Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
938-H/2001.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VÍTOR
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
FORMA
FALTA
NULIDADE
CONTRATO-PROMESSA
FALÊNCIA
SENHORIO
Data do Acordão: 03/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE AVEIRO - 3º J. CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 220º, 293º, 410º, 1311º DO CC, 7º Nº2 DO RAU
Sumário: I. Um contrato-promessa de arrendamento não caduca necessariamente com a declaração de falência, nomeadamente do outorgante locador.

II. Intentada a acção de reivindicação pela massa falida de uma sociedade, pode o Réu defender-se, nomeadamente, com a existência de um contrato-promessa de arrendamento.

III. Tal contrato pode resultar da conversão de um contrato de arrendamento para fins industriais nulo por falta de forma, desde que estejam preenchidos os requisitos que a lei faz depender para que se possa operar tal conversão.

IV. A massa falida sucede, decretada que seja a falência, na relação jurídica existente que é presumivelmente a mesma que foi criada na data da realização do contrato entre os outorgantes senhorios (aqui os sócios da falida) e o ora Réu.

V. Nesta conformidade é lícito ao réu opor à massa falida e ao seu administrador os meios de defesa emergentes do contrato que realizou, nomeadamente os que dizem respeito à conversão do negócio jurídico.

VI. Repugna à consciência jurídica, sendo assim, ofensivos do princípio da boa-fé, fazer tábua rasa de 11 anos de vigência de uma situação fáctica de “contrato de arrendamento” regular com o pagamento e aceitação de rendas, sendo tal facto susceptível de paralisar a reivindicação do prédio ocupado.

Decisão Texto Integral: 1. RELATÓRIO.

Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra.

A Massa Falida de A..., com sede na Rua ...., Aveiro, representada pelo seu Liquidatário Judicial, instaurou a presente acção declarativa, com processo ordinário contra B..., comerciante de automóveis, residente na Rua ...., Albergaria-a-Velha, alegando, em resumo, que por sentença de 20-03-2002, já transitada em julgado, foi decretada a falência da sociedade A... tendo-se procedido a apreensão dos bens a esta pertencentes, nomeadamente do prédio rústico sito em Eixo, inscrito na matriz sob o artº 3 149, pertença da falida, verificando-se, então, que o Réu vem ocupando uma parcela desse prédio como Stand de automóveis, tendo por base um contrato de arrendamento outorgado em 1-03-1993, o qual nunca foi reduzido a escritura pública, pelo que o mesmo é nulo, devendo essa parcela ser restituída à Autora.

Conclui pedindo que a acção seja julgada provada e procedente e, em consequência:

a) Se reconheça que o prédio identificado (no artº 3° da petição), onde se inclui a parcela de terreno mencionada artigo 6º e propriedade da Autora;

b) Se declare que o contrato de arrendamento celebrado entre os antepossuidores do terreno e o Réu e nulo por vício de forma;

c) Se condene o Réu a restituir à Autora essa parcela livre e devoluta de pessoas e bens (fls. 2 a 7).

Contestou o Réu alegando, em síntese, que outorgou tal contrato de arrendamento e sempre pagou a respectiva renda, através de depósito a partir de Julho de 2002, obedecendo esse contrato às formalidade legais após a entrada em vigor, a 01-05-2000, do DL 64-A/2000, de 22-04, que deixou de exigir a forma de escritura pública para a sua celebração, sendo que o mesmo foi celebrado pelo prazo de um ano, renovável anualmente, além de que as partes quiseram celebrar um contrato-promessa de arrendamento para o caso de o arrendamento estar ferido de nulidade. Conclui pela improcedência da acção ou, a ser declarada a nulidade daquele contrato, ser o negócio celebrado entre o Réu e antepossuidor do prédio reivindicado convertido em contrato-promessa de arrendamento que confira ao Réu a detenção do prédio em questão (fls. 24 a 27).

A Autora replicou, mencionando que a declaração de nulidade do contrato de arrendamento não conduziria a outro efeito senão a restituição da parcela de terreno, concluindo pela improcedência da excepção (fls. 38 a 41).

No saneador conheceu-se da validade e regularidade da instância, tendo sido elencados os factos provados e elaborada a Base Instrutória.

Procedeu-se a julgamento acabando por ser proferida sentença que decidiu:

a) Reconhecer que o prédio identificado em 2) supra, nele incluída a parcela de terreno mencionada em 5) supra, é propriedade da Autora;

b) Julgar, quanto ao mais, a acção improcedente.

Daí o presente recurso de apelação interposto pela Autora, a qual no termo da sua alegação pediu que se revogue a sentença apelada.

Foram para tanto apresentadas as seguintes,

Conclusões.

1) O objecto do presente recurso restringe-se à matéria de direito, maxime, aos fundamentos invocados pelo Meritíssimo Juiz a quo para julgar improcedente o pedido de restituição à Autora e ora recorrente da parcela de terreno mencionada em 5. dos factos dados como provados, a qual, não obstante, se reconhece na referida sentença ser parte integrante do prédio rústico identificado em 2. dos factos dados como provados, encontra-se ocupada por um stand de automóveis e respectivo escritório, propriedade do Réu e ora recorrido e ser propriedade da Autora – vd. nº 3 do artigo 684º do CPC.

2) A sentença recorrida aplicou incorrectamente, por não estarem verificados os seus pressupostos, as disposições legais contidas nos artigos 293º e 334º do CC.

3) As partes previram a invalidade, conforme decorre claramente da cláusula 9ª do contrato de arrendamento – mencionado em 6. dos factos dados como provados e aí totalmente dado como reproduzido -, onde estabelecem que “todos os outorgantes se obrigam a reduzir o presente contrato a escritura pública, bastando para tanto que quaisquer dos outorgantes comunique aos restantes com pelo menos quinze dias de antecedência. 4) Sempre que a invalidade é prevista pelas partes, é impossível proceder a conversão do negócio jurídico, por falta de um dos requisitos exigidos pela lei – artigo 293 do Código Civil.

5) Ao considerar operante a conversão do aludido contrato de arrendamento para comércio e indústria, nulo por vício de forma, num contrato-promessa de arrendamento plenamente válido e eficaz entre as partes, sem estarem cumpridos todos os requisitos legais da conversão, o Meritíssimo Juiz a quo fez uma aplicação incorrecta e indevida do instituto consagrado pelo artigo 293º do Código Civil.

6) A apelante massa falida de A..., é uma entidade totalmente diversa, juridicamente e de facto, da que celebrou com o Réu e ora recorrido, um contrato de arrendamento para comércio ou indústria, sem atender as formalidades legais exigidas.

7) A apelante massa falida de A..., enquanto tal, apenas existe, como e dado por provado em 1) dos factos considerados assentes, desde 20 de Março de 2002.

8) A apelante apenas tomou conhecimento dos factos que vieram a motivar os presentes autos após 20 de Março de 2002, quando o seu liquidatário judicial procurava, no âmbito das suas funções, relacionar os bens da falida para poder proceder a sua posterior venda.

9) A apelante não tem nem teve, quaisquer responsabilidades no Incumprimento das formalidades legais a que estava sujeito, à data da sua celebração, o aludido contrato de arrendamento para comércio ou indústria.

10) A apelante agiu na estrita salvaguarda dos superiores interesses da falida e dos seus credores, seu principal escopo.

11) Aquele que se limita a exercer um direito que lhe assiste de reivindicar a restituição de determinado imóvel, ocupada por terceiros sem qualquer título válido que a legitime, não excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico do direito – artigo 334º do Código Civil.

12) Ao julgar ilegítima e abusiva a pretensão da Autora, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim económico desse direito, sem manifestamente o ser, o Meritíssimo Juiz a quo aplicou indevidamente o instituto do “abuso de direito”, consagrado pelo artigo 334º do CC.

Não houve contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

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2. FUNDAMENTOS.

O Tribunal deu como provados os seguintes,

2.1. Factos.

2.1.1. Em 20 de Março de 2002, por sentença já transitada em julgado, proferida nos autos de Processo de Falência no 938/2001, que correu os seus termos no 3° Juízo Cível do Tribunal Judicial de Aveiro, foi decretada a falência da A....

2.1.2. Na sequência do aí determinado, foi apreendido o prédio rústico sito na freguesia de Eixo, concelho de Aveiro, com a área de 6 570 m2, que confronta a norte com José da Cruz Marques e estrada, a sul com Manuel Marques dos Santos, a nascente com servidão e a poente com Abílio Tavares da Silva, inscrito na matriz predial rústica de Eixo sob o no 3149 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o nº 113/151185.

2.1.3. O qual adveio ao domínio da falida, sua dona e legítima possuidora, por escritura outorgada no Cartório Notarial de Espinho, em 28 de Março de 1996, pela qual C... e mulher D..., declararam vender à falida (sociedade A.... e esta declarou comprar, pelo preço de 850 000$00, o referido prédio.

2.1.4. Encontrando-se, desde 29 de Março de 1996, registado a favor da falida A....

2.1.5. O Réu ocupa parte do imóvel referido (em 2.1.2 supra), utilizando-o como Stand de automóveis, funcionando também aí os respectivos escritórios.

2.1.6. Em 1 de Março de 1993, por contrato escrito que se encontra junto aos autos (fls. 15 e 16, aqui dadas por reproduzidas), os então proprietários C... e mulher D..., deram de arrendamento ao Réu a parte do imóvel que este ocupa.

2.1.7. Na cláusula oitava desse contrato, ficou estipulado o seguinte: “Se o presente contrato vier a ser declarado nulo por falta de forma ou for atingido por qualquer meio na sua validade, declaram ambos os outorgantes, de forma clara e inequívoca, pretender que o mesmo produza todos os efeitos de contrato-promessa, procedendo-se para tanto às necessárias adaptações às pertinências legais, que se imponham ao tipo de negócio assim convertido”.

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2.2. O Direito.

Nos termos do preceituado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

- A acção de reivindicação e o respectivo alcance jurídico.

- Da conversão do contrato de arrendamento nulo por falta de forma em promessa de arrendamento.

- Reflexos no caso vertente da falência da senhoria A...., cuja massa falida é aqui Autora.

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2.2.1. A acção de reivindicação e o respectivo alcance jurídico.

A Autora, massa falida da sociedade A...., intentou acção de reivindicação contra o Réu pedindo que a) Se reconheça que o prédio identificado em 2.1.1. onde se inclui a parcela referida em 2.1.2. é propriedade da Autora; b) Se declare que o contrato de arrendamento celebrado entre os antepossuidores do terreno e o Réu é nulo por falta de forma; c) se condene o Réu a restituir à Autora essa parcela livre e devoluta de pessoas e bens.

Estamos perante uma acção de reivindicação prevista no artigo 1 311º do Código Civil. Dispõe tal normativo que “1. O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.

2. Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei”. Trata-se do meio clássico empregue pelo proprietário contra o detentor da coisa reivindicada e decompõe-se em duas partes: a pronuntiatio em que se reconhece o direito real da propriedade do Autor e a condemnatio em que se extraem contra o mero detentor as consequências daquele reconhecimento daquele direito real por excelência, condenando o detentor a entregar o objecto reivindicado. Tal só não sucederá, se o detentor alegar e provar um título que lhe permita continuar na posse do prédio. Daqui já se vê que de harmonia com o ónus da prova – artigo 342º do Código Civil – os factos constitutivos do direito do Autor traduzem-se na prova da propriedade do prédio cuja entrega peticiona e cuja entrega só poderá ser evitada contrapondo-lhe o Réu os factos impeditivos susceptíveis de obstar à entrega do prédio do prédio1.

Revertendo ao caso concreto, diremos que não está neste recurso em crise o problema da propriedade do prédio supra-referido e da parcela que nele se inclui e é objecto de controvérsia; adveio ao domínio da falida, sua dona e legitima possuidora, por escritura outorgada no Cartório Notarial De Espinho, em 28 de Março de 1996, pela qual C... e mulher D... declararam vender à falida (sociedade A... e esta declarou comprar, pelo preço de 850.000$00, o referido prédio. Encontra-se, aliás registado desde 29 de Março de 1996, a favor da falida A....), gozando assim da presunção, aliás não ilidida, a que alude o artigo 7º do Código de Registo Predial. Porém já o Réu contrapõe à entrega da parcela à ora Autora o facto de haver celebrado com C... e mulher cfr. doc. de fls. 15 ss., um contrato de arrendamento de uma parcela em 1 de Março de 1993, tendo vindo a ocupá-la desde aquela data. No entanto esse título é colocado em crise por parte do Autor que o qualifica como nulo, já que estando perante um contrato para arrendamento comercial, o mesmo face à redacção originária do artigo 7º nº 2 alínea b) do RAU teria que ser celebrado por escritura pública; a celebração por mero contrato verbal cfr. fls. 15 ss, viola uma norma imperativa legal e acarretaria a nulidade de tal contrato à face do que estatui o artigo 220º do Código Civil.

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2.2.2. Da conversão do contrato de arrendamento nulo por falta de forma em promessa de arrendamento.

À nulidade do contrato de arrendamento, contrapõe o Réu a tese da respectiva conversão, nos termos do artigo 293º do Código Civil “O negócio nulo ou anulado pode converter-se num negócio de tipo ou conteúdo diferente, do qual contenha os requisitos essenciais de substância e de forma, quando o fim prosseguido pelas partes permita supor que elas o teriam querido, se tivessem previsto a invalidade”.

Esta figura, que visando a protecção da autonomia privada das partes, procura salvaguardar tanto quanto possível a respectiva vontade no âmbito contratual, já era conhecida no Direito Romano em termos muito próximos dos actualmente vigentes na dogmática civil, podendo ali alguns negócios formalmente inválidos valer como negócios não formais2. O ordenamento jurídico vem em auxílio dos contraentes evitando o malogro de um negócio inviável quando qualificado de certa forma face à lei vigente e preserva-o subsumindo-o no Tatbestand, ou quadro conceitual de outro negócio que lhe é próximo, e que as partes teriam querido outorgar se tivessem previsto a invalidade. O fim prosseguido pelas partes permite à luz dos cânones interpretativos aplicáveis, que o negócio subsumido teria sido o eleito pelas partes, caso pudessem ter previsto a invalidade. Condição sine qua non é porém ainda, além da vontade dos contratantes, que o negócio contenha também os elementos indispensáveis para tanto e nomadamente que não contrarie em termos decisivos a vontade exteriorizada pelo declarante em relação à forma do negócio.

No caso vertente as partes pretenderam a conversão do contrato de arrendamento caso viesse a ser declarado nulo, em simples contrato promessa. Nos termos do artigo 410º nº 1 “À convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa”. O contrato-promessa cria assim a obrigação de emitir uma declaração de vontade correspondente ao contrato prometido. Entre o contrato-promessa e o prometido existe equiparação com as excepções previstas no normativo supracitado, sendo que uma delas é precisamente a forma. E no nº 2 do artigo em causa lê-se que “(…) a promessa respeitante à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, só vale se constar de documento assinado pela parte que se vincula ou por ambas, consoante o contrato-promessa seja unilateral ou bilateral”. No caso em análise, tendo o contrato sido celebrado por documento particular assinado pelos intervenientes, preenche os requisitos formais para que possa valer como contrato-promessa de harmonia com a pretensão dos mesmos.

Não se levantam de igual forma no caso vertente óbices relevantes à conversão dentro dos pontos aflorados que agora exijam um desenvolvimento mais alargado. Exceptua-se todavia uma questão erigida pela apelante como obstáculo fundamental: trata-se da existência da previsão da invalidade que no entender da Autora não pode perfilar-se por parte dos contratantes como uma certeza no momento da outorga do contrato, e o que em sua óptica flui dos termos do instrumento de fls. 24 ss. A lei com efeito, admite a conversão “quando o fim prosseguido pelas partes permita supor que elas o teriam querido, se tivessem previsto a invalidade”. Compreende-se em parte esta solução; na verdade, parece primo conspectu que não faz sentido outorgar um negócio que se sabe à partida ferido de nulidade. Esta solução foi aliás a erigida maioritariamente na vigência do Código de Seabra, na Jurisprudência e também na Doutrina com raras excepções3, sendo certo que se manteve ainda já no início da vigência do novo Código Civil, atenta desde logo a similitude da redacção dos preceitos correspondentes a esta problemática. Daí datarem já de 1971 os Acórdãos que o apelante convoca em abono da sua tese, omitindo toda a evolução que entretanto se registou nesta sede. Acompanhando a superação do conceptualismo formal no âmbito do negócio jurídico, que vem postulando de forma mais acentuada o princípio do favor negotii e subvaloração do ritualismo formalista, tem-se procurado, nomeadamente nesta sede, a convalescença contratual através da conversão do negócio, desde que a previsão de nulidade não se afigure como certeza inevitável, mas antes como uma probabilidade ainda que forte4. Mas a moderna Doutrina ainda aqui faz realçar o relevo da vontade das partes no sentido da conversão do negócio ferido de nulidade/anulabilidade, indiciada pela menção expressa de uma solução de validade do negócio em princípio afectado. Na verdade, o mesmo pode ter sido celebrado na base de um clima de confiança, o que foi nitidamente o caso vertente; por qualquer motivo as partes não reduziram logo o contrato a escrito e agiram no pressuposto de que nenhuma iria levantar o problema da nulidade formal, acordando, caso a mesma viesse a ser declarada, a respectiva validade como contrato-promessa de arrendamento adiantando ainda mais um cláusula (a 9ª), referindo que “todos os outorgantes se obrigam a reduzir o presente contrato a escritura pública, bastando para tanto que quaisquer dos outorgantes comunique aos restantes com pelo menos quinze dias de antecedência, mediante carta registada com aviso de recepção do local e hora da feitura do mesmo”. Aliás até a escritura pública deixou de ser exigida desde a entrada em vigor em 1-5-2000, do DL 64-A/2000 de 22-IV, pelo que desde então o contrato passou a revestir-se dos requisitos necessários à sua validade; e muito embora seja duvidoso que a lei abranja os contratos celebrados à data da sua entrada em vigor há arestos que o sustentam5.

De qualquer forma, na linha do moderno pensamento jurídico, o que efectivamente releva é a vontade séria de contrair um negócio que as partes contratantes celebraram, de molde a que ao arrendatário fosse cedido o prédio a troco de uma contrapartida mensal em numerário. A sobrevivência do acordo negocial foi por elas querida, ainda que na veste de contrato-promessa de arrendamento, o que se traduz num reiterar embora envolto noutra roupagem jurídico-conceitual do seu intuito de contratar. Como lapidarmente escreve Emílio Betti “o negócio ou elemento inválido ou ineficaz pode não obstante produzir os efeitos de um negócio ou tipo ou carácter diverso desde que a intenção prática pretendida das partes comporte esta diferente valoração jurídica e um critério objectivo como o da boa-fé exija um tratamento correspondente”6. Trata-se de uma orientação comum prevista e seguida neste particular pelos ordenamentos jurídicos europeus, nomeadamente o italiano e o alemão cujo artigo 140º do BGB que influenciou o actual Código Civil. Mas embora em ambos os ordenamentos jurídicos citados se mantenha a cláusula da conversão condicionada à previsão da nulidade pelas partes, o certo é que também ali o labor doutrinal aponta do sentido da sua interpretação no sentido que aqui também propugnamos7.

Em face do exposto, maxime da ponderação jurídica dos valores em causa, já se vê que aparece diminuída e reduzida a escassas e extremas hipóteses a relevância do conhecimento da invalidade negocial perante a consideração de valores como os da boa-fé contratual quando não estejam em chocante oposição aos da ordem jurídica.

Nesta conformidade entendemos estarem verificados in casu os pressupostos da conversão da promessa de contrato de compra e venda em contrato de arrendamento do prédio.

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2.2.3. Reflexos no caso vertente da falência da senhoria A..., cuja massa falida é aqui Autora.

Refere-se na sentença apelada que de qualquer forma sempre a presente acção intentada pela massa falida de A.... contra o ora Réu se traduziria numa violação do princípio da boa-fé, o qual é de conhecimento oficioso ainda que não invocado pelo Réu. Isto porque tendo a Autora adquirido tal imóvel quando tal parcela já se encontrava a ser ocupada pelo Réu ao abrigo daquele contrato, pagando a contraprestação devida, vir agora reivindicar tal parcela decorridos 11 anos fere a consciência jurídica e representa um abuso do direito.

Na sua alegação de recurso a recorrente contrapõe que não teve qualquer responsabilidade no incumprimento das formalidades legais subjacentes ao referido contrato de arrendamento, limitando-se a accionar os mecanismos legais em ordem a salvaguardar os direitos dos credores da falida. A apelante “massa falida” é uma entidade diferente da que celebrou com o Réu e ora recorrido um contrato de arrendamento para comércio ou indústria sem atender às formalidades legais.

Vejamos: Em nosso entender para além dos argumentos em prol do “abuso do direito” terem a sua razão de ser, certo é que não devemos esquecer que os contratos celebrados geram direitos e deveres, adquirindo uma dada fisionomia que se não houver alterações relevantes, não perdem só porque mudam os sujeitos. Assim o contrato celebrado entre C... e o ora Réu criou quanto à parcela de terreno que a massa falida da A.... reivindica, uma dada

configuração jurídica que não desapareceu quando o prédio onde a mesma se inclui foi vendido à sociedade. E o facto de esta última ser considerada falida não elimina o circunstancialismo criado pelo negócio que incidiu sobre a parcela; a massa falida sucede na relação jurídica existente que é presumivelmente a mesma que foi criada na data da realização do contrato entre os senhorios (aliás os sócios da A...) e o ora Réu. Trata-se de uma sucessão numa posição jurídica que não é lícito escamotear. Nesta conformidade é lícito ao Réu opor à massa falida e ao seu administrador os meios de defesa emergentes do contrato de arrendamento que realizou, já que os mesmos não sofreram alteração. Segue-se daí que todas as considerações expendidas, nomeadamente as que dizem respeito à conversão do negócio jurídico são oponíveis à massa falida8. Mas saliente-se que sempre em última análise o princípio da boa-fé paralisaria a pretensão da ora Autora, já que repugna à consciência jurídica fazer tábua rasa de 11 anos de vigência de uma situação fáctica de “contrato de arrendamento” regular com o pagamento e aceitação de rendas.

Assim e embora com fundamentação não coincidente, terá que ser confirmada a sentença apelada.

Poderá concluir-se o seguinte:

1) Um contrato promessa de arrendamento não caduca necessariamente com a declaração de falência, nomeadamente do outorgante locador.

2) Intentada acção de reivindicação pela massa falida de uma sociedade, pode o Réu defender-se nomeadamente com a existência de um contrato promessa de arrendamento.

3) Tal contrato pode resultar da conversão de um contrato de arrendamento para fins industriais nulo por falta de forma, desde que estejam preenchidos os requisitos que a lei faz depender para que se possa operar tal conversão.

4) A massa falida sucede, decretada que seja a falência, na relação jurídica existente que é presumivelmente a mesma que foi criada na data da realização do contrato entre os outorgantes senhorios (aqui os sócios da falida) e o ora Réu.

5) Nesta conformidade é lícito ao Réu opor à massa falida e ao seu administrador os meios de defesa emergentes do contrato que realizou, nomeadamente os que dizem respeito à conversão do negócio jurídico.

6) Repugna à consciência jurídica sendo assim ofensivo do princípio da boa-fé, fazer tábua rasa de 11 anos de vigência de uma situação fáctica de “contrato de arrendamento” regular com o pagamento e aceitação de rendas, sendo tal facto susceptível de paralisar a reivindicação do prédio ocupado.

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3. DECISÃO.

Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente confirmando assim a sentença apelada.

Custas pelo apelante.