Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
206/02.8TAACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RIBEIRO MARTINS
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 05/26/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALCOBAÇA – 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS18º2 E 13º1 DA CR 105º E 107º DO RGIT
Sumário: 1-A criminalização da não entrega dolosa daquilo que se recebeu a título não translativo da propriedade, mesmo sem a prova da inversão do título de posse, não corresponde a qualquer medida discriminatória, desnecessária ou excessiva susceptível de constituir a violação do art.º 18º,2 da Constituição da República Portuguesa.
2- Não são inconstitucionais os art.ºs 105º e 107 do RGIT face ao que se estatui nos art.ºs 13/1 e 18/2 da Constituição da República Portuguesa.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na Secção Criminal da Relação de Coimbra:
I
1- No processo comum n.º 206/02 do 2º juízo da comarca de Alcobaça foram condenados «S… –L.da», J... e C... pela prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social p. e p. pelo art.º 107º do RGIT –, a primeira na pena de 450 dias de multa à taxa diária de €15, o segundo e o terceiro nas penas de 200 e 300 dias de multa à taxa diária de €5,50.
Também foram condenados no pagamento do devido à Segurança Social.
2- Os arguidos recorrem concluindo –
1) A sentença aplicou os art.ºs 105º e 107º do RGIT para condenar a cada um dos recorrentes na prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.
2) Essa norma é inconstitucional por violar os princípios constitucionais estabelecidos nos art.ºs 18/2 e 13/1 da Constituição da República Portuguesa.
3) Efectivamente o art.º 105º/1 do RGIT afasta-se da norma equivalente existente na última ver são do RJIFNA, redacção introduzida pelo Dec-Lei nº 394/93 de 24/11 ao dispensar a apropriação como elemento típico.
4) Ao dispensar a apropriação como elemento distintivo que até à sua entrada em vigor marcava a fronteira entre o ilícito criminal e o ilícito contraordenacional, o RGIT não só afasta o crime de abuso de confiança do previsto na lei comum como faz sobrepor a uma mesma conduta tanto a comissão dum crime (art.º 105º) como a de uma contra-ordenação ( art.º 114º), ainda que aquele só seja punível decorridos mais de noventa dias a contar da data em que a prestação deveria ter sido entregue.
5) O que a norma constante do art.º 105/1 e 4 do RGIT é a mora, ou seja, eleva a dignidade penal o que anteriormente qualifica de mero ilícito de natureza administrativa.
6) A norma aplicada para condenar os arguidos incorre assim em inconstitucionalidade material.
7) Por outro lado, põe em causa os princípios constitucionais da igualdade e da Proporcionalidade, já que o Estado estabelece  para si próprio regras e instrumentos para cobrança dos seus créditos que não admite nem coloca a disposição dos seus cidadãos, quando nas relações entre si procuram satisfazer idênticos interesses.
8) Impor-se-ia, em consequência do exposto,  a absolvição dos recorrentes da prática do crime por que foram pronunciados, por a norma que o prevê e pune o facto ser desconforme a Constituição
3- Respondeu o Ministério Público pelo infundado do recurso, no mesmo sentido se pronunciando o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto.
4- Colheram-se os vistos. Cumpre apreciar e decidir!
II
1- Factos provados – 
1) A empresa "S…, Lda.'"', com sede na Rua …,  Alcobaça é uma sociedade por quotas. com início de actividade em 1995, tem o número de contribuinte…………., encontra-se registada na Conservatória do Registo Comercial de Alcobaça e dedica-se ao comércio por grosso e a retalho de materiais de construção e equipamento sanitário.
2) A gerência da sociedade arguida ficou inicialmente adstrita aos arguidos e, ainda, a A..., sendo que este último renunciou à gerência em Janeiro/1996 e J... cessou funções em Junho/1999.
3) A sociedade in casu, através dos seus representantes legais, procedeu ao pagamento das remunerações dos seus trabalhadores e gerentes (membros dos órgãos sociais), tendo deduzido do valor das mesmas o montante das contribuições por estes legalmente devidas.
4) Não o entregando, porém, como era seu dever, à Segurança Social, designadamente no tocante às contribuições dos meses de Abril/1996 a Março/2001, no total de € 13.639,04.
5) Dele se apropriando os arguidos ilegitimamente para proveito da sociedade, nomeadamente canalizando tal quantia para o pagamento de outros débitos decorrentes da actividade corrente da empresa.
6) O que causou um efectivo decréscimo das receitas fiscais arrecadadas pela Segurança Social.
7) Sendo certo que o pagamento das contribuições devia ter sido efectuado até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que diziam respeito.
8) Decorreram mais de 90 (noventa) dias, sobre o termo dos prazos legais para a entrega das prestações supra mencionadas.
9) Os arguidos "S…, Ldª", J... e C... foram notificados no dia 6 de Junho de 2007 e 21 de Junho de 2007, respectivamente, para efectuarem o pagamento da quantia mencionada em 4) no prazo de 30 (trinta) dias. acrescidas da coima devida. mas não o fizeram.
10) Pelo que a vantagem patrimonial obtida indevida, decorrente da prática das condutas atrás descritas, cifrou-se em E 13.639.04, acrescidos dos correspondentes juros compensatórios e moratórios relativos ao atraso da liquidação das contribuições.
11) Correspondendo a - a) Trabalhadores por conta de outrem (regime geral) € 9.893,00, calculado de acordo com a aplicação da taxa de 11 % às remunerações base de incidência; b) Gerentes (membros dos órgãos estatutários das pessoas colectivas ) € 3.746,04, calculado de acordo com a aplicação da taxa de 10% às remunerações  base de incidência.
12) Os arguidos J... e C..., em representação da arguida sociedade. actuaram aproveitando a oportunidade favorável à prática dos ilícitos descritos. dado que após a prática dos primeiros factos, não foram alvo de qualquer fiscalização ou penalização e terem verificado persistir as possibilidades de repetir as suas actividades delituosas.
13) Os arguidos J... e C... agiram consciente, livre e deliberadamente.
14) Em nome e no interesse da sociedade "SANRIFLOR - Caixilharia Alumínio,
15) Com o propósito de fazerem da sociedade os valores em causa.
16) Cientes que deviam proceder ao pagamento das contribuições referidas, nos prazos legais, junto de uma qualquer Instituição da Segurança Social.
17) O que, porém, não fizeram, nem sequer nos 90 dias posteriores.
18) Sabiam os arguidos que tais condutas eram proibidas por lei.
19) A sociedade arguida "S... - , Ldª" deixou de ter actividade no ano de 2001 e enquanto laborou tinha cinco trabalhadores.
20) No período mencionado em 4). muitos dos clientes não pagavam os seus débitos dos serviços e empreitadas efectuadas pela arguida.
21) O arguido J... procedeu ao pagamento das contribuições referentes aos meses de Dezembro de 1998 a Maio de 1999, acrescidas dos  juros compensatórios e moratórios, no montante total de € 4.758.74.
22) O arguido J... cessou as suas funções de gerente da sociedade arguida a partir de 22 de Junho de 1999. por escritura de cessão de quotas e renúncia à gerência lavrada no Cartório Notarial de Porto de Mós.
23) A partir de 22 de Junho de 1999 e durante todo o período subsequente, o arguido J... não celebrou em nome da sociedade arguida quaisquer contratos nem com fornecedores nem com clientes.
24) Nem agiu em representação da sociedade arguida para a prossecução do seu objecto social.
25) Através da escritura de cessão de quotas foi alterada a forma de obrigar da sociedade arguida da passando a sociedade a vincular-se pela assinatura de um gerente.
26) O arguido J... está reformado, auferindo uma pensão no montante de € 435.
27) Vive em casa própria e tem como habilitações literárias a 4ª classe.
28) O arguido C... está desempregado, trabalhando em vendas, sem carácter de regularidade, retirando dessa actividade entre € 500 a € 700.
29) Vive em casa da mãe e tem duas filhas com 24 e 15 anos de idade.
30) Paga mensalmente a quantia de €100 de alimentos à sua filha menor e € 320 pela aquisição dum automóvel.
31) Os arguidos não têm antecedentes criminais.
2- Apreciação –
Neste recurso apenas está em causa saber-se da constitucionalidade ou inconstitucionalidade dos art.ºs 105º e 107 do RGIT face ao que se estatui nos art.ºs 13/1 e 18/2 da Constituição da República Portuguesa.
2.1- Como referem os recorrentes o novo recorte típico do crime de abuso de confiança fiscal prescinde do elemento «apropriação» que era contemplado na versão do art.º 24º do RGIFNA introduzida pelo Dec-Lei nº 394/93 de 24/11. O tipo saído do Regime Geral das Infracções Tributárias aprovado pela Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho prescinde desse elemento, bastando ao seu preenchimento a não entrega da prestação deduzida ou recebida nos termos da lei.
Com o RGIT houve uma reaproximação ao tipo inicial previsto no RGIFNA  antes das alterações nele introduzidas pelo Dec-Lei nº 384/93 de 24/11, onde se previa não a «apropriação» mas a «intenção do agente em obter [para si para outrem] uma vantagem patrimonial indevida».
Com o RGIT o tipo tornou-se mais distante do crime comum de abuso de confiança previsto no art.º 205º do Código Penal. Contudo, subjacente à maioria das situações -, como a dos autos ( cfr. n.º9 do provado) -, persiste o elemento apropriativo referido. Pelo menos em todos os casos de crime há uma situação de retenção dolosa da prestação recebida.
Efectivamente, tornar-se-ia inconcebível que se falasse em «abuso de confiança» quando a prestação tributária não fosse recebida, consequentemente não fosse detida nem retida pelo sujeito passivo da relação jurídica tributária. Seria incongruente falar-se então de uso indevido, i é, de abuso por quem nunca chegou a ser depositário da prestação.
Continua, pois, a haver certa semelhança com o abuso de confiança previsto no Código Penal na medida em que o abuso de confiança fiscal é também um delito especial concretamente na forma de delito de dever, pelo que o seu agente só pode ser aquele que detém uma qualificação determinada resultante da relação de confiança  que o liga àquilo que recebeu a título não translativo da propriedade e que fundamenta o especial dever de entrega à Administração Fiscal.
Pode, assim, dizer-se que face à estatuição do art.º 105º/1 do RGIT apesar do tipo ter uma estrutura meramente formal[1] dispensando o elemento «apropriação», logo a inversão do título de posse, ele não prescinde do recebimento da prestação pelo seu agente.
O crime ou tipo de crime de abuso de confiança fiscal está contido no n.º1 do art.º 105º do RGIT. Trata-se de crime omissivo puro que se consuma no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida. O art.º 105/1 não permite outra interpretação.
O bem tutelado pelo tipo é a protecção do património do Estado mediante a tutela penal da obrigação de entrega das prestações que foram confiadas ao agente. O facto típico é a não entrega da prestação tributária e não qualquer mora qualificada. A mora nessa entrega constitui mera condição de punibilidade[2].
E há crime tanto nas situações em que o agente entrega a declaração tributária mas não paga a prestação devida, como naquelas em que não declara a prestação nem a entrega[3]. A entrega da declaração é uma obrigação acessória à obrigação da entrega do imposto.
Os elementos do tipo constam do n.º1 do art.º 105º do RGIT , a saber, a não entrega dolosa [não entrega total ou parcial] da prestação que for legalmente devida à Administração tributária.
Os n.ºs 2 e 3 do artigo reportam-se a exemplificações do que deva ter-se por «prestação tributária»; o n.º4 reporta-se a condições de procedibilidade e punibilidade; o n.º 5 à forma qualificada do tipo; o n.º6 foi revogado pela Lei 64-A/2008 de 31/12; e o n.º 7 reporta-se aos valores a considerar no cometimento do crime .
Aqui reproduzindo o por nós já dito noutro processo [ o n.º 24/05.1IDGRD de Vila Nova de Foz Côa], «Sob o ponto de vista dogmático/jurídico o crime de abuso de confiança fiscal configura-se como um crime omissivo puro na medida em que o facto típico revisto na norma incriminadora se verifica com a não entrega da prestação tributária, tendo-se por praticada a omissão na data em que termina o prazo para o cumprimento da obrigação tributária, por força do n.º2 do art.º 5º do RGIT.
O crime tem como pressuposto a existência duma prestação tributária deduzida ou recebida que o agente está legalmente obrigado a entregar, caindo fora da esfera da norma incriminadora as situações em que a não entrega da prestação tributária se deve à sua não dedução, não liquidação ou não recebimento por parte do agente.
É um crime doloso, dividindo-se a doutrina entre aqueles que consideram ser necessária a existência de um dolo específico e aqueles que entendem que o dolo se afere nos termos gerais do art.º 14º do Código Penal -, sendo esta a posição que melhor se coaduna com o texto do art.º 105º do RGIT.
No que concerne ao bem jurídico protegido, o crime de abuso de confiança fiscal tem por fundamento a protecção do património do Estado, mediante a tutela e protecção criminal da obrigação da entrega das quantias que foram confiadas ao agente para que este as entregasse nos Cofres do Estado.
Julgamos que terá de existir necessariamente essa investidura, tornando-se aquele sobre quem recai o dever de entrega uma espécie de fiel depositário de imposto pago por terceiros.
O cumprimento da obrigação declarativa acessória à obrigação da entrega do imposto apenas interfere com a possibilidade da regularização tributária nos termos da alínea b) do n.º4 [do artigo 105º do RGIT].
Ocorrendo tal regularização o crime não será punível. Como refere o Prof. Germano Marques da Silva [Direito Penal Português, II, 38/39] a punibilidade não é característica geral do crime mas sua consequência, embora não haja crime que não seja um facto punível ».
Também como já o dissemos em Acórdão desta Relação de 28/1/2009 proferido no processo 342/04.6TAAVR «Temos para nós como adquirido que a prática do crime de abuso de confiança fiscal tal como o crime de abuso de confiança contra a segurança social se consumam com a não entrega das prestações relativas a cada período. É o que retiramos do enunciado dos art.ºs 105º/1 e 107º do RGIT e do art.º 27º -B do RGIFNA.
Isso era expresso no n.º6 do art.º 24º do RGIFNA[4] na sua versão original. Alfredo José de Sousa opinava que no âmbito da nova redacção do RGIFNA continuava a ser válida tal doutrina. E pensamos que a mesma é de manter face à redacção do art.º 105/1 e 7 do RGIT. Neste é dito que «(…) os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária».
A entrega deve ser feita até ao 15º dia do mês seguinte àquele a que disserem respeito (art.º 5º/2 do Dec-Lei nº 103/80; art.º 18º do Dec-Lei nº 140-D/86 e art.º10º/2 do Dec-Lei nº 199/99 de 8/6 que revogou o Dec-Lei nº 140-D/86 à excepção dos seus art.ºs 8 e 19).
O decurso do período de 90 dias neles referidos não integra o crime, sendo uma condição de procedibilidade criminal[5].
Refere Tolda Pinto [RGIT, Coimbra Editora, 2002, p. 333] que o momento da consumação do crime não é o imediatamente subsequente ao decurso dos referidos 90 dias, mas sim o do decurso do prazo legal para a entrega da prestação. O decurso daqueles 90 dias configura tão só uma condição de punibilidade.
Não há assim um só crime mas tantos crimes quantos os períodos em que se verificou a falta de entrega das prestações.
Mas não existem tantos crimes quanto o número de trabalhadores ou o número de membros dos órgãos sociais relativamente a quem se verifique a falta de entrega das contribuições ou quotizações. O crime reporta-se à prestação total ou parcial de cada período referida indiferenciadamente a todos ou a alguns dos trabalhadores e /ou membros dos órgãos sociais. O art.º 105/1 do RGIT fala de “prestação tributária” total ou parcial; e o art.º 107º/1 fala em montante total ou parcial das contribuições devidas e deduzidas».
2.2- O invocado art.º 18/2 da Constituição da República Portuguesa estatui que «A lei só pode restringir direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».
O n.º3 do mesmo artigo estatui que «As leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais» 
Por esta redacção é unânime a consideração que no transcrito n.º2 se consagra o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso. Princípio este que se desdobra no princípio da adequação (as medidas restritivas devem revelar-se meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei), princípio da exigibilidade (tais medidas devem ainda revelar-se necessárias porque os fins visados não podiam obter-se por outros meios menos gravosos), princípio da proporcionalidade stricto sensu (os meios restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa justa medida, impedindo-se medidas desproporcionadas ou excessivas em relação aos fins obtidos).
Pelo n.º3 fica-se a saber que as leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias devem ser gerais (por se dirigirem a uma generalidade de pessoas) e abstractas (por serem aplicáveis a um conjunto indeterminado de casos). E não ter carácter retroactivo –, o que também está consagrado no art.º 29/1 da Constituição e com o qual se prende o princípio da legalidade previsto no art.º1º/1 do Código Penal.
O art.º 1º do Código Penal consagra o princípio da legalidade, dele decorrendo que para uma conduta humana assumir a característica de infracção criminal torna-se indispensável que coincida formalmente com a descrição feita numa norma legal que preveja, directa ou indirectamente, uma pena.
Seu corolário é o princípio da tipicidade, pelo qual cabe à lei e só a esta especificar quais os factos ou condutas que constituem um crime e quais os pressupostos que justificam a aplicação duma pena. Por isso importa que a sua definição seja tanto quanto possível precisa.
Com função primacialmente garantística impõe-se que só a lei possa delimitar uma função delituosa. Donde a sua consagração constitucional no art.º 29º e a apresentação da lei penal como um sistema fechado, sem possibilidade de aplicação analógica ou extensiva (embora nesta última com indefinição sobre o que ela realmente constitui).   
A isto adite-se que é da competência relativa da Assembleia da República a definição dos crimes e penas [ art.º 165/1 alínea c)]
No caso o legislador entendeu prescindir no tipo do elemento «apropriação», mas pela caracterização que já fizemos do tipo não se vê que ele padeça de qualquer inconstitucionalidade.
A sua inconstitucionalidade careceria de ser demonstrada. Não basta a  gratuita afirmação de que o art.º 105º é inconstitucional; será necessário demonstrar que o legislador violou aqueles princípios constitucionais referidos.
A nosso ver tais princípios não foram violados. Nem os recorrentes demonstram o contrário. A criminalização da não entrega dolosa daquilo que se recebeu a título não translativo da propriedade, mesmo sem a prova da inversão do título de posse, não nos parece que corresponda a qualquer medida discriminatória, desnecessária ou excessiva susceptível de constituir a violação do art.º 18/2 da Constituição da República Portuguesa.
2.3- Nem é correcto dizer-se que a sua previsão coincide (total ou parcialmente) com a previsão dos ilícitos de mera ordenação social contemplados no art.º 114º do RGIT.
Neste preceito são contempladas as condutas negligentes ( n.º2)[6]. Ou condutas dolosas mas não tidas por criminosas. Nestas situações está a não entrega da prestação sem se ultrapassar o prazo dos 90 dias referido no n.º4 do art.º 105º; ou a não entrega por período superior mas «desde que os factos não constituam crime»( n.º1). Ou o não recebimento ou dedução da prestação por actuação (dolosa ou negligente) do agente passivo da relação tributária ( n.º4) que, como acima já vimos, está fora da previsão do tipo criminal. Ou ainda o pagamento do imposto por forma diferente da devida ( n.º6);  e outros modos de falta de entrega descritos no n.º5 do art.º 114º.
Todas estas considerações são aplicáveis «mutatis mutandis» ao tipo legal do crime de abuso de confiança contra a segurança social previsto no art.º 107º do RGIT.
O preceito prevê como crime a situação criada pelas entidades empregadoras que tendo deduzido o valor das remunerações  devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições legalmente devidas, não o entreguem [total ou parcialmente]às instituições de segurança social.
Como no art.º 105º, o art.º 107º prescinde da comprovação do elemento «apropriação», mas isto não significa que deva ter-se por violador da Constituição.
O legislador ordinário tem uma ampla liberdade de conformação dos tipos dentro do respeito daqueles princípios constitucionais. 
2.4- Não perfilhamos, pois, a teoria da inconstitucionalidade material dos apontados preceitos, embora se compreendam as invectivas do Prof. Manuel da Costa Andrade contra as sucessivas reformulações do tipo que parecem não ter fim[7]...
Nem o Prof. demonstra a inconstitucionalidade da nova cosmética do tipo, limitando o seu juízo à suspeição.
Uma coisa para nós é certa: a situação crida pelos arguidos nunca deixou de ter previsão legal como crime e portanto de ser punível em qualquer das formulações do tipo, ou seja, quer na previsão do art.º 27º-B do RGIFNA quer na previsão do art.º 107º do RGIT. Tanto que o elemento «apropriação» está presente na sua actuação. Consequentemente, a sua acção nunca foi descriminalizada.
III –
Decisão –
Termos em que se nega provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes, com a taxa de justiça que se fixa em 2 UCs.
Coimbra,
      


[1] Ac RC de 28/6/2006/ processo 1667/06 ( Guarda) por nós relatado.
[2] Ac RC de 7/5/2008 / processo 98/06( Leiria) por nós relatado.
[3] Ac RC de 17/3/2009 / processo 24/05 (Vila Nova de Foz Côa) por nós relatado.
[4] «Se a obrigação da entrega da prestação for de natureza periódica, haverá tantos crimes quanto os períodos a que respeita tal obrigação»
                   [5] Ou de punibilidade, segundo outros na esteira da letra da lei.
                       [6] O crime é sempre uma conduta dolosa
[7] A este respeito diga-se que a última alteração introduzida na redacção do art.º 105º quanto ao valor da prestação em falta ( €7.500] não tem correspondência no crime de abuso de confiança contra a Segurança Social. Por todos ver o Ac RG de 14/4/2009 relatado pelo Des/ José Manuel da Cruz Bucho.