Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1992/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
ABANDONO DE SINISTRADO
DIREITO DE REGRESSO
SEGURADORA
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 07/11/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE OLIVEIRA DO BAIRRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 19º, AL. C), DO D.L. Nº 522/85, DE 31/12 .
Sumário: I – Face ao disposto no artº 19º, al. c), do DL nº 522/85, a seguradora que no âmbito do seguro obrigatório pagar a indemnização tem direito de regresso em relação ao condutor que tenha abandonado a vítima do acidente a que deu causa .
II – O direito de regresso só deve, porém, abranger a indemnização que a seguradora suportou em razão do abandono do sinistrado, pelo que é necessário provar a existência de um nexo de causalidade adequada entre o abandono (o facto) e o dano, e só demonstrando-se esse nexo causal é que a seguradora gozará de direito de regresso .

III – A seguradora, em razão do contrato de seguro, terá a obrigação de pagar os danos provocados pelo acidente e apenas estes, esgotando-se a sua responsabilidade contratual aí, pelo que se pelo abandono resultarem danos ou o agravamento deles, já não terá de os ressarcir .

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório:
1-1- A... com sede na Av. José Malhoa, 9, 1070-157 Lisboa, propõe contra B..., residente em E.N. 1, Curia, 3780, Anadia, a presente acção com processo ordinário, pedindo que o R. seja condenada, a pagar-lhe a quantia de 34.466,56 euros, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento. Fundamenta o seu pedido, alegando, em síntese, que no exercício da sua actividade de Seguradora e na sequência de um acidente de viação, ocorrido a 18-8-1998, em que esteve envolvido o R. e em que este foi culpado, teve que pagar a quantia que peticiona. Sucede que o R., apesar de verificar que o outro interveniente no acidente necessitava de assistência, abandonou imediatamente o local e o sinistrado. Em virtude deste abandono, nos termos do art. 19º al. c) do Dec-Lei 522/85 de 31/12, tem direito de regresso contra o R., direito que vem exercer através desta acção.
1-2- O R. contestou, também em síntese, impugnando a sua culpabilidade no acidente. Nega que tivesse abandonado o sinistrado, visto que o não viu após a ocorrência.
Termina pedindo a improcedência da acção.
1-3- A A. veio requerer a ampliação do pedido para 199.817,91 euros, com o fundamento de que acabou por ser esta a quantia que teve que pagar em virtude do referenciado acidente, ampliação que foi admitida.
1-4- O processo seguiu os seus regulares termos posteriores, tendo-se proferido despacho saneador, após o que se fixaram os factos assentes, se elaborou a base instrutória, se realizou a audiência de discussão e julgamento, se respondeu a esta base e se proferiu a sentença.
1-5- Nesta considerou-se a acção improcedente, absolvendo-se o R. do pedido.
1-6- Não se conformando com esta sentença, dela veio recorrer a R., recurso que foi admitido como apelação e com efeito devolutivo.
1-7- A recorrente alegou, tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões, que se resumem:
1ª- Atentos os factos provados a questão que se coloca no recurso é a de tomar posição em relação interpretação do art. 19º al. c) do Dec-Lei 522/85, na parte em que confere direito de regresso à Seguradora que suportou os danos resultantes do acidente, contra o condutor culpado que “haja abandonado a vítima”.
2ª- O Mº Juiz seguiu o entendimento de que o direito de regresso previsto no artigo, se limita aos danos acrescidos ou resultantes do próprio abandono, facto ou factos que incumbiria à Seguradora alegar e provar, considerando ainda que este é o entendimento seguido, de forma quase uniforme, pelas instâncias de recurso.
3ª- Por isso, considerando, no presente caso, que não foi alegado nem provado que os danos ressarcidos pela A. e resultantes do acidente, tenham sido consequência do abandono ou agravados pelo mesmo, absolveu o R. do pedido.
4ª- Tal entendimento tem vindo a ser afastado por decisões dos Tribunais Superiores e de 1ª instância, as quais sustentam que o direito de regresso contra o condutor civilmente responsável e que abandonou o sinistrado, não se restringe aos danos que tiverem resultado do abandono, sendo que esta posição é, sem dúvida, a mais conforme com a ratio e o sentido útil da disposição legal em causa e, por isso, a que deve ser adoptada.
Termos em que deve ser concedido provimento ao recurso, julgando-se, consequentemente, procedente a acção.
1-8- A parte contrária não respondeu a estas alegações. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Uma vez que o âmbito objectivos dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas ( arts. 690º nº1 e 684º nº 3 do C.P.Civil ).
A única questão que urge resolver, será a de saber qual a interpretação e alcance a dar ao disposto no art. 19º al. c) do Dec-Lei 522/85, disposição que concede o direito de regresso à Seguradora, em relação ao culpado no acidente que abandonou o sinistrado.
2-2- Nos termos do art. 713º nº 6 do C.P.Civil e dado que a matéria de facto dada como assente não foi impugnada nem se vê razão para qualquer alteração, remete-se para a decisão que a fixou.
Como se diz na douta decisão recorrida, os factos provados demonstram, na realidade, que a culpa do acidente foi do R. ( que invadiu a faixa de rodagem ocupada pela vítima, cortando-lhe o sentido de marcha ) e que ele abandonou a vítima no local do evento, sem lhe prestar assistência, apesar de saber que ela era necessária. Aliás, em relação a estes aspectos, haverá a sublinhar que, inclusivamente, o R., em processo-crime, foi já condenado pelo crime de ofensas corporais à integridade física de forma negligente e pelo crime de omissão de auxílio (fls. 142 a 166 ).
Estabelece o art. 19º al. c) do Dec-Lei 522/85 que “satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos ou quando haja abandonado o sinistrado”.
Portanto face a esta disposição e para o aqui interessa, a seguradora que, no âmbito do seguro obrigatório, paga a indemnização, tem direito de regresso em relação ao condutor que tenha abandonado a vítima do acidente a que deu causa.
A questão que se coloca e que tem vindo a ser objecto de controvérsia na jurisprudência, é a de saber qual o âmbito desse direito de regresso, se ele abrange toda a indemnização paga pela seguradora, ou apenas a que resulte directamente do abandono.
A esta questão respondeu a decisão recorrida, sustentando que o direito de regresso da seguradora, só tem a sua razão de ser no facto e na medida em que o abandono tenha provocado ou agravado os danos. Ou seja, aderiu à tese segundo a qual o direito de regresso da seguradora se deve circunscrever aos danos que resultem directamente do abandono do sinistrado.
Por sua vez a seguradora recorrente, entende que o seu direito de regresso em relação ao condutor que abandonou o sinistrado, não se restringe aos danos que tiverem resultado do abandono, mas sim a todos os danos, pois esta posição é, sem dúvida, a mais conforme com a ratio e o sentido útil da disposição legal em causa e, por isso, a que deve ser adoptada.
Em paralelismo com a situação dos autos e em relação ao direito de regresso de uma seguradora quando o condutor seguro tenha agido sob a influência do álcool, decidiu o Ac. Uniformizador do STJ 6/02 ( publicado no DR 1ª-A, em 18-7-2002 ) que “a alínea c) do art. 19º al. c) do Dec-Lei 522/85 de 32/12 exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob a influência do álcool, o ónus da prova pela seguradora, do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente”.
Face a este acórdão, somos em crer que a tese que se deve impor, será a de que o direito de regresso só deve abranger a indemnização que a seguradora suportou em razão do abandono do sinistrado. Neste contexto, será preciso provar a existência de um nexo de causalidade adequada entre o abandono (o facto ) e o dano. Só demonstrando-se esse nexo causal, a seguradora gozará de direito de regresso.
Aderimos, portanto à tese da sentença recorrida, que, assim será confirmada.
De resto, é esta a posição que, face àquele Acórdão Uniformizador, tende a ser uniforme ( para além dos arestos indicados na sentença recorrida, vide Ac. do STJ de 29-11-2005 in Col. Jur. 2005, Tomo III, pág. 138 e Ac. do STJ de 9-12-2004 in www.dgsi.pt/jstj.nsf/954 ).
Aliás se analisarmos com ponderação a questão, não poderemos deixar de concluir que a seguradora, em razão do contrato de seguro, terá a obrigação de pagar os danos provocados pelo acidente. Mas apenas estes. A sua responsabilidade (contratual ) esgota-se aí. Se pelo abandono resultarem danos, ou agravamento deles, já não terá que os ressarcir. A sua responsabilidade contratual já não abrange, obviamente, esses prejuízos, porque alheios à circulação rodoviária. O abandono de sinistrado não é, evidentemente, um risco assumido pela seguradora, através do contrato de seguro que celebrou. Claro que se pagar esses prejuízos, a lei concede-lhe o direito de regresso para o reaver o montante que pagou. Foram esses e tão só esses que foram causa directa do abandono da vítima. Nesta conformidade, o direito de regresso só deve abranger os danos que a seguradora suportou em razão do abandono. Repete-se, os outros danos estão abrangidos pelo contrato de seguro celebrado entre a seguradora e o condutor/proprietário do veículo. Nenhuma razão se vê para se considere a seguradora eximida de solver neste caso, a correspondente indemnização. A circunstância de existir abandono de sinistrado, não modifica, nem pode modificar, a responsabilidade que assumiu derivada do contrato de seguro que celebrou. Daí que se entenda que a seguradora deve provar, para lograr o direito de regresso em causa, que a indemnização que teve que pagar, resultou objectiva e directamente do abandono. Ou por outras palavras, terá que demonstrar o nexo de causalidade adequada entre o abandono e a indemnização que solveu.
Como o não fez, a decisão recorrida foi certa.
III- Decisão:
Por tudo o exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela apelante.