doação é impugnável, para permitir a execução desses bens, porque se trata de alienação gratuita, é posterior à assunção da primeira dívida e foi feita com intuito de pôr os bens a coberto da execução, relativamente à segunda dívida.

2. Os réus contestaram, opondo que as livranças não são subscritas pela ré C, pelo que a dívida é da exclusiva responsabilidade do réu marido (B); que os bens ainda não existiam no património aquando do primeiro aval e que não houve intenção de prejudicar o credor, relativamente ao segundo aval.
A acção prosseguiu os seus trâmites até que veio a ser proferida sentença que a julgou procedente e reconhece ao autor o direito à restituição dos bens doados à 3ª ré, pela escritura de 7 de Maio de 1998, lavrada no 1º Cartório Notarial de Leiria, para garantia do pagamento dos créditos titulados pelas livranças emitidas em Outubro e Dezembro de 1994 e o direito de executar os bens no património da 3ª ré.

3. Inconformados com o assim decidido, os réus apelam a esta Relação, defendendo que, por um lado, só a meação do devedor pode ser impugnada e não o património comum e, por outro, o pedido sempre teria de ser julgado improcedente quanto à ré C, por não ser devedora do autor. E aqui defendem que a decisão proferida dá ao credor um título de execução contra a ré não devedora.
Pelo meio há um agravo do saneador por não ter decidido absolver do pedido a ré C, precisamente por não ser devedora do autor.

4. O recorrido contra-alegou em defesa do julgado. Estão colhidos os vistos legais. Cumpre agora conhecer e decidir. Entretanto vejamos o que vem provado.
1) A autora é portadora de duas livranças subscritas por Fa... – Indústria de Moldes para Plásticos e Vidros, Lda, avalizadas pelo 1º réu, respectivamente dos valores de 14 325 877$00 e 634 227$00, emitidas em 14 de Dezembro de 1994 e 10 de Outubro de 1994, e ambas vencidas em 25 de Agosto de 1999, as quais se encontram juntas aos autos de execução ordinária que, sob o n.º 4580/99, correm seus termos pela 2ª secção da 11ª vara cível de Lisboa (A).
2) A autora é portadora de duas outras livranças subscritas por Fa... – Indústria de Moldes para Plásticos e Vidros, Lda, e avalizadas pelo 1º réu, dos valores, respectivamente, de 2 400 000$00 e 581 000$00, ambas emitidas em 7 de Maio de 1999 e vencidas em 30 de Junho de 1999, livranças essas que se encontram juntas aos autos de execução ordinária que, com o n.º 4581/99, correm seus termos pela 2ª secção da 11ª vara cível de Lisboa (B).
3) Por escritura de 7 de Maio de 1998, lavrada no 1º cartório Notarial de Leiria, os 1 e 2º réus fizeram a doação de todo o recheio da sua residência à 3ª ré, sua filha, composto pelos seguintes bens móveis:
i. Cozinha: uma mobília de cozinha completa, com frigorífico Bauknecht, uma placa com 4 bicos, um forno eléctrico Tecnogás, uma máquina de lavar louça Fidelis, uma máquina de café Gaggia, uma máquina de sumo Moulinex, uma picadora, uma torradeira, um exaustor e um cortinado de janela.
ii. Despensa: uma máquina de lavar roupa Bauknecht, uma máquina de secar Fidelis, uma arca frigorífica vertical Bauknecht, um móvel de despensa branco e um cortinado de janela.
iii. Sala de refeições: uma mesa redonda com 6 cadeiras, uma mesa oval pequena, um sofá de canto, um móvel de parede a parede em castanho, duas cadeiras de cabedal pequenas, um candeeiro de tecto, um candeeiro de aplique de parede, uma televisão, uma aparelhagem Sony com duas colunas, uma carpete rectangular, dois quadros e um cortinado de janela sacada.
iv. Quarto: uma cama de casal de ferro, um móvel estante com escrivaninha, duas mesas-de-cabeceira, três tapetes, um candeeiro de tecto, dois candeeiros de mesa-de-cabeceira, uma secretária, um computador com CD-rom, uma impressora, uma cadeira de escritório, uma cadeira de quarto e um cortinado de janela.
v. Outro quarto: uma cama de casal, duas mesas-de-cabeceira, uma cómoda, um espelho, um candeeiro de tecto, dois candeeiros de mesa-de-cabeceira, uma cadeira, três tapetes e um cortinado de janela.
vi. Outro quarto: uma cama de casal, duas mesas-de-cabeceira, uma cómodo, um espelho, um candeeiro de tecto, dois candeeiros de mesa-de-cabeceira, uma cadeira, três tapetes e um cortinado de janela.
vii. Corredor: uma sapateira, nove quadros, um móvel de prateleiras de corredor, uma mesa comprida de corredor, uma mesa de hall de entrada, uma coluna de vaso, um chaveiro e cinco apliques de parede de corredor.
viii. Sala de estar: quatro sofás individuais, duas mesas pequenas com tampos de vidro, duas credências com tampos de mármore, dois candeeiros de mesa pequenos, um tapete rectangular, uma carpete redonda, uma carpete rectangular, um móvel de bar com dois bancos, uma mesa redonda, quatro cadeiras, três quadros, uma vitrine de prateleiras de vidro, um candeeiro de pé e dois cortinados de parede.
ix. Cave: um móvel de cozinha com lava loiça, duas mesas quadradas, dois candeeiros, uma mesa rectangular, seis brancos corridos, um móvel cristaleira, catorze pratos de parede, trinta e três prateleiras decorativas, duas bicicletas de montanha, dois escadotes e uma escada de alumínio dupla (C).
4) A autora não conhece ao 1º réu e aos co-responsáveis pelo pagamento dos títulos referidos em A) e B) outros bens penhoráveis (D).
5) Com a doação dos bens referidos em C), o 1º réu pretendeu evitar que os bens doados pudessem ser penhorados para garantia do pagamento dos créditos referidos em A).

5. A questão que se coloca é a de saber se, não sendo a ré Cdevedora, pode manter-se a decisão que permite ao autor executar os bens doados, no património da donatária, uma vez que poderá, teoricamente e na prática, atingir bens que, se não tivessem sido doados, poderiam pertencer à doadora.
Diz a lei – artigo 616º, n.º 1 – que, julgada procedente a impugnação, o credor tem o direito à restituição dos bens na medida do seu interesse podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei.
Significa isto que a doação impugnada não é nula, uma vez que a nulidade obrigaria os bens doados a regressar ao património do doador e aí serem executados. O que acontece é que a doação é apenas ineficaz relativamente ao credor impugnante que pode executar os bens doados no património do donatário, para quem reverterá o que eventualmente sobrar do pagamento ao credor, dado que se mantém válida a doação ( cfr. Vaz Serra, RLJ, ANO 100.º, PAG. 206 e Antunes Varela, na mesma Revista, ano 91.º, pag, 349 e segs..).
A solução de fazer reverter os bens doados ao património do doador era a preconizada no antigo direito pelo artigo 1044º do Código de Seabra (1867). A lei actual afastou-se dessa solução, para permitir ao credor impugnante executar os bens no património do donatário, sem o concurso de outros credores não impugnantes (n.º 4 do citado artigo 616º).
Muito bem. Se não houvesse doação e os bens continuassem no património do casal, como bens comuns, o que ocorreria? Podiam ser penhorados bens concretos, contanto que o exequente, ao nomeá-los à penhora, pedisse a citação do cônjuge do executado, para requerer a separação de bens (artigo 825º, n.º 1 do Código de Processo Civil) em processo de inventário, nos termos dos artigos 1404º a 1408º.
Se o cônjuge não devedor usasse desta prerrogativa, no prazo previsto no n.º 2 do citado artigo 825º, a execução só continuaria nos bens que coubessem ao cônjuge devedor, podendo o credor nomear outros à penhora no caso de esses bens não terem cabido ao devedor. Mas se o cônjuge não devedor não usasse desta prerrogativa naquele apertado prazo, então a execução prosseguiria nos bens penhorados (ver o citado n.º 2).
Não há agora (com a redacção que o preceito recebeu do Dec. Lei n.º 329-A/95, de 12/12, aplicável ao caso em apreço) a moratória imposta pela antiga redacção. Recorde-se que, então, se dizia que “na execução movida contra um só dos cônjuges, a execução dos bens comuns fica suspensa, depois de penhorado o direito à meação do devedor, até ser exigível o cumprimento, nos termos da lei substantiva”, ou seja, depois de dissolvido, declarado nulo ou anulado o casamento ou depois de decretada a separação judicial de pessoas e bens ou a simples separação judicial de bens..
Agora não é assim, como se viu. Na execução contra um só dos cônjuges podem ser penhorados directamente bens concretos do património comum do casal. E não há dúvidas de que a alteração do regime foi ditada no interesse dos credores, no que concerne à defesa da garantia patrimonial dos seus créditos.
Ora, se é assim quando esses bens estão no património do casal, há-de ter-se por certo que nenhuma doação dos bens comuns do casal pode afectar a garantia patrimonial dos credores e que a impugnação da doação (impugnação pauliana), como instrumento interventivo no acto que retira os bens do património do devedor (e também do património comum do casal) para permitir a execução dos bens que, não fora a doação, lá estariam, tem de conceder ao credor impugnante as mesmas hipóteses de execução que tinha se não ocorresse a doação.
Ou seja, há-de ter-se por certo que o credor, após a doação, não pode dispor de menores possibilidades de utilizar a garantia do seu crédito. E se também lhe é permitido, neste singular caso, executar bens de terceiro, nos termos do artigo 818º do Código Civil, então, uma vez que a execução abrange todos os bens concretos e susceptíveis de penhora e não apenas o direito à meação do obrigado, como antes acontecia, só podemos concluir que a impugnação pauliana há-de abranger todos os bens transmitidos por doação, ainda que integrados em comunhão conjugal, no património do donatário, nos termos do artigo 616.º, n.º 1 do Código Civil. ( foi assim que se decidiu no acórdão do STJ, publicado na base de dados do ITIJ, em www.dgsi.pt, processo n.º 02 A4258 e na mesma base, no processo n.º 02B3424.)
Por conseguinte, o que os apelantes pretendem teria cabimento no antigo direito, segundo o qual, como vimos, o credor não podia executar directamente bens concretos do património comum do casal; e então bem se compreendia que não podia conseguir pela impugnação pauliana aquilo que o direito substantivo lhe não permitia.
A este propósito escreveu Meneses Cordeiro, na vigência do antigo direito, ( Cfr. Ver. Ord. Adv., ano 51, Julho de 1991, pag. 560.): “quando os requisitos da acção pauliana operem apenas em relação a um dos cônjuges, tratando-se de uma comunhão conjugal existente por parte dos devedores-alienantes, joga o esquema do artigo 1696º n.º 1 do Código Civil (na redacção então vigente – anterior ao Dec. Lei n.º 329-A/95, de 12/12): a pauliana não procede contra os bens comuns enquanto não for dissolvido, declarado nulo ou anulado o casamento ou enquanto não for decretada a separação judicial de bens; não pode haver pauliana por conta de cumprimentos que não possam ser exigidos; isso, naturalmente com ressalva do regime especificamente comercial”. Aqui está a explicação.
Podemos, então concluir, como já acima o fizemos, que a impugnação pauliana abrange todos os bens transmitidos por doação, ainda que integrados em comunhão conjugal, no património do donatário, nos termos do artigo 616.º, n.º 1 do Código Civil. Por isso o credor impugnante pode penhorar os bens doados, mesmo que um dos cônjuges não seja devedor.

6. Decisão
Por todo o exposto, acordam os juizes desta Relação em negar provimento ao agravo e em julgar improcedente a apelação, para confirmarem a sentença recorrida.
Custas a cargo dos apelantes.