Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1201/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. HELDER ROQUE
Descritores: HERANÇA
DOAÇÃO
COLAÇÃO
RELAÇÃO DE BENS
Data do Acordão: 05/11/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TORRES NOVAS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE AGRAVO
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGO 1213, N.º 3; 2104, N.º 1; 2105.º; 2106.º E 2114.º, N.º 2 E 3 DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário:

1. Tendo o “de cujus” declarado, aquando da doação, que a mesma era feita, por conta da legítima, quis significar que a doação não envolveu qualquer liberalidade, sendo o donatário obrigado a conferir tudo aquilo com que foi contemplado, procedendo-se, em seguida, à partilha da herança, com vista a atingir a completa igualação dos co-herdeiros envolvidos.
2. As doações manuais são aquelas que, tratando-se de doação verbal, o doador efectua, discretamente, mediante a pura tradição ou entrega da coisa doada, tendo a ver com a natureza móvel da mesma.
3. Não havendo acordo de todos os interessados em que a colação seja em substância, e tendo o bem em causa sido vendido a outrem pelo donatário, a mesma realiza-se, através da imputação do seu valor na quota hereditária daquele, sem implicar o regresso do bem ao património hereditário, devendo o donatário restituir apenas o seu valor, à massa da herança, de acordo com o valor que o mesmo teria, na data da abertura da sucessão, se não tivesse sido alienado.
4. Não obstante o bem doado estar sujeito a colação em valor, deverá ser objecto de relacionação separada, exclusivamente, com vista à eventual redução por inoficiosidade ou à mera igualação da partilha.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


AA, interessado nos autos de inventário por óbito de CC, em que foi requerente BB, também, cabeça de casal, todos, suficientemente, identificados, interpôs recurso de agravo da decisão que indeferiu a reclamação que apresentou, quanto à exclusão da verba nº 5 da relação de bens, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª - O nº 3 do artigo 2113º do Código Civil estabelece uma presunção de dispensa da colação para as doações feitas com tradição da coisa.
2ª - O caso sub judice deverá ser decidido à luz deste preceito legal, com dispensa de colação, devendo apenas o bem ser integrado na relação de bens para se proceder ao cálculo da legítima, nos termos do artigo 2162º do Código Civil.
3ª - O imóvel da verba nº 5 está registado, com inscrição em vigor, a favor de DD, que não é interessado neste inventário.
4ª - Como não existe qualquer registo de uma inscrição em vigor a favor dos interessados no presente inventário não se poderá declarar que o bem em causa terá que ser integrado na relação de bens para efeito de partilhas no presente inventário.
Nas suas contra-alegações, o cabeça de casal defende que deve ser negado provimento ao recurso.
O Exº Juiz sustentou a decisão censurada, entendendo que não causou agravo ao recorrente.
Com interesse relevante para a apreciação do mérito do agravo, importa reter a seguinte factualidade:
1 – O cabeça de casal incluiu na relação de bens que apresentou, como “Bem Doado”, ao herdeiro AA e sua mulher, VV, a verba nº 5, formada por “prédio rústico, sito em Casal Faria, composto de cultura arvense e oliveiras, com a área de 2200 m2, a confrontar do Norte e Sul com EE, a Nascente com DD e a Poente com regueira, inscrito no cadastro sob o artigo 123 da secção A da freguesia de Brogueira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Novas sob o nº 1136-Brogueira, com o valor patrimonial de € 178,07” – Documento de folhas 13 a 20.
2 – Por escritura lavrada, no Cartório Notarial de Torres Novas, em 20 de Agosto de 1971, a inventariada CC, no estado civil de viúva, declarou doar ao agravante AA e a sua mulher, VV, por conta da legítima dos donatários, uma quinta parte indivisa de um prédio rústico que se compõe de terra de semeadura, com oliveiras, figueiras, vinha e um poço de água nativa, no sítio do Casal Faria, freguesia da Brogueira, concelho de Torres Novas, a confrontar do Norte e Nascente com estrada, Sul e Poente com vala, inscrito na matriz predial rústica, sob o artigo trezentos e quarenta e oito, com o valor matricial de cinco mil seiscentos e setenta e dois escudos, fracção essa que se encontra já, especialmente descrita, na Conservatória do Registo Predial – Documento de folhas 13 a 20.
3 - AA é filho da inventariada CC e de AA – Documento de folhas 13 a 20.
4 – O agravante, beneficiário da doação referida no nº 2, vendeu o prédio, a que se reportam os nºs 1 e 2, a DD, a favor de quem se encontra inscrito o registo da aquisição, com o nº G-2 – Documento de folhas 1 e seguintes.

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Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
A única questão a decidir, no presente agravo, em função da qual se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil (CPC), consiste em saber se ocorre a situação de presunção legal de dispensa da colação, em relação ao bem doado ao agravante.

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DA COLAÇÃO

A colação consiste numa operação de restituição que, para igualação da partilha, os descendentes que pretendam entrar na sucessão do seu ascendente têm de fazer à massa da herança, em relação aos bens ou valores que lhes foram doados por este, em conformidade com o disposto pelo artigo 2104º, nº 1, do Código Civil (CC).
Tendo como fundamento a vontade presumida do «de cujus» que, ao fazer a doação a um dos seus descendentes, não o terá querido avantajar, mas antes antecipar a sua quota hereditária Pereira Coelho, Direito das Sucessões, 4ª edição, 1970, 250., a colação pressupõe a verificação, necessária e cumulativa, de determinados requisitos, como sejam, a existência de uma doação em vida, realizada pelo autor da sucessão a um seu descendente, que este seja presuntivo herdeiro legitimário daquele, à data da doação, o concurso do donatário à herança do doador e, finalmente, que a doação não se encontre dispensada da colação, seja por vontade do doador, seja «ex vi legis», atento o preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 2104º, 2105º, 2106º, 2113º, nºs 1, 2 e 3, e 2114º, nº 2, todos do CC Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, VI, 1998, 172 a 177 e 188 a 190; Pereira Coelho, Direito das Sucessões, 4ª edição, 1970, 251; Capelo de Sousa, Direito das Sucessões, II, 2002, 174 e ss..
Na hipótese em apreço, o «de cujus» declarou, aquando da doação, que a mesma era feita, por conta da legítima, com o que pretendeu afastar o regime supletivo estipulado pelo artigo 2108º, nº 2, do CC, ou seja, o regime da não redução das doações, salvo o caso de inoficiosidade, se não houver na herança bens suficientes para igualar todos os herdeiros, significando antes que a doação não envolveu qualquer liberalidade, sendo o donatário obrigado a conferir tudo aquilo com que foi contemplado, procedendo-se, em seguida, à partilha da herança, com vista a atingir a completa igualação dos co-herdeiros envolvidos Jorge Leite, A Colação, 1977, 22 e 23..
Revertendo à situação factual dos autos, entende o agravante que se verifica a situação de dispensa da colação, atento o teor do artigo 2113º, nº 3, do CC, ao preceituar que esta se presume sempre dispensada, nas doações manuais e nas doações remuneratórias.
Não tendo o doador dispensado a colação, no acto de doação, ou, posteriormente, como ficou demonstrado, aquela pode ainda ser dispensada, por lei, o que se presume, nas doações manuais e nas doações remuneratórias, às quais preside, em princípio, uma filosofia de avantajamento do herdeiro beneficiado, face aos demais.
De facto, nas doações manuais ou doações de mão em mão, que são aquelas que, tratando-se de doação verbal, o doador efectua, discretamente, mediante a pura tradição ou entrega da coisa doada, e nas doações remuneratórias, a que alude o artigo 941º, do CC, a especial finalidade a que obedecem não se compadece com o propósito de forçar o donatário a imputar, na sua quota hereditária, o valor do donativo que recebeu Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, VI, 1998, 189; e Noções Fundamentais de Direito Civil, I, 6ª edição, revista e ampliada, 1965, 523. .
Porém, a doação em apreço não configura uma doação manual, porquanto esta tem a ver com a natureza móvel, e não imóvel, da coisa doada, atento o teor das disposições combinadas dos artigos 945º, nº 2 e 947º, nºs 1 e 2, do CC Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 4ª edição, revista e actualizada, 1997, 247; Vassanta Tambá, Doação Verbal de Móveis, A Tradição, 1970, 17 e ss..
Assim sendo, a controvertida doação não se acha dispensada da colação e, consequentemente, porque se verificam todos os pressupostos de que depende a sua obrigatoriedade, terá de ser realizada.
Porém, a conferência efectua-se, nos termos do estipulado pelo artigo 2108º, nº 1, do CC, “pela imputação do valor da doação...na quota hereditária, ou pela restituição dos próprios bens doados, se houver acordo de todos os herdeiros”.
Na primeira hipótese, a da conferência por imputação ou da colação em valor, que se trata de uma mera operação de cálculo, de uma simples imputação do valor da doação na quota do herdeiro donatário, a restituição é, puramente, fictícia, porquanto o donatário conserva, no seu património, os bens doados ou, em todo o caso, não se verifica um regresso efectivo desses bens, à massa hereditária Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, VI, 1998, 179; Pereira Coelho, Direito das Sucessões, 4ª edição, 1970, 252; Capelo de Sousa, Direito das Sucessões, II, 2002, 213 a 217. .
Na segunda hipótese, a da colação em substância ou colação real, que só acontece quando haja acordo de todos os herdeiros, a mesma opera-se, mediante a restituição dos próprios bens doados, em conformidade com o disposto pelo artigo 2108º, nº 1, do CC, que regressam ao património hereditário, onde se procede à partilha, como se dele nunca tivessem saído.
Ora, não havendo acordo de todos os interessados em que se realize a colação em substância, a mesma efectua-se, através da imputação do valor do bem doado na quota hereditária do donatário, hipótese em que o herdeiro conserva a propriedade do referido bem, devendo restituir apenas o seu valor, à massa da herança, e não o bem em si, propriamente dito.
Considerando, porém, que o agravante vendeu a outrem o bem doado, o respectivo valor, para efeitos de colação, será aquele que o mesmo teria, na data da abertura da sucessão, se não tivesse sido alienado, nos termos do preceituado pelo artigo 2109º, nºs 1 e 2, do CC.
Assim sendo, o bem doado está sujeito a colação em valor que, sem implicar o seu regresso ao património hereditário, atendendo à falta de acordo entre os interessados, determina a imputação do seu valor, na quota hereditária do donatário, para efeitos de conferência, de acordo com o valor que o mesmo teria, na data da abertura da sucessão, se não tivesse sido alienado, como foi.
Porém, não obstante o bem doado estar sujeito a colação em valor, deverá ser objecto de relacionação?
A regra geral que resulta da noção de sucessão, constante do artigo 2024º, do CC, é a de que todos os bens pertencentes à herança, e só esses, devem ser relacionados, e daí que o não deveriam ser, em princípio, os bens doados em vida pelo «de cujus», porquanto, à data do seu óbito, já não se encontravam na respectiva titularidade, não sendo, portanto, objecto de sucessão «mortis causa».
Porém, porque importa preservar a observância das quotas disponíveis e a igualação da partilha, como já se expôs, o herdeiro que pretenda entrar na sucessão do seu ascendente está obrigado à colação.
Por isso, surge a necessidade de, no processo de inventário, organizar, igualmente, uma relação de bens doados, sendo caso disso, que, não fazendo parte da herança, são, apesar de tudo, relacionados, exclusivamente, com vista à eventual redução por inoficiosidade ou à mera igualação da partilha, aplicando-se, para o efeito, na falta de disposição específica quanto aos bens doados, as regras próprias da relação de bens da herança.
Importa, pois, mas com base em fundamentação diversa da invocada, dar provimento ao agravo.

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CONCLUSÕES:

I – Tendo o «de cujus» declarado, aquando da doação, que a mesma era feita, por conta da legítima, quis significar que a doação não envolveu qualquer liberalidade, sendo o donatário obrigado a conferir tudo aquilo com que foi contemplado, procedendo-se, em seguida, à partilha da herança, com vista a atingir a completa igualação dos co-herdeiros envolvidos.
II – As doações manuais são aquelas que, tratando-se de doação verbal, o doador efectua, discretamente, mediante a pura tradição ou entrega da coisa doada, tendo a ver com a natureza móvel da mesma.
III – Não havendo acordo de todos os interessados em que a colação seja em substância, e tendo o bem em causa sido vendido a outrem pelo donatário, a mesma realiza-se, através da imputação do seu valor na quota hereditária daquele, sem implicar o regresso do bem ao património hereditário, devendo o donatário restituir apenas o seu valor, à massa da herança, de acordo com o valor que o mesmo teria, na data da abertura da sucessão, se não tivesse sido alienado.
IV - Não obstante o bem doado estar sujeito a colação em valor, deverá ser objecto de relacionação separada, exclusivamente, com vista à eventual redução por inoficiosidade ou à mera igualação da partilha.

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DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar provido, em parte, o agravo e, em consequência, com base em fundamentação diversa, revogam, correspondentemente, a douta decisão recorrida, de modo a que, apesar de o bem doado estar sujeito a colação, a mesma seja feita, por imputação do seu valor, à data da abertura da sucessão, como se o mesmo não tivesse sido alienado, com a sua inclusão na relação de bens.

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Custas pelo agravante e pelo agravado, na proporção de metade.

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Notifique.