Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | JORGE ARCANJO | ||
| Descritores: | JUNÇÃO DE DOCUMENTO MATÉRIA DE FACTO PODERES DA RELAÇÃO PROCURAÇÃO CONTRATO DE MANDATO IRREVOGABILIDADE CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA POSSE DO PROMITENTE-COMPRADOR | ||
| Data do Acordão: | 01/30/2007 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DE MIRA | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Legislação Nacional: | ARTºS 524º, NºS 1 E 2, 655º, 706º, Nº 1, E 712º, DO CPC ; 262º, 265º, 1157º, 1170º, NºS 1 E 2, E 1250º DO C.C. | ||
| Sumário: | I – Da conjugação do disposto nos artºs 706º, nº 1, e 524º, nºs 1 e 2, do CPC, resulta que as partes só podem juntar documentos com as alegações nas seguintes condições: 1 – se a apresentação não tiver sido possível até esse momento; 2 – se os documentos se destinarem a provar factos posteriores aos articulados ou cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior; 3 – e se a junção só se tornar necessária devido ao julgamento proferido em 1ª instância. II – A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova – artº 655º do CPC -, que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que na formação da convicção do julgador não intervém apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também factores não materializados, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição. III – O que se torna necessário é que no seu livre exercício da convicção o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção do facto como provado ou não provado, possibilitando, assim, um controle sobre a racionalidade da própria decisão. IV – Conforme orientação jurisprudencial prevalecente, o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1ª instância deve, por isso, restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal é notoriamente mais falível de que qualquer outra, e na avaliação da respectiva credibilidade tem que reconhecer-se que o tribunal a quo está em melhor posição para o fazer. V – Ao outorgar-se uma procuração, o outorgante pratica um acto pelo qual confere poderes de representação a outrem (artº 262º, nº 1, do C.C.), para que o procurador, em nome do outorgante, possa celebrar determinado negócio ou negócios jurídicos, ou possa praticar actos jurídicos. VI – A procuração pode, ou não, coexistir com um contrato de mandato, que, por definição, é aquele pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outra (artº 1157º CC), tratando-se de uma modalidade particular do contrato de prestação de serviços. VII – Como resulta do nº 1 do artº 1170º do CC, o mandato é livremente revogável por qualquer das partes, não obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação. VIII – Porém, dispõe o nº 2 deste preceito que “se o mandato tiver sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro, não pode ser revogado pelo mandante sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa”. IX – O mesmo resulta do nº 3 do artº 265º do C.C., onde se dispõe que “se a procuração tiver sido conferida no interesse do procurador ou de terceiro, não pode ser revogada sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa”. X – Não definindo a lei o “interesse do mandatário ou de terceiro” que se deva ter como relevante para a exclusão do princípio geral da irrevogabilidade da procuração, é de atender, normalmente, à relação jurídica em que a procuração se baseia. XI – E não definindo a lei o conceito de “justa causa”, entende-se que o seu conteúdo deve ser apreciado livremente pelo tribunal, com apelo ao pensamento tópico, em face do casuísmo, segundo o critério da inexigibilidade do vínculo contratual, objectivamente valorada, considerando-se como tal toda a circunstância que torne contrário aos interesses do mandante o prosseguimento da relação jurídica. XII – Em casos excepcionais é de admitir que a posição do promitente-comprador se converta, com a entrega da coisa, numa verdadeira situação possessória, designadamente quando o bem lhe é entregue como se fosse seu, praticando, neste estado de espírito, diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade. XIII - Comprovando-se que os promitentes-vendedores entregaram o prédio ao promitente-comprador aquando da celebração do contrato-promessa e que este passou, desde então, a residir na casa, a cultivar o quintal e a ocupar os anexos, ou usando-os como arrumos, dormindo, confeccionando refeições e passando a maior parte da sua vida na casa, pagando a contribuição autárquica e as despesas de electricidade, na convicção de que o prédio é seu, sendo reconhecido como proprietário por todos os vizinhos, é por demais evidente tratar-se de uma situação possessória – artº 1251º C.C. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra I - RELATÓRIO 1.1. - O Autor - A... -, divorciado, residente na Rua das Pedrigueiras, n° 71, em Mira, instaurou na Comarca de Mira acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra os Réus: 1) - B... e marido C... , residentes na Rua do Monte, n° 5, Alto de S. João, em Coimbra; 2) - D..., advogado, casado, residente na Rua da Fresca, n° 25, na Figueira da Foz. Alegou, em resumo: O Autor, através de documento particular ( fls.10 ) comprou aos 1ºs Réus uma casa, pelo preço de 2.500.000$00, que foi integralmente pago, mas o negócio não foi formalizado por escritura pública, porque o prédio ainda não estava registado em nome dos vendedores, nem possuía a necessária licença de habitabilidade. Por este motivo, conferiram ao Autor, em 10/12/96, poderes para vender através de uma procuração irrevogável (fls.12), cujo objectivo era permitir que ele realizasse a escritura pública de compra e venda a si próprio daquele prédio. A partir desse momento, o Autor passou a viver nessa casa, onde ainda reside, sendo por todos reconhecido como seu proprietário, não tendo ainda conseguido celebrar a respectiva escritura pública, essencialmente por razões económicas. Em Abril de 2001, a Ré enviou ao Autor uma carta a revogar o mandato concedido através da referida procuração, juntando cópia de outra procuração passada em 11/4/2001 no 2° Cartório Notarial da Figueira da Foz a um advogado. Por outro lado, Ré B...enviou, ainda, uma carta na qual "resolve" o negócio celebrado com o autor, alegando que este efectuou obras na casa, o que não sucedeu. A revogação da procurarão outorgada em 17/5/1996 não se funda em justa causa, razão pela qual deve a mesma ser considerada válida, juridicamente eficaz e vinculativa. Por sua vez, a procuração outorgada ao 2º Réu é ilegal, porque o seu objecto é incompatível com a procuração passada ao autor. Pediu cumulativamente: a) - Que seja declarada ilegal, inválida ou ineficaz a revogação da procuração irrevogável e não caducável passada pelos 1°s Réus ao Autor em 10/12/1996; b) - Que seja decretada a revogação da procuração passada pelos 1°s Réus ao 2° Réu, em 11/4/2001, condenando em consequência estes Réus a reconhecerem a validade e vigência da procuração referida no pedido precedente; c) - A condenação dos Réus a absterem-se da prática de qualquer acto lesivo da sua posse sobre o prédio onde vive; d) - A condenação dos 1°s Réus a tratarem da obtenção da licença de habitabilidade das casas na C.M. de Mira, de modo a que o Autor possa exercer plenamente o mandato que integra a procuração que lhe foi conferida. Contestaram os Réus, defendendo-se por excepção, invocando a ilegitimidade passiva do 2° Réu, a existência de justa causa da revogação da procuração, com base na falta de pagamento integral do preço, bem como o erro sobre o objecto, visto que ao assinar a declaração estavam convencidos que o autor lhes entregaria todo o preço, impugnando a restante factualidade. O Autor replicou e pediu a condenação dos Réus como litigantes de má fé. No saneador foi julgada improcedente a excepção dilatória da ilegitimidade passiva do 2° Réu, afirmando, quanto ao mais, a validade e regularidade da instância. 1.2. (………..) 1.3. - Inconformados, os Réus recorreram de apelação, com as conclusões que se passam a resumir: (…….) Contra-alegou o Autor, preconizando a improcedência do recurso. II - FUNDAMENTAÇÃO 2.1. - Documentos supervenientes: Os apelantes juntaram com as alegações de recurso três documentos de fls.292 a 296 (cópia parcial da procuração junta a fls.16, contrato promessa de compra e venda de 11 de Abril de 2001, celebrado entre os 1°s Réus e E... e cópia do documento junto a fls.l4, com talão do registo), com a justificação de que se impõe face à decisão recorrida. Nas contra-alegações, os apelados dizem que os mesmos são irrelevantes para a decisão. A junção de documentos, na fase de recurso, reveste natureza excepcional, só devendo ser admitida nos casos especiais previsto na lei. Da conjugação do disposto nos artigos 706 nº1 e 524 nº1 e 2 do CPC, resulta que as partes só podem juntar documentos com as alegações nas seguintes situações: (1) se a apresentação não tiver sido possível até esse momento; (2) se os documentos se destinarem a provar factos posteriores aos articulados ou cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior; (3) e se a junção só se tornar necessária devido ao julgamento proferido em 1ª instância. Ora, nenhuma destas hipóteses se verifica no caso concreto. Desde logo, os apelantes já os poderiam ter apresentado em 1ª instância, sendo certo que nem sequer justificaram a superveniência subjectiva e a eventual relevância dos mesmos não surgiu com a decisão da 1ª instância, o que significa que a pretendida junção não era imprevisível antes dela. Por outro lado, a decisão da 1ª instância, ao responder à base instrutória, não se baseou em meio probatório não oferecido pelas partes, e nem a sentença se fundou em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação as partes justificadamente não contassem ( cf., por ex., Antunes Varela, RLJ ano 115, pág.95 ). Por isso, os documentos serão rejeitados. 2.2. - O objecto do recurso: Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões (arts.684 n°3 e 690 nº1 do CPC), as questões essenciais que importa decidir são as seguintes: 1ª) - Nulidade da sentença; 2ª) -Alteração da matéria de facto; 3ª) - Validade da procuração irrevogável de 10/12/96 e a (in)eficácia da revogação; 4ª) - Se o Autor beneficia da tutela possessória. 2.3. – A nulidade da sentença: Para os apelantes a sentença é nula ( art.668 nº1 b) e d) do CPC), por não ter apreciado a falta de pagamento como justa causa da revogação da procuração e haver concedido a posse sobre a casa ao Autor, não se provando que ela o tenha permitido ou que a procurarão lhe dê o direito. A nulidade prevista no art.668 nºl b) do CPC só ocorre quando se verifique a falta absoluta de fundamentarão de facto ou de direito, e já não a fundamentação deficiente, medíocre ou errada, que apenas afecta o valor doutrinal da sentença, conforme orientação jurisprudencial e doutrinária uniforme ( cf., Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anot., V, pág. 140, e Antunes Varela, RLJ ano 121, pág. 311; Ac do STJ de 22/1/04, de 27/4/04, de 16/12/04, in www dgsi.pt/jstj ). Como é flagrante, a sentença recorrida contém suficiente fundamentação, tanto de facto, como de direito. A nulidade de omissão de pronúncia, cominada no art.668 nº1 alínea d) do CPC, traduz-se no incumprimento, por parte do julgador, do dever prescrito no art.660 n°2 do CPC, que é o de resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras. Porém, conforme entendimento jurisprudencial uniforme, a nulidade consiste apenas na falta de apreciação de questões que o tribunal devesse apreciar, sendo irrelevante o conhecimento das razões ou argumentos aduzidos pelas partes (cf., por ex., Ac STJ de 11/11/87, BMJ 371, pág.374, de 7/7/94, BMJ 439, pág.526, de 25/2/97, BMJ 464, pág.464 ). Por outro lado, não há omissão de pronúncia quando a matéria tida por omissa ficou implícita ou tacitamente decidida no julgamento da matéria com ela relacionada ( por ex., Ac do STJ de 26/6/2001, www dgsi.pt/jstj ), e como de decidiu no Acórdão desta Relação de 30/5/2000 ( www dgsi.pt/jtrc ), " a abordagem sintética das questões suscitadas pelas partes não equivale à omissão de pronúncia ". Também aqui não assiste razão aos apelantes, pois a sentença pronunciou-se expressamente sobre tais questões. Improcedem as arguidas nulidades da sentença. 2.4. – Alteração da matéria de facto: O Tribunal da Relação pode reapreciar o julgamento da matéria de facto e alterar a decisão de 1ª instância, mas apenas nas seguintes situações previstas nas alíneas a), b) e c) do nº1 do art.712 do CPC: Por considerarem existir erro notório na apreciação da prova, os apelantes impugnam a matéria de facto ( respostas aos quesitos 5°, 7°, 8°, 9°, 10°, 11°, 13°, 14°, 17°, 18°, e 20° da base instrutória), indicando como elementos de prova que impõem decisão diversa os depoimentos de determinadas testemunhas e documentos juntos ao processo. Muito embora a revisão do Código de Processo Civil, operada pelo DL 329-A/95 de 12/2, haja instituído de forma mais efectiva a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto, o poder de cognição do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento de facto. Para além da possibilidade de conhecimento estar confinada aos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados, com os pressupostos adrede estatuídos no art.690-A nº1 e 2 do CPC, a verdade é que o controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar ( até pela própria natureza das coisas ) a livre apreciarão da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade. A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte, por isso, o princípio da livre apreciação da prova ( art.655 do CPC ) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que na formação da convicção do julgador não intervém apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também factores não materializados, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/ transcrição. Na verdade, o depoimento oral de uma testemunha é formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, as suas reacções imediatas, o sentido dado à palavra e à frase, o contexto em que é prestado o depoimento, o ambiente gerando em torno da testemunha, o modo como é feito o interrogatório e surge a resposta, tudo contribuindo para a formação da convicção do julgador, dialecticamente construída. Contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo. O que se torna necessário é que no seu livre exercício da convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção do facto como provado ou não provado, possibilitando, assim, um controle sobre a racionalidade da própria decisão ( cf. Michel Taruffo, "La Prueba De Los Hechos", Editorial Trotta, De resto, a lei determina a exigência de objectivação, através da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador ( art.653 n°2 do CPC ). Nesta perspectiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção. Conforme orientação jurisprudencial prevalecente, o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1 a instância deve, por isso, restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e na avaliação da respectiva credibilidade tem que reconhecer-se que o tribunal a quo, pelas razões já enunciadas, está em melhor posição. Da fundamentação ( fls.251 e 252 ) consta a análise crítica da prova ( testemunhal e documental) com que o tribunal objectivou a sua convicção e ouvida integralmente a gravação, pode afirmar-se, de um modo geral que nela tem suporte. (……..) 2.5. - Os factos provados: 1) - Em 17/5/ 1996, o A. e os RR.C... e mulher, B..., assinaram o documento cuja cópia está junta a fls. 10 (e cujo teor ora se dá por reproduzido), no qual os réus declararam que venderam ao autor, que declarou aceitar, o seguinte prédio "Casa de rés-do-chão destinada a habitação, anexos e quintal, situada no lugar da Lagoa, freguesia e concelho de Mira, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Mira sob o artigo 2864°, pelo preço de Esc. 2.500.00000 (A/). 2) - No documento referido em A), os réus C... e mulher, B..., declararam ainda que, título de sinal e princípio de pagamento, receberam do autor a quantia de Esc. 1.000.00000, sendo que a restante quantia, no valor de Esc. 1.500.00000, será paga pelo autor em prestações mensais de Esc. 50.000$00 cada uma, a efectuar no dia um de cada mês a que disser respeito, em casa dos réus, com início no dia um de Junho de 1996, e as restantes vinte e nove prestações nos vinte nove meses seguintes ( B/). 3) - Em 10/ 12/ 1996, no Cartório Notarial de Vagos, os réus B... e marido, C..., subscreveram o documento junto a fls. 12 e 13 (também dado por reproduzido), pelo qual ela declarou constituir procurador o A., "a quem concede poderes para vender pelo prelo e condições que entender mais convenientes o prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho de Mira sob o número 4447, assinando e outorgando a competente escritura e tudo o mais que indicado fim. Dado que esta procuração é passada ao interesse do mandatário é irrevogável nos termos das disposições combinadas do número três do artigo duzentos e sessenta e cinco e número dois do artigo mil cento e setenta, ambos do Código Civil, e não caduca por morte, interdição ou inabilitarão dos mandantes nos termos do artigo mil cento e setenta e cinco do mesmo Código"( C/). 4) - Em 11/4/2001, no Segundo Cartório Notarial da Figueira da Foz, os RR. B... e marido, C..., subscreveram o documento junto a fls. 52 (ora dado por reproduzido), pelo qual a ré B...declarou constituir seu procurador o réu Dr. D..., "a quem, com a faculdade de substabelecer, confere poderes para vender, pelo preço e condições que entender convenientes, e a quem entender, incluindo a si próprio, conforme Art. ° 261 ° do Código Civil, o prédio urbano inscrito na respectiva matriz da freguesia e concelho descrito e na Conservatória do Registo Predial de Mira sob o número quatro mil cento e cinquenta e seis, receber o preço e dele dar quitação, outorgar e assinar a competente escritura (...). A presente procuração é também passada no interesse do mandatário, pelo que só pode ser revogada com o acordo deste, nos termos do n.° 3 do artigo 265° e o artigo 1170° do Código Civil, e não caduca por morte, interdirão ou inabilitação dos mandantes nos termos do artigo 1175°, do mesmo Código", declarando o réu C... dar o seu consentimento ( D/). 5) - A ré B... emitiu e enviou, em Abril de 2001, ao autor, que o recebeu, o documento de fls. 14 (aqui dado por reproduzido), onde consta "Porque o senhor Nunes, sem a minha autorização e sem sequer me ter dado conhecimento, andou a fazer obras na minha casa sita na Rua das Pedregueiras, na Lagoa de Mira, obras essas ilegais e que desfeiaram e prejudicaram, venho informá-lo que revoguei o mandato da procurarão que lhe tinha conferido, face à nova procuração cuja fotocopia junto. Assim, fica o nosso negocio totalmente resolvido devendo o senhor abandonar a casa imediatamente", juntando ao mesmo cópia do documento referido em D) ( E/). 6) - Encontra-se registado sob o n.° 04156/211196 da Freguesia de Mira na Conservatória do Registo Predial de Mira o seguinte prédio: `Prédio Urbano - Rua das Pedregueiras, Lagoa - Casa de habitarão de rés-do-chão S.C. - 98 m2; anexos - 27 m2; Logradouro - 115 m2. Norte, Manuel Augusto Quitério; Sul, Rua das Pedregueiras e António Rodrigues Távora; Nascente, Mabília da Assunção Guina; Poente, João Ferreira da Costa. V.P. - 1.080.000$00. Artigo - 4.447", com o Av. O l / 160401 - `Artigo 4.733 (pendente de alteração) V.V. - 1.080.00000 ( F/). 7) - O prédio referido em F) está inscrito (aquisição definitiva - G 1) em nome da ré B... pela Ap. 07 / 211196, estando inscrita pela Ap. O l / 160401 a aquisição provisória por natureza a favor de E... (G-2) ( G/). 8) – Encontra-se inscrito na matriz predial urbana da Freguesia de Mira, sob o artigo 4.733, correspondente aos anteriores artigos 4.447 e 2.864, tendo como seu titular inscrito a R. Dália, o prédio sito na Rua das Pedregueiras, Mira, composto de casa de r/c destinada a habitarão, com 3 divisões, cozinha, casa de banho, corredor e marquise, anexo destinado a arrumos, a confrontar do Norte com Manuel Augusto Quitério, do Sul com Rua das Pedregueiras e António Rodrigues Távora, do Nascente com Mabilia da Assunção Guina e do Poente com João Ferreira da Costa, com as seguintes áreas das partes componentes: S. C, 102 m2, Anexos, 23 m2, L. 315 m2 ( H/). 9) - Os réus C... e mulher, B..., entregaram o prédio ao autor na data referida em A) ( r.q.4° ). 10) - Passando, a partir dessa data, o autor a aí residir na casa, a cultivar o quintal e a ocupar os anexos, ou usando-os como arrumos, dormindo, confeccionando refeições e passando a maior parte da sua vida na casa, pagando a contribuição autárquica e as despesas de electricidade ( r.q.5°, 6° e 7° ). 11) - Sendo reconhecido como proprietário por todos os vizinhos e tendo a convicção que o prédio é seu ( r.q.8° e 9° ). 12) - O autor apresentou na Repartição das Finanças o modelo 129, que deu origem ao artigo urbano 4733°, no qual declarou a área de 125 m2 (coberta) e 315 m2 (descoberta) ( r.q.l7°). 13) - O artigo 4.447 proveio do artigo 2861 ° e deu origem ao artigo 4733° ( r.q.18° ). 2.6. - A validade da procuração irrevogável e a (in)eficácia da revogação: A sentença recorrida, depois de afirmar que a procuração de 10/12/96 foi outorgada no interesse dos dominus e do procurador- “por ambos retiram utilidade da sua vigência, no que concerne à possibilidade de atingir ou realizar fins próprios (o autor, a possibilidade de celebrar a escritura de compra e venda referente ao prédio aí identificado e os 1ºs réus, o recebimento do resto preço)" - concluiu, perante a factualidade apurada, pela não comprovação de " justa causa" que legitimasse os 1°s Réus a revogarem unilateralmente a mesma. Em contrapartida, objectam os apelantes não só que a procuração caducou, como se verifica a "justa causa" de revogação. Comprovou-se que, em 17/5/1996, através de documento particular (fls. 10), os 1°s Réus declaram vender ao Autor, que declarou aceitar o prédio urbano composto por "casa de rés-do-chão destinada à habitação, anexos e quintal, situada no lugar da Lagoa, freguesia e concelho de Mira, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Mira sob o artigo 2864", pelo preço de 2.500.000$00, tendo aqueles recebido, a título de sinal e princípio de pagamento a quantia de 1.000.000$00, seno o restante valor pago em prestações mensais de 50.000$00 cada, a efectuar no primeiro dia útil do mês a que disser respeito, com início no dia um de Junho de 1996, e as restantes vinte e nove prestações nos vinte nove meses seguintes. Nessa data, entregaram o prédio ao Autor, que passou desde então a ocupá-lo, aí vivendo, sendo reconhecido como proprietário. Em 10/12/1996, os 1°s Réus outorgaram a procuração de fls. 12 e 13, nela declarando constituir procurador o Autor, "a quem concede poderes para vender pelo preço e condições que entender mais convenientes o prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho de Mira sob o número 4447, assinando e outorgando a competente escritura e tudo o mais que indicado fim. Dado que esta procurarão é passada ao interesse do mandatário é irrevogável nos termos das disposições combinadas do número três do artigo duzentos e sessenta e cinco e número dois do artigo mil cento e setenta, ambos do Código Civil, e não caduca por morte, interdirão ou inabilitação dos mandantes nos termos do artigo mil cento e setenta e cinco do mesmo Código". Ao outorgaram a procuração de 10/12/1996 ( fls. 12 e 13 ), os 1°s Réus celebraram um negócio jurídico, através do qual conferiram poderes de representação ao Autor, para em nome deles “vender pelo preço e condições que entender mais convenientes o prédio inscrito na matriz urbana da freguesia e concelho de Mira sob o número 4447, assinando e outorgando tudo o mais que seja necessário ao indicado fim”. A procuração é o acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos (art.262 n°1 do CC). Não é um contrato mas um acto de atribuição, um negócio jurídico unilateral por intermédio do qual uma pessoa é nomeada procurador. No caso vertente teve como relação jurídica de base (art.265 nº1 do CC) o contrato de mandato, que, por definição, é aquele pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outra (art.1157 do CC), tratando-se de uma modalidade particular do contrato de prestação de servidos. A procuração pode, ou não, coexistir com um mandato, mas neste caso tal mandato existiu, ou coexistiu, pois o Autor obrigou-se a um acto jurídico por conta dos mandantes ( a venda do prédio). Como resulta do nº1 do art. 1170 do CC, o mandato é livremente revogável por qualquer das partes, não obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação, dispondo o n°2 que – “Se, porém, o mandato tiver sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro, não pode ser revogado pelo mandante sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa”. Esta norma está em sintonia com o preceituado no n3 do art.265 do CC - " Se a procurarão tiver sido conferida no interesse do procurador ou de terceiro, não pode ser revogada sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa ". A lei não define o “interesse do mandatário ou de terceiro” que se deva ter como relevante para exclusão do princípio geral da irrevogabilidade da procurarão, sendo de atender, normalmente, à “relação jurídica em que a procurarão se baseia” ( cf. Vaz Serra, RLJ ano 109, pág.124, Ac do STJ de 24/1/90, BMJ 393, pág.588). No caso concreto, a procuração foi outorgada também no interesse do mandatário, como desde logo nela se exarou e se justificou na sentença recorrida, pelo que só poderia ser revogada desde que se verificasse “ justa causa “. Não definindo a lei o conceito de “ justa causa “, entende-se que o seu conteúdo deve se “" apreciado livremente pelo tribunal”, com apelo ao pensamento tópico, em face do casuísmo, segundo o critério da inexigibilidade do vínculo contratual, objectivamente valorada, “considerando-se como tal toda a circunstância que torne contrário aos interesses do mandante o prosseguimento da relação jurídica” ( P.Lima/A.Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 3ª edição, pág. 731), ou “será uma justa causa ou um fundamento importante qualquer circunstância, facto ou situação em face da qual, e segundo a boa fé, não seja exigível a uma das partes a continuação da relação contratual; todo o facto capaz de fazer perigar o fim do contrato ou de dificultar a obtenção desse fim, qualquer conduta que possa fazer desaparecer pressupostos, pessoais ou reais, essenciais ao desenvolvimento da relação, designadamente qualquer conduta contrária ao dever de correcção e lealdade (ou ao dever de fidelidade na relação associativa). A justa causa representará, em regra, uma violação dos deveres contratuais (e, portanto, um incumprimento): será aquela violação contratual que torna insuportável ou inexigível para a parte não inadimplente a continuação da relação contratual" ( Baptista Machado, "Pressupostos da Resolução por Incumprimento", Obra Dispersa, pág. 143 ) . Os 1°s Réus invocaram como fundamento para a justa causa da revogação unilateral da procuração a realização de obras ilegais no prédio por parte do Autor, sem autorização daqueles ( fls. l4 ), mas não se provou tal facto. Na contestação vieram alegar outro fundamento (a falta do pagamento de parte do preço), sem que também o lograssem demonstrar, como se evidenciou na sentença, a cuja argumentação se adere. E competia aos Réus, como facto extintivo do direito do Autor, a prova da justa causa de revogação ( art.342 n°2 do CC ), o que não fizeram. Consideram os apelantes que a procuração de fls. 12 já caducou, por se extinguir o artigo urbano 4447 da freguesia de Mira e o fim da sua outorga era somente a venda desse artigo, mas sem razão, face à resposta ao quesito 18°, sendo certo tratar-se da mesma realidade predial. 2.7. - Se o Autor beneficia da tutela possessória: A sentença recorrida, depois de justificar a ineficácia da revogação da procuração, bem assim a ineficácia da procuração outorgada pelos 1°s Réus ao 2° Réu (11/4/2001), extraiu como consequência a condenação dos Réus a absterem-se da prática de qualquer acto lesivo da posse que o Autor exerce sobre o prédio onde vive e que é objecto daquela procuração, na medida em que a entrega desse prédio é contemporânea da outorga da procuração. Por seu turno, contestam os apelantes com o argumento de que o tribunal não poderia reconhecer a posse do prédio ao Autor, e pese embora houvessem qualificado o imputado vício como nulidade da sentença, o sentido útil da pretensão recursiva aponta para o erro de julgamento. Coloca-se a questão de saber se o negócio consubstanciado no documento de f1s.10 configura um contrato de compra venda ou um contrato promessa de compra e venda, postulando um problema de interpretação. A interpretação dos negócios jurídicos e sobretudo das declarações negociais que os enformam, rege-se pelas disposições dos arts.236 a 238 do CC, que consagram de forma mitigada o princípio da impressão do destinatário. Por conseguinte, na interpretação dos contratos prevalecerá, em regra, a vontade real do declarante, sempre que for conhecida do declaratário. Faltando esse conhecimento, o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um destinatário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário normal, em face do comportamento do declarante ( cf., por ex., Ac do STJ de 14/1/97, C.J. ano V, tomo I, pág.46 ). Nos negócios formais ( art.238 do CC ), o texto do documento surge como limite à validade de sentido com que o negócio deve valer, nos termos gerais da interpretação, optando-se por uma orientação objectivista. Analisando o documento, nele os 1°s Réus declaram vender ao Autor o prédio, aí descrito, pelo preço de 2.500.000$00, consignando ainda que declaram receber do Autor “ a título de sinal e princípio de pagamento” a quantia de 1.000.000$00, sendo o restante pago em prestações mensais. Ao atribuírem a natureza de sinal ao quantitativo entregue, parece apontar para a existência de um contrato promessa de compra e venda, com a tradição da coisa, antecipando os efeitos do contrato prometido. A configurar-se antes como um contrato de compra e venda, será nulo por vício de forma, mas a vontade hipotética das partes leva a concluir pela conversão em contrato promessa de compra e venda (art.293 do CC ). A conversão do negócio jurídico pressupõe uma revalorização conferida pela ordem jurídica a um comportamento das partes ao qual, despido embora de efeitos jurídicos, se atribui uma eficácia substitutiva do fim visado pelo tipo negocial em vista, respeitados os requisitos de validade e de eficácia do negócio que se procurou celebrar. O requisito subjectivo da conversão dimana da vontade conjectural ou hipotética das partes, de tal modo que o juiz deverá ponderar se o fim económico-social visado pelas partes seria bastante para presumir que aceitariam a conversão se soubessem que o negócio celebrado era nulo Para efeitos de conversão de negócio nulo ou anulado, nos termos do art. 293 do CC, a vontade presumível das partes extrai-se do fim por elas prosseguido, sendo irrelevante a investigação da sua vontade real, bem assim o facto das partes terem consciência da nulidade do contrato ( cf., Carvalho Fernandes, A Conversão dos Negócios Jurídicos, pág.823 e segs. Ac do STJ de 9/10/03, disponível em www dgsi.pt ). Em princípio, a tradição da coisa realizada a favor do promitente comprador não inverte o accipiens na qualidade de possuidor da coisa, atribuindo-lhe apenas um " direito pessoal de gozo ", tratando-se, nestes casos, de uma mera detenção ou posse precária ( art. 1253 do CC ), insusceptível de ser defendido através de acções possessórias ( cf., por ex., Vaz Serra, RLJ ano 115, pág.208, Henrique Mesquita, Obrigações e ónus Reais, pág.49, Ac STJ de 17/11/94, BMJ 441, pág.274, de 23/ 1/96, C.J. ano IV, tomo I, pág.70 ). Porém, em casos excepcionais, admite-se que a posição do promitente-comprador se converta, com a entrega da coisa, numa verdadeira situação possessória, designadamente quando o bem lhe é entregue como se fosse seu, praticando, neste estado de espírito, diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade ( cf. por ex., Antunes Varela, RLJ ano 124, pág.348, Ac do STJ de 25/11/96, C.J. ano IV, tomo III, pág. 109, de 14/ 3 / 2000, BMJ 495, pág.310, de 27/05/04, C.J. ano XII, tomo II, pág.77 ). Pois bem, comprovando que os 1°s Réus entregaram o prédio ao Autor em 17/5/96, aquando da celebração do contrato de f1s.10, e passando este desde então a residir na casa, a cultivar o quintal e a ocupar os anexos, ou usando-os como arrumos, dormindo, confeccionando refeições e passando a maior parte da sua vida na casa, pagando a contribuição autárquica e as despesas de electricidade, na convicção de que o prédio é seu, sendo reconhecido como proprietário por todos os vizinhos ( respostas aos quesitos 5° a 9° ), é por demais evidente tratar-se de uma situação possessória. A posse, segundo a concepção subjectiva ( tese savignyana ) adoptada pela lei ( art.1251 CC ) é integrada por dois elementos: o corpus ( elemento material ), que consiste no domínio de facto sobre a coisa, traduzida no exercício efectivo de poderes materiais sobre ela ou a possibilidade física desse exercício; e o animus, ou seja, a intenção de exercer sobre a coisa o direito real correspondente a esse domínio de facto, os quais estão verificados. Sendo assim, o Autor passou praticar actos materiais em nome próprio, com a intenção de exercer sobre o prédio um verdadeiro direito de propriedade uti dominus e já não um simples direito pessoal de gozo e, nesta medida, adquiriu a posse sobre o prédio, estando legitimada substantivamente a pretensão requerida. Como nota final, a existência de manifesto lapso de escrita quanto à data da procuração, contido na parte dispositiva da sentença "Declara-se ineficaz a revogação da procuração irrevogável e não caducável outorgada pelos 1°s Réus ao Autor em 10.5.1996 (...) " - já que a procuração foi outorgada em 10/12/96 ( cf. alínea C/), competindo a rectificação ao tribunal a quo, nos termos dos arts.666 n°2 e 667 do CPC. Em resumo, improcede a apelação, confirmando-se a sentença recorrida. III – DECISÃO Pelo exposto, decidem: 1) Rejeitar a junção dos documentos apresentados pelos apelantes com a alegação do recurso. 2) Condenar os apelantes nas custas do incidente, fixando-se a taxa de justiça em 1 Uc ( art.16 nº1 do CCJ ). 3) Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida. 4) Condenar os apelantes nas custas. 5) Remunerar a Ex.ma advogada, patrona oficiosa do Autor/apelado, com 8 UR de honorários ( Portaria nº1386/2004, de 10/11). |