Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1069/11.8TBTNV-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: SUSTENTO MINIMAMENTE DIGNO
INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 12/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TORRES NOVAS 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 239.º N.º 3 B) E I) DO CIRE
Sumário: Para um casal, ambos declarados insolventes, com dívidas que atingem os € 63 184,53, em que o marido sofre de perturbação esquizoafectiva e que, por isso, encontra-se sempre sedado, apático e abúlico e já com atrofia muscular, pensando e movimentando-se lentamente e com enorme dificuldade, estando totalmente dependente de terceiros, nomeadamente para vestir-se ou alimentar-se, sendo a mulher quem cuida dele, que tem como único rendimento mensal uma pensão de € 893,87, que paga € 375,00 pela renda da casa onde vive e que tem uma filha com 20 anos que é estudante universitária, o "sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar", a que se refere o artigo 239.º n.º 3 b) i) CIRE, passa por poderem dispor mensalmente de € 651,00.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

No processo de insolvência, que corre termos na comarca de Torres Novas, em que foram declarados insolventes A... e mulher B... , na assembleia de credores o Sr. Administrador da Insolvência pronunciou-se o sentido de ser deferido o pedido de exoneração do passivo restante dos insolventes, tendo alguns credores tomado posição quanto a essa questão.

Seguidamente a Meritíssima Juíza a quo proferiu despacho em que, nomeadamente, decidiu:

"Em face de todo o exposto, e ao abrigo do preceituado nos artigos 236.º e 238.º à contrario sensu do C.I.R.E" defiro liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e, em consequência, determino que durante os 5 (cinco) anos posteriores, ao encerramento da insolvência, o rendimento disponível dos insolventes, que estes venham a auferir, se considera cedido ao Exm.º Sr. Administrador de Insolvência, C... , que, desde já, se nomeia como fiduciário.

Relativamente ao rendimento disponível, afigura-se que, de acordo com os rendimentos auferidos pelos insolventes e com os critérios já apontados (que revelam que o mínimo de sobrevivência dos devedores sempre será assegurado, quer pelo início de uma nova actividade remunerada, quer pelo apoio Estatal), o valor mínimo anual a entregar ao fiduciário ora nomeado se deve cifrar, pelo menos, em € 4.906.44 (quatro mil novecentos e seis euros e quarenta e quatro cêntimos), pelo que considera o Tribunal que se deve excluir desse rendimento o valor equivalente a um salário mínimo nacional.

Durante o período de cessão os insolventes ficarão sujeitos aos demais deveres do disposto no artigo 239.º, n.º 4, do C.I.R.E.".

Inconformados, em parte, com tal decisão, dela os insolventes interpuseram recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

1.ª Como se anunciou os insolventes restringem o presente recurso à parte da Decisão contida na acta de Assembleia de Credores (ref.ª 1958598) que fixou o seu rendimento disponível a entregar ao fiduciário no valor mínimo anual de € 4 906,44.

2.ª Os Insolventes constituem um agregado familiar integrado por eles e filha de 20 anos, estudante universitária, cujo rendimento mensal do agregado é exclusivamente o da reforma por invalidez do insolvente de € 893,87 e sofrendo este de perturbação esquizoafectiva e bipolaridade cujo tratamento o mantêm sempre sedado, apático e abúlico, pensando e movimentando-se lentamente, com enormes dificuldades, necessitando da ajuda constante da mulher, já que não consegue vestir-se, nem alimentar-se sózinho.

3.ª O casal insolvente reside numa casa arrendada cuja renda mensal é de € 375,00, ou seja, não beneficia de renda de contrato antigo.

4.ª Face à douta decisão recorrida os insolventes que têm um rendimento anual de € 12 514,18 devendo entregar no mínimo ao fiduciário € 4 906,44 só ficarão a dispor, mensalmente, da quantia de € 633,98.

5.ª Eles sabem que têm de passar enormes sacrifícios, mas só poderão viver com tal quantia, até porque têm o dever de amparar a filha, passando a viver sem dignidade.

6.ª O salário mínimo nacional conte em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador (Ac. TC 96/2004, de 11/02/2004, DR II Série de 01/04/2004).

7.ª Os insolventes são um casal e o seu agregado familiar conta ainda com a filha estudante universitária de 20 anos.

8.ª Afigura-se-nos que a atribuição aos insolventes, cujo agregado familiar é também formado pela filha maior estudante universitária, da quantia mensal de € 633,98 para viverem, viola o principio da dignidade humana contido no principio do Estado de Direito e que resulta das disposições conjugadas do art.º 1.º e da al. a) do n.º 1 do art.º 59.º (Ac. referido do TC).

9.ª Será constitucionalmente aceitável o sacrifício do direito do credor, se o mesmo for necessário e adequado à garantia do direito à existência do devedor com o mínimo de dignidade (Ac. referido do TC).

10.ª Com o maior respeito, afigura-se-nos que a Decisão recorrida subvaloriza a necessidade de proteger a dignidade da pessoa humana, tendo, violado o disposto na al. b) i) do n.º 3 do art.º 239.º do C.I.R.E..

11.ª Os insolventes precisam para sobreviver com o mínimo de dignidade, atendendo ao seu agregado familiar e ao custo de vida actual, de dispor, pelo menos, de € 800,00/mês, ou seja, de € 9 600,00.

12.ª O valor mínimo do rendimento disponível a entregar pelos insolventes ao fiduciário deve ser, no mínimo, de € 2 914,18.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Face ao disposto nos artigos 684.º n.º 3 e 685.º-A n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil, as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir consiste em saber se, nos termos do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[1], é adequado impor aos insolventes a obrigação de "durante os 5 (cinco) anos posteriores, ao encerramento da insolvência" entregarem anualmente ao fiduciário a quantia de "pelo menos, em € 4.906.44".


II

1.º


Para a decisão da questão em apreço, tendo presente o relatório apresentado pelo Sr. Administrador da Insolvência, cujo conteúdo não mereceu qualquer contestação na assembleia de credores por parte destes, há que considerar os seguintes factos:

a) Os insolventes casaram, um com o outro, no regime de comunhão de adquiridos, a 24-3-1990

b) O insolvente nasceu a 1-2-1955, tem formação académica na área de sistemas informáticos, sofre de uma doença psiquiátrica (perturbações esquizoafectiva e bipolariedade), motivo pelo qual se encontra reformado por invalidez, desde Abril de 2009.

c) O insolvente, em virtude dos seus problemas de saúde, encontra-se sempre sedado, apático e abúlico e já com atrofia muscular, pensando e movimentando-se lentamente e com enorme dificuldade, estando totalmente dependente de terceiros, nomeadamente para vestir-se ou alimentar-se.

d) O insolvente já tentou o suicídio

e) O insolvente é pensionista da Caixa Nacional de Pensões, auferindo uma pensão mensal de € 893,87.

f) A insolvente nasceu a 24-3-1960 e desde que casou nunca teve qualquer actividade remunerada, ocupando-se das lides domésticas e nos últimos anos dedica-se a cuidar do marido, que com o agravamento da doença necessita de apoio.

g) Os insolventes vivem num andar, arrendado, pelo qual pagam a renda mensal de € 375,00.

h) Os insolventes têm uma filha de 20 anos, que se encontra a estudar na Faculdade de Ciências Farmacêuticas do Porto.

i) Não foram identificados bens registados em nome dos insolventes, susceptíveis de apreensão a favor da massa insolvente.

j) O Sr. Administrador da Insolvência não procedeu à apreensão do recheio da casa por entender que esses bens são absolutamente impenhoráveis nos termos dos artigos 46.º n.º 2 e 822.º do Código do Processo Civil.

l) Não existe, até à data, qualquer acção pendente contra os insolventes, nos termos e para os efeitos da alínea b) do nº 1 do artigo 24º.

m) Os insolventes, sempre que solicitados, disponibilizaram-se a colaborar fornecendo todas as informações que lhes foram pedidas.

n) Os insolventes efectuaram inúmeras tentativas junto de alguns credores no sentido de renegociar os seus créditos de forma a os ajustar à sua actual situação financeira.

o) Os insolventes não beneficiaram da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência, nem foram condenados por alguns dos crimes previstos nos artigos 227.º e 229.º do Código Penal.

p) Na relação de créditos provisória figuram dívidas dos insolventes no valor total de € 63 184,53.


2.º

Os insolventes atacam (parcialmente) a decisão recorrida, em que se deferiu o seu pedido de exoneração do passivo restante, sustentando que o montante anual de € 4 906.44, cuja entrega que lhes foi imposta, é muito elevado face às suas necessidades, defendendo que ele deve ser reduzido para € 2 914,18[2].

O artigo 239.º dispõe nos seus n.os 2 e 3 que:

2 - O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.

3 - Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:

a) Dos créditos a que se refere o artigo 115º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;

b) Do que seja razoavelmente necessário para:

i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;

ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;

iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.

Resulta claro deste n.º 3 b) i) que para o insolvente tem que ser reservado um montante que possa ser tido como correspondendo ao necessário para um "sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar".

"Na definição da amplitude do “rendimento disponível”, é certo e seguro que, fosse qual fosse a técnica legislativa utilizada, sempre teria que ficar de fora (do “rendimento disponível” a ceder) uma parte do rendimento do devedor/insolvente; parte essa suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a sua existência.

Cumprindo tal inevitabilidade, o legislador enunciou, a nosso ver, em termos de limite mínimo da exclusão, o critério “do que seja razoavelmente necessário para um sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”; logo acrescentado, em termos de limite máximo, que não deve exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, 3 vezes o salário mínimo nacional.

É esta a “leitura” que fazemos do preceito em causa; ou seja, o legislador não adoptou um mero critério objectivo na determinação do que deve entender-se por sustento minimamente digno.

Tendo em conta a unidade do sistema jurídico, não estamos autorizados a afirmar que o legislador, quando, ano após ano, fixa o montante do salário mínimo nacional, considera e avalia o montante que para tal efeito fixa como 1/3 do montante necessário a um sustento minimamente digno. Por outro lado, “sustento minimamente digno” não se confunde com mínimo de sobrevivência, uma vez que também no ordenamento jurídico existe, “abaixo” do salário mínimo, como critério orientador de tal limite mínimo de sobrevivência, o rendimento social de inserção[3].

Enfim, encurtando razões, a exclusão imposta pelo art. 239.º, n.º 3, b), i) pode ser do montante do salário mínimo nacional."[4]

Mas, no caso dos autos há que ter presente que são dois, e não um, os insolventes, que têm como único rendimento mensal a pensão do insolvente de € 893,87 e que, em virtude da sua situação clínica, é previsível que este não possa, mesmo que quisesse, arranjar trabalho e que a insolvente, por causa do apoio que tem que dar ao marido, também está praticamente impossibilitada de ter um emprego de onde pudesse obter uma receita. Por outro lado, eles têm um encargo mensal com a renda da casa que habitam de € 375,00 e a situação clínica do insolvente é, necessariamente, também geradora de despesas que não são insignificantes.

A Meritíssima Juíza a quo, não obstante não o diga expressamente, terá considerado na sua decisão que os insolventes tinham um rendimento anual de € 10 726,44 (€ 893,87[5] x 12) e que lhes devia ser reservado anualmente o correspondente a 12 vezes o salário mínimo nacional, ou seja € 5 820,00 (€ 485,00 x 12), pelo que abatendo este montante àquele sobram os € 4 906.44[6] que se fixaram como valor a entregar anualmente[7]. Portanto, os insolventes, face ao decidido, terão mensalmente acesso ao correspondente a um salário mínimo nacional.

Ora, quando estes defendem que a quantia a pagar anualmente deve ser somente de € 2 914,18[8], estão a dizer que, na sua perspectiva, o "sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar" passa por poderem dispor mensalmente de € 651,00, isto se mantivermos como referência o rendimento total anual de € 10 726,44 (€ 893,87 x 12), que é o que está subjacente à decisão do tribunal a quo. Isso na prática significa que os insolventes, em relação ao decidido, reclamam a possibilidade de poderem ter por mês mais € 166,00.

Quando falamos de um casal, em que um dos seus membros sofre de perturbação esquizoafectiva[9], que tem como rendimento mensal € 893,87 e que paga € 375,00 pela renda da casa onde vive, é difícil conciliar uma redução desse rendimento com o conceito de "sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar".

Mas, se a situação dos insolventes está no limiar do dramático, não é menos verdade que eles não podem ser desresponsabilizados do seu comportamento que os conduziu a terem dívidas que atingem os € 63 184,53. Nem tão pouco podemos desconsiderar os legítimos interesses dos credores, pese embora quanto a estes fique por perceber se os créditos que concederam foram precedidos de uma avaliação minimamente rigorosa que lhes permitisse concluir que aqueles tinham, efectivamente, capacidade económica para solver os compromissos que iam assumindo.

Ponderando tudo quanto se deixa dito, e tendo em vista que há que assegurar aos insolventes um "sustento minimamente digno", mostra-se adequado que eles possam dispor mensalmente de € 651,00, o mesmo é dizer que ficam obrigados a entregar anualmente ao fiduciário € 2 914,18.


III

Com fundamento no atrás exposto julga-se procedente o recurso, pelo que se revoga a decisão recorrida (somente) na parte em que impôs aos insolventes a entrega anual ao fiduciário de pelo menos € 4.906.44, fixando-se em € 2 914,18 o montante que aqueles devem pelo menos entregar a este.

Sem custas.


                                                           António Beça Pereira (Relator)

                                                               Nunes Ribeiro

                                                              Hélder Almeida


[1] São do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas todos os artigos adiante citados sem qualquer outra menção.
[2] Cfr. conclusão 12.ª.

[3] Criado pela Lei n.º 13/2003, de 21 de Maio, e que consiste numa prestação que visa conferir apoios para a satisfação das necessidades essenciais.
[4] Ac. Rel. Coimbra de 11-10-2011 no Proc. 131/11.1T2AVR-D, que, tanto quanto é do nosso conhecimento, não se encontra publicado.
[5] Valor da pensão que o insolvente recebe.
[6] Na sentença recorrida a Meritíssima Juíza a quo não explica, de forma tão clara quanto era desejável, as premissas que lhe permitiram chegar a este valor.
[7] Importa realçar que ninguém colocou em causa estes pressupostos; nem na assembleia de credores, nem posteriormente a ela, nomeadamente já neste recurso, em sede contra-alegações.
[8] Cfr. conclusão 12.ª.
[9] O transtorno esquizoafetivo é uma doença de grave comprometimento cerebral, onde o paciente apresenta tanto a esquizofrenia como o distúrbio bipolar ao mesmo tempo ou alternado.