Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
81/23.9GTVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CÂNDIDA MARTINHO
Descritores: CONDUÇÃO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
REGISTO CRIMINAL
CANCELAMENTO
Data do Acordão: 01/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TONDELA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 10º, N.º 1, 11º DA LEI N.º 37/2015
Sumário: O cancelamento do registo de condenações penais imposto pelo decurso dos prazos previstos no artigo 11º da Lei n.º 37/2015 sobre a data da extinção das penas, sem que o arguido volte a delinquir, impõe que as mesmas deixem de produzir qualquer tipo de efeitos, designadamente quanto à medida da pena, quer esta seja principal, quer seja acessória.
Decisão Texto Integral:
Relatora: Cândida Martinho
1.ª Adjunta: Maria Fátima Calvo
2.ª Adjunta: Capitolina Rosa

Acordam em conferência os juízes da 4ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I.Relatório

 

1.

No processo sumário nº81/23.9GTVIS corre termos no Tribunal da Comarca de Viseu -  Juízo de Competência Genérica de Tondela – por sentença proferida em 14/6/2023, foi o arguido, ora recorrente,  AA, condenado na pena de 6 (seis) meses de prisão efetiva pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º1 do Código Penal e na proibição de conduzir veículos com motor por um período de 12 (doze) meses, nos termos do disposto no artigo 69.º/1, a) do Código Penal.

2.

Não se conformando com o decidido, veio o arguido interpor o presente recurso, extraindo da sua motivação, as seguintes conclusões (transcrição):

(…)

            3.

            O Exmo Procurador da República junto da primeira instância veio responder ao recurso, concluindo pela sua improcedência nos seguintes termos:

(…)

4.

Neste Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, considerando, em suma, que “(…)só o efectivo cumprimento duma nova pena privativa da liberdade poderá ser passível de contribuir para que o arguido tome finalmente consciência da necessidade de abandonar o excessivo consumo de álcool e, em geral, uma atitude auto-indulgente que o levou e poderá levá-lo a cometer de novo factos como aqueles pelos quais tem sido recorrentemente condenado, com consequências eventualmente muito mais gravosas para bens jurídicos alheios. Logo, deverá considerar-se não ter a sentença impugnada violado as normas mencionadas no recurso interposto, ou quaisquer outras, em sede de escolha e medida das penas aplicadas ao arguido – devendo por isso, segundo nos parece, ser tal decisão mantida na íntegra”

5.

Cumprido o artigo 417º, nº2, do C.P.P., o arguido não respondeu a esse parecer.

     

6.

Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art.419º, nº3, al. c), do diploma citado.

II. Fundamentação


A) Delimitação do Objeto do Recurso

Constituindo jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso afere-se nos termos do artigo 412º, nº1, do C.P.P, pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, onde deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido, sem prejuízo das matérias do conhecimento oficioso, no caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo arguido/recorrente, as questões a decidir são as seguintes:

 - Saber se a pena de prisão aplicada deve ser suspensa na sua execução ou, caso assim não se entenda, se as penas principal e acessória devem ser reduzidas, por exageradas e desproporcionadas, a primeira para uma pena de prisão entre 3(três) e 6(seis) meses, a cumprir em regime de permanência na habitação, mediante fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, mas com autorização para a realização da atividade profissional, e a segunda reduzida para um período não superior a 8 meses.

B) Sentença recorrida

(…)

3.1DOS FACTOS

FACTOS PROVADOS

Realizada a audiência de discussão e julgamento resultaram provados os seguintes factos:

1) No dia 25 de maio de 2023, pelas 18h00, o arguido conduzia com uma taxa de álcool no sangue de 1,37 g/l, o trator agrícola com a matrícula ..-..-QO, na Rua ..., ..., concelho ....

2) O arguido ingeriu bebidas alcoólicas antes de conduzir, sabendo que essa ingestão lhe reduzia a capacidade de reação, aumentando o risco de pôr em causa a vida e a integridade física alheias, não se coibiu de iniciar a condução nos termos atrás referidos.

3) Agiu em todas as circunstâncias descritas de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a descrita conduta era proibida e punida por lei como crime.

Mais se provou que,

4) O arguido é divorciado.

5) É pedreiro, auferindo em média cerca de mil euros por mês.

6) Vive na casa da ex-mulher, com esta e com a filha comum de 13 anos de idade.

7) Não tem encargos mensais, para além dos que são habituais a qualquer economia familiar.

8) É pessoa honesta, trabalhadora, respeitada e integrada socialmente.

9) Tem o 6.º ano de escolaridade.

10) Por sentença transitada em julgado em 31.02.2012, proferida no âmbito do processo n.º1/12...., cujos termos correram por este Juízo, foi o arguido condenado como autor de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º1 do Código Penal, na pena de 5 meses de prisão suspensa por um ano e na pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis pelo período de 9 meses, por factos praticados em 19.01.2012.

11) A pena de prisão foi declarada extinta por despacho de 24.10.2013 e a pena acessória por despacho de 09.12.2012.

12) Por sentença transitada em julgado em 02.05.2012, proferida no âmbito do processo n.º111/11...., cujos termos correram por este Juízo, foi o arguido condenado como autor de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º1 do Código Penal, na pena de 4 meses de prisão suspensa por um ano e na pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis pelo período de 9 meses, por factos praticados em 13.04.2013;

13) A pena de prisão foi declarada extinta por despacho de 28.10.2013 e a pena acessória por despacho de 10.09.2013.

14) Por sentença transitada em julgado em 08.07.2016, proferida no âmbito do processo n.º34/15...., cujos termos correram por este Juízo, foi o arguido condenado como autor de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º1 do Código Penal, na pena de prisão por dias livres, 30 períodos de prisão na pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis pelo período de 9 meses, por factos praticados em 22.02.2015;

15) A pena de prisão foi declarada extinta por despacho de 03.07.2016 e a pena acessória por despacho de 12.12.2016.

16) Por sentença transitada em julgado em 03.04.2017, proferida no âmbito do processo n.º83/16...., cujos termos correram por este Juízo, foi o arguido condenado como autor de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º1 do Código Penal, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 5€, por factos praticados em 29.04.2016.

17) A pena de multa foi declarada extinta por despacho de 27.06.2018.

18) Por sentença transitada em julgado em 24.01.2017, proferida no âmbito do processo n.º366/16...., cujos termos correram por este Juízo, foi o arguido condenado como autor de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º1 do Código Penal, na pena de cinco meses de prisão efetiva e na pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis pelo período de 12 meses, por factos praticados em 17.12.2016;

19) A pena de prisão foi declarada extinta por despacho de 18.05.2018 e a pena acessória por despacho de 26.09.2019.

20) Por sentença transitada em julgado em 24.05.2017, proferida no âmbito do processo n.º63/17.0GTVIS, cujos termos correram por este Juízo, foi o arguido condenado como autor de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º1 do Código Penal, na pena de 5 meses de prisão em regime de permanência na habitação com vigilância eletrónica e na pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis pelo período de 18 meses, por factos praticados em 07.05.2017.

21) A pena de prisão foi declarada extinta por despacho de 24.08.2018 e a pena acessória por despacho de 29.03.2021.

(…)

C)Apreciação do recurso

Nos presentes autos foi o arguido, ora recorrente, condenado como autor de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292º, nº 1 e 69º, nº1,a), ambos do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão efetiva e na proibição de conduzir veículos com motor por um período de 12 (doze) meses.

Com vista a pôr em causa as penas que lhe foram aplicadas, começa o recorrente por alegar que o tribunal não podia ter valorado, para o efeito da sua determinação e medida, as condenações já por si sofridas, quer porque as penas a que se reportam as quatro condenações que constam nos pontos 10º a 17º dos FACTOS PROVADOS já se encontram extintas há mais de cinco anos pelo respetivo cumprimento, quer porque no que tange às outras duas condenações a que e reportam os pontos  18º e 19º e 20º e 21º dos FACTOS PROVADOS, tais sentenças transitaram, respetivamente em 24.01.2017 e 24.05.2017, por factos praticados em 17.12.2016 e 07.05.2017, isto é, mais de seis anos da data dos factos dos presentes autos, e que ocorreram em 25.05.2023.

            Conclui, em suma, invocando o disposto no artigo 11º da Lei 37/2015, de 5 de maio, que os factos vertidos nos pontos 10 a 21 da factualidade provada deverão serem retirados ou tidos como não escritos para efeito da determinação da pena.

            Face a tal alegação, a sindicância das penas proferidas na sentença, envolve, desde já, a tomada de posição sobre a possibilidade de valoração dos antecedentes criminais do arguido, ora recorrente.

Comecemos então por aqui.   

Compulsada a sentença recorrida constata-se que o tribunal a quo, com base no CRC junto aos autos, deu como provados os seguintes antecedentes criminais do arguido, ora recorrente:

(…)

Vejamos então se tal ponderação podia ou não ter sido feita por parte do tribunal recorrido.

Ora, a Lei nº 37/2015 de 5 de maio (Lei da identificação criminal) estabelece o regime jurídico da identificação criminal e transpõe para a ordem jurídica interna a Decisão-Quadro 2009/315/JAI, do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, relativa à organização e ao conteúdo do intercâmbio de informações extraídas do registo criminal entre os Estados membros.

 “A identificação criminal tem por objeto a recolha, o tratamento e a conservação de extratos de decisões judiciais e dos demais elementos a elas respeitantes sujeitos a inscrição no registo criminal e no registo de contumazes, promovendo a identificação dos titulares dessa informação, a fim de permitir o conhecimento dos antecedentes criminais das pessoas condenadas e das decisões de contumácia vigentes” (art.2º da Lei citada).

Dispõe o preceituado no artigo 10º, nº 1, que “O certificado do registo criminal identifica a pessoa a quem se refere e certifica os antecedentes criminais vigentes no registo dessa pessoa, ou a sua ausência, de acordo com a finalidade a que se destina o certificado, a qual também é expressamente mencionada”.

A respeito do cancelamento definitivo, preceitua o art.11º, na parte que interessa, que:

1- As decisões inscritas cessam a sua vigência no registo criminal nos seguintes prazos:

(…) b) Decisões que tenham aplicado pena de multa principal a pessoa singular, com ressalva dos prazos de cancelamento previstos na Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no capítulo V do título I do livro II do Código Penal. Decorridos 5 anos sobre a extinção da pena e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza;

(…)

2- Quando a decisão tenha aplicado pena principal e pena acessória, os prazos previstos no número anterior contam-se a partir da extinção da pena de maior duração.

(…)

5 - A cessação da vigência das decisões não aproveita ao condenado quanto às perdas definitivas que lhe resultarem da condenação, não prejudica os direitos que desta advierem para o ofendido ou para terceiros nem sana, por si só, a nulidade dos atos praticados pelo condenado durante a incapacidade.

6 - As decisões cuja vigência haja cessado são mantidas em ficheiro informático próprio durante um período máximo de 3 anos, o qual apenas pode ser acedido pelos serviços de identificação criminal para efeito de reposição de registo indevidamente cancelado ou retirado, e findo aquele prazo máximo são canceladas de forma irrevogável.

À luz dos preceitos legais citados é forçoso concluir que foi intenção do legislador, por um lado, através da possibilidade do acesso ao Registo Criminal, permitir às autoridades judiciárias conhecer o passado criminal do arguido dele extraindo as legais consequências, nomeadamente em sede de escolha e concretização da medida da pena, mas por outro lado, ao consagrar o regime de cancelamento das inscrições registadas, facilitar a integração social do condenado, tendo em consideração que as penas visam também, e principalmente, a ressocialização do delinquente, como resulta claramente do disposto no artigo 40º nº 1 do Código Penal.

O cancelamento do registo de condenações penais imposto pelo decurso dos prazos previstos no artigo 11º sobre a data da extinção das penas, sem que o arguido volte a delinquir, impõe assim que as mesmas deixem de produzir qualquer tipo de efeitos, designadamente quanto à medida da pena, quer esta seja principal, quer seja acessória.

Tal como defende Almeida Costa, in “O Registo Criminal – História, Direito Comparado, Análise político-criminal do instituto”:

“(…) O cancelamento dos cadastros parece implicar uma proibição de prova quanto aos factos por ele abrangidos. A ser de outro modo, não se compreenderia o fundamento da sua consagração. Ao incidir sobre o mecanismo em que, por definição, assenta a informação dos tribunais, o legislador só pode ter querido significar que, doravante, as sentenças canceladas se consideram extintas no plano jurídico, não se lhes ligando quaisquer efeitos de tal natureza (v.g. quanto à medida da pena)”.

Como se fez constar no acórdão da Relação do Porto de 22 de setembro de 2021, proferido no âmbito do proc.96/21.1GMCN.P1, in dgsi.pt O cancelamento dos registos é uma imposição legal. Uma vez verificada a hipótese contemplada na previsão da norma que determina o cancelamento, o registo da condenação deixa de poder ser considerado (contra o arguido), assim sucedendo independentemente da circunstância de se ter ou não procedido prontamente à real efetivação do cancelamento”.

Procedendo à transcrição de uma passagem do parecer do Ministério Público emitido no processo 216/14.2GBODM.E1, fez-se constar no Ac. do Tribunal da Relação de Évora, de 10/5/2016, proferido nesse mesmo processo, o seguinte:

“Regulamentando a lei o cancelamento dos registos criminais e estabelecendo prazos peremptórios para tanto, em função da natureza e da medida das respectivas penas (cancelamento esse que, tal como assinalámos, na vigência da Lei 57/98, era automático), a possibilidade da sua valoração não pode estar dependente de qualquer aleatoriedade, relativamente à data do efectivo cancelamento, por parte de uma entidade de natureza administrativa que, porventura, por qualquer razão, não tenha procedido ao apagamento, no registo criminal, de decisões que, por imperativo legal, já se encontrassem canceladas. Por outras palavras, não será a data do efectivo cancelamento material que relevará mas, antes, a data em que, por força dos critérios legais pré-definidos, o cancelamento se verifica ou a sua vigência caduca.

A não se entender assim, validar-se-iam situações absolutamente discriminatórias, nos termos das quais poderiam ser tidos em conta registos que, em obediência à lei, já não deveriam constar do c.r.c., embora lá permanecessem, ao passo que, noutras situações, o agente do crime condenado, por força de um c.r.c. efectivamente actualizado, não seria, por isso, penalizado.

(…)”.

            Feitas estas considerações e volvendo-nos no caso vertente, não podemos deixar de concluir, à luz do citado artigo 11º, que não se verificam os respetivos critérios legais para que as condenações já sofridas pelo arguido se devessem ter por canceladas.

            Compulsada a factualidade supra enunciada, em conformidade com o CRC, verificamos que relativamente à última condenação averbada, sofrida pelo arguido em 24/5/2017 (no âmbito do processo 63/17.0GTVIS), pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, a pena principal de 5 meses de prisão, em regime de permanência na habitação, extinguiu-se em 24/8/2018 e a pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 18 meses, em 29/3/2021.

Daqui decorre que tendo a sentença recorrida sido proferida em 14/6/2023, a esta data ainda não tinham decorrido 5 (cinco) anos sobre a data de extinção de qualquer uma dessas penas, sendo certo que, de acordo com o disposto no citado artigo 11º,nº2, o referido prazo de 5 anos conta-se por referência à data da extinção da pena acessória, porquanto a de maior duração, prazo esse de cinco anos que apenas será atingido em 29/3/2026.

Por conseguinte, inexistindo fundamento legal para o cancelamento do registo das anteriores condenações, bem andou o tribunal recorrido em as ponderar para efeitos de determinação das penas, principal e acessória.

(…)


*

III. Dispositivo

         

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo recorrente/arguido AA, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a quatro unidades de conta (arts. 513º,nº1 do C.P.P. e 8º,nº9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).

(Texto elaborado pela relatora e revisto pelas signatárias – art.94º,nº2, do C.P.P.)