Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
40/21.6T8TBU.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO CORREIA
Descritores: MASSA INSOLVENTE
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE ATIVA PARA PROCESSO DE INVENTÁRIO
Data do Acordão: 07/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TÁBUA DO TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1085.º, N.º 1, AL.ª A), DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E 81.º, N.º 4, DO CIRE
Sumário: O administrador da insolvência tem legitimidade para, em representação do herdeiro insolvente, instaurar processo de inventário com vista à partilha de herança em que este último é interessado.
Decisão Texto Integral:

Apelação n.º 40/21.6T8TBU.C1

Juízo de Competência Genérica de Tábua

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Acordam os juízes que integram este coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I-Relatório

A massa insolvente de AA (doravante a designar, em termos simplificados, por massa insolvente)

veio requerer a abertura de processo de inventário para partilha da herança aberta por óbito de BB, mãe da insolvente AA.

Após ter assegurado o contraditório, a Sra. Juiz, por despacho de ?????, cujo teor aqui se dá por reproduzido, julgou verificada a exceção dilatória da ilegitimidade ativa e, em consequência, indeferiu liminarmente o requerimento inicial apresentado.

Inconformada, a massa insolvente interpôs recurso, fazendo constar nas alegações apresentadas as conclusões que se passam a transcrever (retirados os sublinhados e acentuados a negrito):
A. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, que julgou verificada a exceção dilatória de ilegitimidade ativa da Requerente Massa Insolvente, uma vez que, salvo melhor entendimento em sentido contrário, a mesma não está a aplicar corretamente a Lei em vigor.
B. Para a Recorrente Massa Insolvente foi apreendido o quinhão hereditário que cabe à insolvente, na herança deixada por óbito de sua mãe, que havia falecido em .../.../2013.
C. Veio a Recorrente, e de harmonia com o disposto nos arts. 1099º do Cód. Proc. Civil, requerer a instauração do respetivo processo de inventário, para partilha da herança aberta por óbito da inventariada.
D. O princípio aferidor do conceito de legitimidade no âmbito do inventário tem consagração no artº 1085º, nº1, al. a) do Código de Processo Civil, que estipula que têm legitimidade: “Os interessados diretos na partilha e o cônjuge meeiro ou, no caso da alínea b) do artigo 1082.º, os interessados na elaboração da relação dos bens;”.
E. O ter ou não ter interesse direto na partilha é que comanda a legitimidade para requerer ou intervir no inventário e não a qualidade de herdeiro, sendo que o conceito de interessado direto é bastante mais abrangente do que o de herdeiro.
F. Faz errada interpretação da Lei o Tribunal a quo quando considera que não assiste legitimidade ativa à Massa Insolvente para requerer a partilha da herança, porquanto não adquiriu o estatuto de herdeira, nem se tornou interessada direta.
G. O processo de insolvência é um processo de execução universal, que tem como finalidade a satisfação de todos os credores de um devedor através da liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do respetivo produto pelos credores.
H. A massa insolvente é integrada por “todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo” – Art.46º do CIRE.
I. O quinhão hereditário tem determinada utilidade económica (em função dos bens, direitos e obrigações que compõem a herança) e é alienável (cfr. art. 2124º, C.C.) e partilhável (cfr. Art.2101º. do Código Civil).
J. O intuito da apreensão do quinhão hereditário para a Massa Insolvente é a sua liquidação e repartição do produto pelos credores do insolvente, em linha com a finalidade do próprio processo de insolvência. Esta liquidação tanto pode ocorrer por meioda venda do quinhão hereditário, como por meio da venda dos bens que vierem a preencher a sua quota, ou eventualmente, pelo recebimento de tornas.
K. Nessa medida, não pode deixar de ser reconhecido à massa insolvente um interesse direto e legitimo na partilha da herança.
L. A apreensão do quinhão hereditário, excluídos os poderes estritamente pessoais do herdeiro insolvente, transfere para a Massa Insolvente todos os seus direitos ou toda a sua posição relativamente ao bem, e entre estes está o direito de exigir a divisão nos termos do Art. 2101º do Código Civil.
M. Além disso, prescreve o artº 81º, nº 1, do CIRE, que a “declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência, e o n.º 4 estabelece que “O Administrador da Insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de caráter patrimonial que interessam à insolvência.
N. Deste normativo não resulta apenas a subtração dos poderes de disposição e administração dos bens ao Insolvente, com a consequente impossibilidade de ser Requerente do processo de inventário.
O. Resulta do espírito das normas que compõem o CIRE que a declaração de insolvência é de natureza patrimonial, que se reflete nos poderes de atuação do insolvente nesse domínio da esfera jurídica, e que os poderes de que o devedor fica privado são atribuídos ao administrador da insolvência.
P. Assim, não é de acolher a posição tomada quer pelo Tribunal a quo, no sentido de tolher ao herdeiro declarado insolvente, o direito de requerer o inventário para partilha do acervo hereditário, quer por si, quer enquanto massa insolvente, quer através do administrador de insolvência, constrangendo-o com a sua tese a permanecer na indivisão.
Q. Por conseguinte, e salvo melhor opinião em sentido contrário, verifica-se que o Tribunal a quo incorreu numa aplicação e interpretação errada da lei substantiva e da lei processual.
R. Afigura-se imperativo que à Massa Insolvente seja reconhecida legitimidade para intentar e fazer seguir processo de inventário tendo em vista a partilha e composição do quinhão hereditário apreendido.

       *

Não foi oferecida resposta.

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Dispensados os vistos, realizada conferência, e obtidos os votos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos.

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II-Objeto do recurso

Como é sabido, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, são as conclusões do recorrente que delimitam a esfera de atuação deste tribunal em sede do recurso (arts. 635, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC).

No caso, perante as conclusões apresentadas, a única questão a apreciar e decidir é a de saber se administrador da massa insolvente do herdeiro tem legitimidade ativa para requer processo de inventário por óbito do autor da herança.
                                                        *

III-Fundamentação

São os seguintes os pressupostos de facto que importa considerar:
a) AA foi declarada insolvente por sentença transitada em julgado a 22.06.2017.
b) A 20.04.2018, a respetiva massa insolvente procedeu à apreensão do quinhão hereditário da insolvente relativamente à herança deixada por BB, mãe da insolvente.
c) BB, mãe da insolvente, faleceu a .../.../2013.

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No seu art. 30.º o CPC fixou o conceito de legitimidade ativa, estatuindo, no que agora interessa, que o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar, sendo que o interesse em demandar se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação.

Como escreveu Antunes Varela (Manual de Processo Civil, 2ª ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, pág. 128 e 129), ser parte legítima na ação quer significar, “ter poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo ou a defesa contra ela oponível. A parte terá legitimidade como autor, se for ela quem juridicamente pode fazer valer a pretensão em face do demandado, admitindo que a pretensão exista”.

No âmbito do processo de inventário o legislador fixou regras especiais no tocante à aferição da legitimidade (distinguindo a legitimidade para requerer inventário da legitimidade para intervir em processo pendente), atribuindo legitimidade para requerer que se proceda a inventário e para nele intervir, como parte principal, em todos os atos e termos do processo, entre o demais, “aos interessados diretos na partilha”.

Com esta definição jurídica ampla o legislador quis conferir legitimidade não apenas aos herdeiros do inventariado (as pessoas que são chamadas a ocupar a posição jurídica do de cujus no que respeita ao conjunto das suas relações jurídicas), como a todos os que, sendo ou não herdeiros do de cujus, veem a sua esfera jurídica ser atingida, de forma imediata e necessária, pelo modo como se organiza e concretiza a partilha do acervo hereditário (neste sentido Miguel Teixeira de Sousa, Lopes et al., O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, p. 31).

Por outro lado, nos termos do art. 81.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, A declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência, acrescentando-se no n.º 4 do mesmo preceito que “O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência”.

A dúvida que se coloca - e que esgota na totalidade o objeto do presente recurso - é a de saber se, tendo um herdeiro sido declarado insolvente, o administrador da insolvência dispõe de legitimidade ativa para requerer inventário “em representação” do insolvente.

A jurisprudência, tem respondido de forma diferenciada, embora a maioria pareça inclinar-se no sentido de negar essa legitimidade.

Assim, alguma da jurisprudência lida considera que, “estando os bens que integram o património a partilhar em processo de inventário incluídos na massa falida, tem o respetivo administrador legitimidade, enquanto representante do interessado falido, para requerer processo de inventário” (cfr. os Ac. do T.R.P. de 15/4/2010, de 07.04.2022, proferido no processo 2374/21.0T8ENT.E1 e de 21.09.2006[2]).

Já a restante – e, que repetindo, se aparente maioritária – entende que “A massa insolvente do herdeiro para a qual foi apreendido o respetivo quinhão hereditário de uma determinada herança não tem legitimidade para requer inventário visando a partilha dessa herança” (cfr. Ac. T.R.C de 09.11.2021, proferido no processo 94/21.5T8OHP.C1, Ac. do T.R.L. de 24.09.2020, proferido no processo 31/20.4T8MTA.L1-2, Ac. do T.R.C. de 10.05.2022, proferido no processo 775/22.6T8LRA e Ac. do T.R.L de 28.05.2022, proferido no processo 5879/20.7T8ALM.L1-2).

Esta última jurisprudência assenta sobretudo na doutrina de Miguel Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pinheiro Torres (O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, p. 33), com o argumento que como os direitos da massa insolvente recaem sobre o quinhão hereditário, e não sobre o preenchimento desse quinhão com determinados bens, o administrador da insolvência não tem legitimidade para requerer o inventário da herança, tão só para neste processo ser requerido em substituição do interessado direto insolvente.

Contudo, salvaguardado o devido respeito, que é efetivamente muito, entende-se que, face ao disposto nos arts. 1085.º, n.º 1 a) do CPC e 81.º, n.º 4 do CIRE, o administrador da insolvência têm legitimidade para requerer inventário.

O art. 81.º, n.º 4 do CIRE atribuiu ao administrador da insolvência a representação do devedor[3] para todos os efeitos de caráter patrimonial que interessem à insolvência, sendo que, visando o inventário a partilha dos bens do autor da herança, essa definição apresenta um interesse patrimonial inequívoco para a insolvência.

A mera apreensão do quinhão hereditário (até pela indefinição do respetivo valor) não satisfaz necessariamente os interesses da massa, devendo ainda reconhecer-se o direito de ver concretizado em bens o quinhão hereditário, sob pena de a apreensão dos bens da insolvente não cumprir a sua finalidade que é a de contribuir para o benefício máximo dos credores e, consequentemente, da própria insolvente.

Após a apreensão, recai sobre o administrador da insolvência o encargo, os poderes e as funções de administrar todos os bens e direitos, sempre com o objetivo da respetiva frutificação e a sua urgente liquidação.

Ora essa concretização de bens pode ser exercido, requerendo e sendo admitido no processo de inventário, sob pena de os credores só poderem contar com um direito que pouco ou nada valerá, por falta de referências para uma justa avaliação e liquidação.

A intervenção do administrador apresenta-se, assim, como uma forma de liquidar património e de satisfazer os interesses económicos dos credores do insolvente e uma forma de pôr fim à indivisão de um património autónomo, tal como expressamente preveem os artigos 1085.º, n.º 1, alínea a), do C.P.C. e 81.º, n.ºs 1 e 4, do CIRE.

O Código Civil consagra no art. 2101.º, n.º 1 o direito potestativo de qualquer herdeiro a poder requerer a partilha dos bens, e encontrando-se o próprio, a partir do momento da declaração de insolvência, impedido de dispor do quinhão hereditário integrante da massa insolvente, esse direito apenas pode ser exercido através do seu representante, que é precisamente o administrador da insolvência.

Prova demais o argumento usado para excluir a legitimidade em agir assente no pressuposto de que os direitos da massa insolvente recaem sobre o quinhão hereditário e não sobre o preenchimento desse quinhão com determinados bens.

É que, sendo certo que tais direitos recaem sobre o quinhão hereditário, isso ocorre relativamente a todos os herdeiros e o administrador da herança não sendo herdeiro é o seu representante.

A circunstância de a apreensão incidir sobre o quinhão hereditário não exclui nem a possibilidade nem o interesse efetivo na concretização desse quinhão, não tendo o legislador negado ao administrador a possibilidade de, para benefício da massa, atuar em representação do devedor para esse efeito com conteúdo exclusivamente patrimonial.

Vedar ao insolvente o direito de requerer a partilha (o que a lei faz) e, ao mesmo tempo, cobrir sobre o manto da ilegitimidade ativa a ação do administrador nesse sentido, constituiria uma insuportável denegação de justiça, deixando o tempo da partilha exclusivamente na vontade dos demais interessados, com consequências prejudiciais óbvias para os credores e manietando o legítimo exercício dos poderes adjetivos e substantivos conferidos ao administrador da massa insolvente.

Depois, não cabe numa lógica de justiça efetiva o exercício teórico que concede ao administrador da insolvência a possibilidade de, em representação do insolvente, intervir, como parte principal, num processo de inventário pendente, e negar-lhe a possibilidade de ser ele a tomar a iniciativa processual (!).

Acrescenta-se ainda na tese que sustenta a ilegitimidade ativa do administrador para requerer o inventário que “não é essencial à satisfação dos credores da insolvência a concretização do quinhão hereditário do herdeiro insolvente em bens determinados através da partilha” e de serem diferentes os interesses da massa e os do herdeiro (cfr. citado acórdão do TRC de 09.11.2021).

Ora, com a devida vénia, tendo o processo de insolvência como finalidade a satisfação dos credores (feita através da liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores - art. 1.º, n.º 1 do CIRE), a concretização dos bens que integram a quota hereditária mostra-se, em geral, essencial para a satisfação dos credores, não competindo ao tribunal do inventário sindicar essa essencialidade, sendo que os únicos interesses que a lei quis proteger foram os credores e não já os pessoais do devedor/herdeiro.

Aferir a medida da quota da herança e a concretização dessa quota, só alcançáveis através do processo de inventário, traduzem-se, em si mesmos, em mecanismos próprios de defesa do património da massa e, consequentemente, deverem considerar-se dentro das competências atribuídas ao administrador em representação do insolvente.

    Do exposto se conclui que nem a letra da lei nem a sua ratio normativa negam legitimidade ao administrador da insolvência para, em representação do herdeiro, requerer inventário, antes a mesma resulta inequívoca face ao estatuído nos arts. 81.º, n.º 4 do CIRE e 1085.º, n.º 1, a) do Código Civil, o que determina a revogação da decisão recorrida.

                                                                    *

Sumário[4]:

(…). 

                                                                  *                                            

IV - DECISÃO.

Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se em julgar procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida, devendo, em consequência, ser determinado o prosseguimento do processo de inventário (se não existirem outros motivos que impliquem o indeferimento liminar).

                                                             *

Custas pelos apelados (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2 do CPC).

                                                                     *

Coimbra, 12 de julho de 2022


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(Paulo Correia)



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(Helena Melo)


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(José Avelino)

[1] Relator – Paulo Correia
Adjuntos – Helena Melo e José Avelino
[2] - Todos os acórdãos citados na presente decisão encontram-se disponíveis em www.dgsi.pt.
[3] - O administrador de insolvência, não é parte, mas o representante da parte (Castro Mendes, Direito Processual Civil vol II, pg.186), traduzindo-se a sua intervenção no suprimento da incapacidade de exercício da insolvente (Castro Mendes, Teoria Geral do Direito, vol I, 175) XII.
[4] - Da exclusiva responsabilidade do relator (art. 663.º, n.º 7 do CPC).