Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3964/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLIVEIRA MENDES
Descritores: INSTRUÇÃO CRIMINAL - REQUERIMENTO DO ASSISTENTE
PARA A ABERTURA DE INSTRUÇÃO
OMISSÃO DAS RAZÕES DE FACTO E DE DIREITO DE DISCORDÂNCIA RELATIVAMENTE À NÃO ACUSAÇÃO
Data do Acordão: 01/26/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CELORICO DA BEIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 118º, 123º, 283º E 287º, DO CPP
Sumário: A falta ou omissão no requerimento do assistente para abertura da instrução das razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação ou despacho de arquivamento constitui mera irregularidade que não afecta o valor do acto praticado, pelo que quando não arguida tempestivamente se deve ter por sanada
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra.
Após a realização de inquérito no âmbito do processo n.º 85/02, dos serviços do Ministério Público na comarca de Celorico da Beira, que correu termos contra os arguidos A..., B..., C..., D... e E..., todos devidamente identificados, foi proferido despacho de arquivamento, na sequência do que o assistente F..., com os sinais dos autos, requereu a abertura de instrução.
Tal requerimento veio a ser rejeitado pelo Mm.º Juiz de Instrução, com fundamento na inadmissibilidade legal da instrução, por não conter, ainda que em súmula, as razões de facto e de direito de discordância com a não acusação do Ministério Público, e por ser omisso relativamente à realização de qualquer acto de instrução.
É desta decisão que vem interposto recurso pelo assistente, em cuja motivação se conclui:
1. A lei – artigo 287º – não obriga a que o assistente tenha que arrolar prova nova para em instrução ver alterado o despacho de arquivamento e ou de acusação.
2. Pelo contrário, especifica, “diz”, que tal deverá acontecer – indicar actos de instrução ou meios de prova – sempre que disso for caso.
3. Violou, pois, o Tribunal “a quo” o disposto no artigo 287º, n.º 2, do CPP.
4. É doutrina única que nem citamos.
5. É jurisprudência única o poder, após a abertura da instrução, o Juiz decidir não pronunciar ou pronunciar.
Com tais fundamentos, no provimento do recurso, pretende o assistente a revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que marque o debate instrutório.
O recurso foi admitido.
Na contra-motivação apresentada o Digno Magistrado do Ministério Público pugna pela improcedência do recurso, com o fundamento de que o requerimento para a abertura da instrução não respeita as exigências essenciais de conteúdo impostas pelo artigo 287º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Igual posição assume o Exm.º Procurador-Geral Adjunto no douto parecer que emitiu.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Única questão submetida à nossa apreciação e julgamento é a de saber se o requerimento para abertura da instrução pode e deve ser rejeitado no caso de não conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação, e de ser omisso relativamente à indicação de actos de instrução.
Decidindo, dir-se-á.
De acordo com o preceito do artigo 287º, n.º 2, do Código de Processo Penal ( - Serão deste diploma legal todos os demais preceitos a citar sem menção de referência.) o requerimento para abertura da instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns de outros, se espera provar.
Por outro lado, sendo a instrução requerida pelo assistente, como no caso vertente se verifica, certo é que ao respectivo requerimento, por força da parte final da norma em causa, é ainda aplicável o disposto no artigo 283º, n.º 2, alíneas b) e c), o que significa que terá de conter, sob pena de nulidade:
- narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
- a indicação das disposições legais aplicáveis.
Daqui resulta que enquanto a falta das exigências previstas na 2ª parte do artigo 287º, faz incorrer o requerimento para abertura da instrução em nulidade (artigos 287º, n.º 2 segunda parte, 283º, n.º 3, alíneas b) e c) e 118º, n.º1), a omissão das exigências previstas na 1ª parte do artigo 287º, faz incorrer aquele requerimento em mera irregularidade (artigo 118º, n.ºs 1 e 2) ( - Com efeito, inexistindo preceito a cominar com a sanção da nulidade as omissões em causa, certo é que as mesmas constituem mera irregularidade.).
Por outro lado, ainda, o requerimento para abertura da instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução (artigo 287º, n.º 3).
Da exposição feita, podemos e devemos retirar as seguintes ilações relativamente ao requerimento para abertura da instrução apresentado por assistente:
- É rejeitado quando extemporâneo, o juiz for incompetente ou a instrução legalmente inadmissível;
- É nulo quando não contenha narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e indicação das disposições legais aplicáveis;
- É meramente irregular quando não contenha, pelo menos em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação.
No caso vertente o juiz é competente, a instrução é legalmente admissível e o requerimento para a sua abertura foi tempestivamente apresentado e contém descrição dos factos que fundamentam a aplicação aos arguidos de uma pena bem como indicação das disposições legais aplicáveis.
No entanto, o assistente naquele requerimento não verteu as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação ( - Certo é que o assistente se limitou a consignar, a este propósito, o seguinte:
«1. O assistente vem deduzir instrução, porquanto dos autos já se verifica prova suficiente para levar os arguidos a julgamento.
2. Os indícios devem ser suficientes para com probabilidade levar à condenação os arguidos e não com certeza do mesmo.
3. A factualidade participada e depois investigada é pois suficiente para obter pronúncia.
4. Sem quaisquer novas provas.
5. O Ministério Público decidiu-se pelo arquivamento dos autos – o que se respeita – mas se discorda».).
Nesta conformidade, certo é que o requerimento em causa não pode ser rejeitado e não enferma de nulidade, sendo meramente irregular.
As irregularidades do processo só determinam a invalidade do acto a que se referem e dos termos subsequentes que possam afectar quando tiverem sido arguidas pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado, sem embargo de o tribunal poder ordenar oficiosamente a sua reparação no momento em que delas tomar conhecimento, quando as mesmas puderem afectar o valor do acto praticado (artigo 123º, n.ºs 1 e 2).
No caso dos autos os interessados não arguíram a irregularidade do requerimento para abertura da instrução.
Por outro lado, a irregularidade cometida não afecta o valor do acto praticado, posto que a omissão das razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação não impedem que o requerimento para abertura da instrução produza os efeitos a que se destina, qual seja o de comprovação judicial da decisão de arquivamento do inquérito ( - Segundo Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 72, há que distinguir entre a validade do acto e o seu valor, sendo que o acto será válido se a irregularidade não for declarada, mas pode não ter valor, designadamente por não poder produzir os efeitos a que se destinava.).
Com efeito, a omissão em causa não impede o tribunal a quo de reexaminar a matéria de facto e a matéria de direito, tendo em vista apurar se, em face de ambas, é de manter a decisão de arquivamento do processo proferida pelo Ministério Público ou, ao invés, é de pronunciar os arguidos como entende e expressamente indica (através da acusação que deduziu no requerimento para abertura da instrução e da indicação das disposições legais aplicáveis – fls.367/369) o assistente ( - Tenha-se em consideração que, conforme preceito do artigo 288º, n.º 4, o juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução, tendo em conta a indicação, constante do requerimento da abertura da instrução, a que se refere a parte final do n.º 2 do artigo 287º, para o que pode e deve determinar a realização dos actos que entender necessários – artigo 289º, n.º1.).
Ademais, o princípio da verdade como fim do processo, traduzido e consubstanciado na descoberta da verdade e na realização da justiça, princípio perante o qual quaisquer outras categorias intraprocessuais vêm a revelar-se meros “meios” de o realizar, impõe que assim se interprete e entenda a lei, única forma de alcançar a realização do direito, com o fim superior de justiça, valor supremo em qualquer Estado de direito democrático ( - Aliás, seria de todo intolerável que a ocorrência de uma mera irregularidade pudesse bloquear irremediavelmente o procedimento, o que seria incompreensível aos olhos de toda a comunidade.).
Deste modo, encontrando-se sanada a irregularidade do requerimento para abertura da instrução, deve aquele ser admitido e, consequentemente, a instrução declarada aberta.
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Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que admita o requerimento do assistente para abertura da instrução e declare esta aberta.
Sem tributação.
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