Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
286/10.2GCTND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: CRIME DE RESISTÊNCIA E COACÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO
ELEMENTOS CONSTITUTIVOS
Data do Acordão: 10/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE TONDELA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 347º CP
Sumário: 1.- São elementos constitutivos do crime de resistência e coacção sobre funcionário:
tipo objectivo:
- Que o agente se oponha a que a autoridade pública exerça as suas funções;
- Usando para tanto, de violência;
tipo subjectivo:
- O dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto, em qualquer uma das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal.
2.- A acção violenta tanto pode ser física, absoluta ou relativa, como psíquica e pode ser exercida quer sobre pessoas quer sobre coisas.
3.- A relevância da violência para efeitos de preenchimento do tipo terá que ser sempre analisada em concreto, tendo em conta as efectivas capacidades e preparação do funcionário ofendido.
Decisão Texto Integral:

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I. RELATÓRIO


No processo nº 286/10.2GCTND que corre termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Tondela, em que é arguido AA..., findo o inquérito o Digno Magistrado do Ministério Público deduziu acusação em processo comum com intervenção do tribunal singular, imputando-lhe a prática de um crime resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo art. 347º, nº 1, do C. Penal, com referência ao art. 386º, nº 1, c), do mesmo código.

Remetidos os autos à distribuição, a Mma. Juíza proferiu despacho rejeitando a acusação por a considerar manifestamente infundada.
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Inconformado com a decisão, dela recorre o Digno Magistrado do Ministério Público, formulando no termo da respectiva motivação as seguintes conclusões:
“ (…).
I - O Ministério Público deduziu acusação pública contra o arguido AA..., porquanto, durante a fase de inquérito recolheu indícios suficientes de o arguido ter cometido, em autoria material e na forma consumada, a prática do crime de resistência e coacção de funcionário, previsto e punido pelo artigo 347º, nº 1, do Código Penal com referência ao artigo 386º, nº 1, alínea c), do mesmo diploma legal.
II - No entender do Ministério Público, encontram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de resistência e coacção sobre funcionário.
III - A acusação foi rejeitada por manifestamente infundada, por inexistência de crime, uma vez que a mesma é omissa relativamente aos actos praticados com violência e que a conduta do arguido, de retirar os documentos da mão da solicitadora de execução não poderia ter como efeito obstar à realização de um acto que já se mostrava executado.
IV - Salvo o devido respeito, o Ministério Público discorda de tais fundamentos uma vez que consta da acusação que "… o arguido de forma súbita, introduziu o braço no interior do veículo, através do vidro da porta do lado direito que se encontrava parcialmente aberto e forçou o braço direito daquela, retirando-lhe os documentos ...", tal conduta é suficientemente esclarecedora da forma violenta como o arguido retirou os documentos da mão da solicitadora de execução.
V - Por outro lado, entendemos que com a subtracção do auto de penhora efectuada pelo arguido, ficou condicionado o prosseguimento da penhora de bens e os autos de execução por divida, e, consequentemente, a venda dos mesmos, uma vez que os objectos nem sequer se encontram relacionados.
VI - A actuação do arguido tinha como finalidade obstar à realização da penhora de bens, destruindo o auto de penhora, o que acabou por acontecer, bem como, impedir que a solicitadora de execução praticasse acto relativo ao exercício das suas funções e por causa delas.
VII - Pelo que, concluímos que a factualidade descrita na acusação preenche os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de resistência e coacção sobre funcionário, uma vez que sempre se verificou violência no acto do arguido de retirar o auto de penhora da mão da solicitadora de execução e que o mesmo tinha como finalidade obstar à prática de um acto, ou seja, a concretização da penhora de bens, no âmbito do processo de execução por divida, o que conseguiu.
VIII - Sendo certo que, tem sido o entendimento da Jurisprudência vigente, nomeadamente, do Tribunal da Relação de Coimbra, que só e apenas quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la.
IX - E os factos não constituem crime quando, entre outras situações, se verifica uma qualquer causa de extinção do procedimento ou se a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora do crime imputado, o que não é o caso.
X - Sublinhe-se que este juízo tem que assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada.
XI - A Mma. Juiz ao rejeitar a acusação por manifestamente infundada, por inexistência de crime, violou o disposto nos artigos 347º, nº 1, do Código Penal e artigos 283º, 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea d), todos do Código de Processo Penal.
XII - Assim sendo e em conformidade, a decisão em causa deve ser substituída por outra que não rejeitando a acusação, por inadmissibilidade legal, designe data para a realização da audiência de julgamento.
Vªs. Exªs. farão a costumada JUSTIÇA.
(…)”.
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O arguido não respondeu ao recurso mas em requerimento que apresentou, além do mais, afirmou não corresponder à verdade a alegada destruição do auto de penhora que consta da motivação do Ministério Público.
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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer aderindo aos fundamentos da motivação do Ministério Público, e concluiu pela procedência do recurso.

Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO


Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. Por isso é unanimemente entendido que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 335, Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, 103, e Acs. do STJ de 24/03/1999, CJ, S, VII, I, 247 e de 17/09/1997, CJ, S, V, III, 173).
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo Digno Magistrado do Ministério Público na motivação, a única questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se a acusação por si deduzida contra o arguido é, ou não, manifestamente infundada.
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Para responder a esta questão importa ter presente o teor do despacho recorrido, que é o seguinte:
“ (…).
Autuação na forma correcta como processo comum com intervenção do Tribunal Singular.
O Tribunal é competente.
O Ministério Público tem legitimidade para o exercício da acção penal.
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Questão prévia:
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público deduziu acusação, que consta de fls. 38 a 41 dos autos, contra o arguido AA..., imputando-lhe a prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punível pelo artigo 347º, nº 1 do Código Penal com referência ao artigo 386º, nº 1, alínea c) do mesmo diploma legal.
A acusação deduzida articula a seguinte factualidade:
"No âmbito do processo de execução nº 756/06.7TBTND, que corre termos no 2º Juízo deste Tribunal Judicial de Tondela, foi determinada a penhora dos bens que se encontrassem na residência dos executados BB... e ora arguido AA..., sita na Rua … .
No dia 16 de Junho de 2010, pelas 14h30m, no exercício das suas funções, a solicitadora de execução CC..., juntamente com o representante da exequente "Banco W..., S.A.", dirigiram-se à referida residência do arguido, para realizarem a referida penhora de bens.
Na referida residência foram atendidos pela mulher do arguido e também executada naquele processo de execução, que acabou por assinar os documentos e auto de penhora.
Quando a solicitadora de execução e o representante da referida exequente faziam a viagem de regresso, foram abordados pelo arguido que fez com que parassem o veículo onde seguiam.
Acto continuo, o arguido dirigiu-se à solicitadora de execução que seguia como passageira no referido veículo e perguntou-lhe se tinha sido ela que tinha estado na sua residência a proceder à penhora de bens e se a sua mulher tinha assinado algum papel.
Perante tal pergunta, a solicitadora de execução começou a folhear os documentos que possuía para mostrar ao arguido os papeis que tinham sido assinados pela esposa e foi nesse momento que o arguido, de forma súbita, introduziu o braço no interior do veículo, através do vidro da porta do lado direito que se encontrava parcialmente aberto e forçou o braço direito daquela, retirando-lhe os documentos.
Ao aperceberem-se do sucedido, de imediato a solicitadora de execução e o representante da exequente saíram do veículo e pediram ao arguido para proceder à entrega dos documentos, o que o arguido não fez, tendo entrado no veículo e colocou-o em marcha, abandonando o local.
O arguido ao retirar os documentos da mão da solicitadora de execução, sabendo que os mesmos correspondiam aos documentos assinados pela sua mulher e que correspondiam ao auto de penhora dos objectos que possuía na sua residência, pretendia dessa forma obstar à penhora dos mesmos e exercício das funções da solicitadora de execução
O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente empregando a força física para retirar das mãos da solicitadora de execução os documentos e auto de penhora de bens, por forma, a obstar a que aquela praticasse acto relativo ao exercício das suas funções e por causa delas.
Mais sabia o arguido que a solicitadora de execução actuava no exercício das suas funções, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei Penal.".
Refere o artigo 347°, n o 1 do Código Penal que:
"Quem empregar violência ou ameaça grave contra funcionário, ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique acto relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos deveres, será punido com pena de prisão até 5 anos."
O artigo 347° incluído no capítulo referente aos crimes contra a autoridade pública, visa tutelar o interesse do Estado no desempenho livre das funções que impendem sobre os servidores públicos no sentido de que sejam respeitadas as suas atribuições e actos legítimos.
Como referem Leal Henriques e Simas Santos, in Código Penal Anotado, Vol. 2, pág. 1083, "por violência eleve entender-se todo o acto de força ou hostilidade que seja idóneo a coagir o funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas, ou de segurança", e "há ameaça grave sempre que a acção afecte a segurança e tranquilidade da pessoa a quem se dirige e seja suficientemente séria para produzir o resultado pretendido".
O meio de execução do crime é pois a violência ou ameaça grave, compreendendo também a coacção moral, sendo a gravidade moral aferida pela seriedade com que é feita e pela potencialidade para produzir o efeito querido.
Por outro lado e no que diz respeito ao elemento subjectivo, exige-se o dolo do agente que consiste na vontade livre e consciente de empregar violência ou ameaça grave para efeitos de obter do funcionário a acção ou omissão pretendida.
Ora, da acusação deduzida não constam factos consubstanciadores do crime de resistência e coacção imputado ao arguido, nomeadamente no que toca ao seu elemento objectivo, não se encontrando na referida acusação suporte fáctico bastante integrador de que os actos foram praticados com violência ou ameaça de mal importante, sendo a acusação completamente omissa nessa parte.
Na verdade, da factualidade descrita na acusação resulta, desde logo, que o arguido quando abordou a solicitadora de execução já esta tinha logrado concretizar a penhora, pelo que, a conduta do arguido de retirar os documentos, não poderia ter como efeito obstar à realização de um acto que já se mostrava executado.
Assim terá de concluir-se que os factos que constam da acusação, não constituem o crime de resistência e coação que ali é imputado ao arguido, faltando desde logo o elemento objectivo de tal tipo de ilícito.
Acresce que, sempre diremos que a referida factualidade não integra qualquer outro tipo de crime.

Ora, estatui o art.º 311.º, do CPP que: "1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; (…)
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.
No caso em apreço, e como supra se referiu os factos que constam da acusação, referentes ao crime de resistência e coacção, por não se referirem a qualquer acto de violência ou ameaça de mal importante, nem visarem obstar à prática de qualquer acto (uma vez que o acto em causa - penhora - já se mostrava efectivada) não constituem crime de resistência e coacção que aí é imputado ao arguido, nem qualquer outro tipo de crime, motivo pelo qual e em face do disposto no artigo 311º, nº 2, al. a) e nº 3, al. d do C.P.P., a acusação é, manifestamente infundada e como tal terá que ser rejeitada.
Pelo exposto, ao abrigo do disposto nos artigos 311º, nºs 2, al. a) e 3, al. d) do Código de Processo Penal rejeita-se a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido melhor identificado nos autos, por ser manifestamente infundada.
Notifique e após trânsito remeta os autos aos serviços do Ministério Público.
(…)”.
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1. A Constituição da República Portuguesa consagra, no seu art. 32º, nº 5, a estrutura acusatória do processo penal. Tal significa, no essencial, que neste ramo do direito adjectivo se estabelece uma completa distinção entre a entidade que investiga o crime e deduz a respectiva acusação, sendo disso caso, e a entidade que, com publicidade e observância do contraditório, o vai julgar.
Em regra, compete ao Ministério Público a promoção do processo penal (art. 48º do C. Processo Penal), bem como a direcção do respectivo inquérito (art. 263º, nº 1 do mesmo código). Findo este, o Ministério Público expressa processualmente a vontade de submeter o arguido a julgamento através da dedução da acusação.
E é pela acusação que se fixam o objecto e os limites do processo (art. 339º, nº 4, do C. Processo Penal), devendo a mesma conter, além do mais, e sob pena de nulidade, a identificação do arguido, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao mesmo de uma pena ou de uma medida de segurança, a indicação dos meios de prova (art. 283º, nº 3 do mesmo código).

Em consonância com a supra referida estrutura acusatória do processo penal, o art. 311º do C. Processo Penal apenas confere ao juiz do julgamento poderes de sindicância da acusação, através da sua rejeição, quando a mesma enferme dos vícios estruturais previstos nas quatro alíneas do seu nº 3 a saber: a) quando a acusação não contenha a identificação do arguido, b) quando não contenha a narração dos factos, c) quando não indique as disposições legais aplicáveis nem as provas que a fundamentam e, d) quando os factos narrados não constituírem crime.
E como se pode ler no despacho recorrido, o fundamento da rejeição da acusação é precisamente o previsto nesta alínea d) ou seja, a ausência de tipicidade dos factos imputados ao arguido.
Vejamos então se tal ocorre.

2. Integrado no capítulo dos crimes contra a autoridade pública, o crime de resistência e coacção sobre funcionário tutela a autonomia intencional do Estado – enquanto bem jurídico meio que visa a estabilidade e regularidade das relações sociais – face a agressões de elementos que lhe são alheios (cfr. Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, págs. 337 e seguintes).
São elementos constitutivos do respectivo tipo (art. 347º, nº 1 do C. Penal):
[tipo objectivo]
- Que o agente se oponha a que a autoridade pública exerça as suas funções;
- Usando para tanto, de violência;
[tipo subjectivo]
- O dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto, em qualquer uma das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal.

Estamos perante um crime de execução vinculada, na medida em que a realização da acção típica tem que ser efectuada através do emprego de violência.
Esta, enquanto meio de cometimento do crime, tanto pode ser a violência física, absoluta ou relativa, como a violência psíquica. E se é normalmente exercida sobre pessoas, é também admissível que seja exercida sobre coisas.
Em qualquer caso, a relevância da violência para efeitos de preenchimento do tipo terá que ser sempre analisada em concreto, tendo em conta as efectivas capacidades e preparação do funcionário ofendido. Com efeito, a intensidade da conduta violenta, para efeitos de preenchimento do tipo, poderá variar, em função, designadamente, de ser, ou não ser, o funcionário ofendido, membro de força policial ou membro de força militarizada.
Posto isto.

3. Entendeu a Mma. Juíza a quo que da acusação não constam factos demonstrativos de ter o arguido actuado com violência ou com ameaça de mal importante, por dela não resultar que, quando aquele abordou a ofendida, já esta tinha concretizado a penhora, não podendo pois a retirada dos documentos obstar à realização do referido acto processual.
Ressalvado sempre o devido respeito por opinião diversa, cremos que aqui se misturaram dois momentos que deveriam ter permanecido separados. Com efeito, uma coisa é ter o arguido actuado, ou não, com violência. Outra, completamente distinta, é tal actuação, ainda que violenta, ser irrelevante para o preenchimento do tipo designadamente, porque já não existia possibilidade de o arguido, através do emprego da violência, se opor a que a ofendida praticasse acto relativo ao exercício das suas funções.
Detenhamo-nos sobre cada um destes dois aspectos.

3.1. No que respeita ao conceito de violência, lê-se na acusação que a ofendida «começou a folhear os documentos que possuía para mostrar ao arguido os papéis que tinham sido assinados pela esposa e foi nesse momento que o arguido, de forma súbita, introduziu o braço no interior do veículo, através do vidro da porta do lado direito que se encontrava parcialmente aberto e forçou o braço direito daquela, retirando-lhe os documentos.». Mais adiante lê-se «O arguido ao retirar os documentos da mão da solicitadora de execução (…)» e «o arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente empregando a força física para retirar das mãos da solicitadora de execução os documentos e auto de penhora de bens (…)».
Reconhecendo-se embora que a narrativa da acusação, para além de uma excessiva brevidade, não é um exemplo de clareza, certo é que da mesma resulta, sem grande esforço interpretativo, que a ofendida, solicitadora de execução, tinha nas mãos diversos documentos, entre eles um auto de penhora, que o arguido lhe retirou, tendo para tanto forçado o braço direito daquela. Forçar significa, obrigar pela força, violentar, constranger, obter por meio de força pelo que, forçar o braço de alguém significa usar da força física para contrariar um movimento desse mesmo braço. Por outro lado, a ofendida não é um agente da autoridade – membro de força policial ou de força militarizada – mas um mero agente civil, portanto, sem qualquer especial treino ou capacidade para lidar com uma tal acção.

Logo, acusação, se bem que não modelar quanto a este aspecto, contém um substrato factual mínimo que, a provar-se – e sem prejuízo de melhor concretização na fase de julgamento – preencherá o conceito de violência integrador do tipo do crime imputado ao arguido.

3.2. No que concerne à afirmação feita no despacho recorrido de que a conduta do arguido não visou obstar à prática de qualquer acto, uma vez que a penhora já se encontrava efectivada, cremos que foi assumida uma perspectiva demasiado formal dos factos narrados, face à já referida pouca clareza dos mesmos. Explicando.

Diz-se na acusação que o arguido, ao actuar como actuou, pretendia obstar à penhora dos bens existentes na sua habitação, bem como obstar a que a ofendida, enquanto solicitadora de execução, praticasse acto relativo ao exercício das suas funções e por causa delas.
A penhora é, como se sabe, uma apreensão judicial de bens. A penhora de bens móveis realiza-se com a efectiva apreensão dos bens (art. 848º, nº 1 do C. Processo Civil), e dela é lavrado um auto em que o agente de execução regista a hora da diligência, relaciona os bens por verbas numeradas e indica, quando possível, o valor aproximado de cada verba (art. 849º, nº 1 do C. Processo Civil).
De acordo com a acusação, a ofendida solicitadora de execução procedeu à penhora dos bens que compunham o recheio da residência do arguido e seu cônjuge, tendo este assinado o respectivo auto. E quando, depois de sair da residência, já no seu automóvel e em movimento, a ofendida efectuava a viagem de regresso, o arguido a interceptou e fez parar a viatura após o que, nas circunstâncias já referidas, lhe retirou o auto de penhora.
Assim, se é evidente que quando o arguido se apodera do auto de penhora já esta se encontrava formalmente realizada, não é menos verdade que a ofendida, desapossada que foi do auto de penhora, jamais poderia comprovar na execução nº 756/06.7TBTND, como lhe é imposto pelas suas funções, a realização de tal acto processual. Esta impossibilidade de evidenciar na acção executiva a realização da penhora tem como consequência necessária, a nível processual, a consideração de que o acto não foi realizado.
Não custa pois aceitar que o fim visado pelo arguido fosse o de impedir a demonstração da efectivação da penhora na acção executiva e portanto, impedir que, processualmente, a mesma se tivesse por realizada, relativamente ao recheio da sua habitação.

Nesta exacta medida, entende-se que, nos termos da acusação, o arguido agiu para se opor a que a ofendida praticasse acto relativo ao exercício das suas funções de solicitadora de execução.

4. Em conclusão, constando da acusação o substrato factual minimamente demonstrativo de uma conduta violenta do arguido para se opor a que a ofendida, solicitadora de execução, praticasse acto relativo ao exercício das suas funções, deve o despacho recorrido ser substituído por outro que, não considerando a acusação manifestamente infundada, designe dia, hora e local para a realização da audiência de julgamento pelo imputado crime, nos termos previstos no art. 312º, nº 1 do C. Processo Penal, se a existência de outras circunstâncias a tal não obstar.
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III. DECISÃO


Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso.
Em consequência, revogam o despacho recorrido e determinam a sua substituição por outro que, não existindo outras circunstâncias que tal impeçam, dê seguimento aos ulteriores termos do processo.

Sem tributação.
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Coimbra, 12 de Setembro de 2011


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(Heitor Vasques Osório)

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(Jorge Dias)
São elementos constitutivos do crime de resistência e coacção sobre funcionário:
tipo objectivo:
- Que o agente se oponha a que a autoridade pública exerça as suas funções;
- Usando para tanto, de violência;
tipo subjectivo:
- O dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto, em qualquer uma das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal.
A acção violenta tanto pode ser física, absoluta ou relativa, como psíquica. E se é normalmente exercida sobre pessoas, é também admissível que seja exercida sobre coisas.
A relevância da violência para efeitos de preenchimento do tipo terá que ser sempre analisada em concreto, tendo em conta as efectivas capacidades e preparação do funcionário ofendido.