Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1283/06.8TBAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HÉLDER ROQUE
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
MORA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
Data do Acordão: 02/12/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ÁGUEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 442º, Nº 2; 798º, 799º, 804º, Nº 2 E 808º, Nº 1 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. A mora do devedor não permite, por via de regra, com ressalva da existência de convenção em contrário, a imediata resolução do contrato, a menos que se transforme em incumprimento definitivo, o que pode acontecer se lhe sobrevier a impossibilidade da prestação, se o credor perder o interesse na mesma, ou, finalmente, em consequência da inobservância do prazo suplementar e peremptório que o credor fixe, razoavelmente, ao devedor relapso.
2. A perda do interesse do credor significa o desaparecimento objectivo da necessidade que a prestação visa satisfazer, o que não acontece, no comum das obrigações pecuniárias, em que a prestação devida, não obstante a mora do devedor, continua a revestir todo o interesse para o credor.
3. Só com a fixação expressa de um termo essencial para o cumprimento, no respectivo contrato-promessa, ou com a alegação desse facto, na petição inicial, a obrigação deve ser, necessariamente, cumprida, no prazo fixado, sob pena de se tratar de um negócio de prazo, geralmente fixo, em que a impossibilidade temporária do cumprimento, na data estabelecida, não vale como impossibilidade definitiva, determinante da extinção da obrigação, sendo a prestação posterior ainda possível, não equivalendo a falta da prestação debitória ao não cumprimento definitivo.
4. Nos contratos bilaterais, o direito de resolução funciona, como uma constante, nos casos de incumprimento definitivo do devedor, em que a prestação já não é possível, enquanto que, nas hipóteses de mora, onde a prestação ainda pode ser realizada, a resolução está condicionada pela perda do interesse para o credor ou pelo decurso de um novo prazo razoável.
5. A perda do sinal encontra-se, indissoluvelmente, ligada à resolução ou desistência do contrato, ou, pelo menos, ao seu não cumprimento definitivo, e não à mora.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


M….., residente no Bairro ……, Águeda, propôs a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra “A……. Ldª”, com sede na Rua ……, pedindo que, na sua procedência, a ré seja condenada a pagar à autora a importância de 20000,00€, correspondente ao dobro do que prestou, acrescida de juros de mora legais, desde a citação até efectivo pagamento, invocando, para tanto, e, em síntese, que celebrou com a ré um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel, entregando a esta, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de 10000,00€, sendo certo que, não obstante a escritura do contrato definitivo dever ter sido celebrada, até 30 de Outubro de 2003, e incumbindo à ré a sua marcação e convocação da autora, não o efectuou, acabando por vender o prédio a terceiro, em 17 de Dezembro de 2003.
Na contestação, a ré alega que a autora apenas entregou, a título de sinal, um cheque, no montante de 10000,00€, que, por não ter obtido provisão, foi desdobrado em outros dois cheques, no valor individual de 50000,00€, sendo que apenas um deles obteve cobertura, pelo que, em consequência, resolveu o contrato-promessa, em 13 de Agosto de 2003, através de carta registada com aviso de recepção.
Na réplica, a autora alega que consignou em depósito, numa conta, a favor da ré, a quantia de 5000,00€, alusiva ao segundo cheque que não obtivera provisão, facto este de que deu conhecimento à ré.
A sentença julgou a acção, parcialmente procedente, e, em consequência, condenou a ré a pagar à autora a quantia de 10000,00€, acrescida de juros moratórios vencidos, desde 3 de Maio de 2006, e vincendos, até integral pagamento, calculados à taxa de 4% ao ano, absolvendo-a do demais.
Desta sentença, a ré interpôs recurso de apelação, terminando as alegações com o pedido da sua revogação, formulando as seguintes conclusões:
1ª – As questões resolvidas pela decisão do tribunal a quo e de cuja resposta se discorda por incorrectamente decididas são, fundamentalmente, as de saber, por um lado, se a apelada tem direito ao sinal em dobro que reclama e por outro lado, a de saber se a apelante podia resolver o contrato-promessa.
2ª – A sentença recorrida considera que existe incumprimento da apelante e que este consiste em ter vendido a fracção a terceiros, já assim não considera ter existido incumprimento da apelada, mas simples mora.
3ª – Uma correcta apreciação dos factos provados integrantes do comportamento da apelada deveria conduzir a enquadrá-lo como incumprimento definitivo do contrato e não simples mora.
4ª - Nomeadamente, a decisão a quo não valora os factos e a questão, aliás, da maior relevância, que se prendem com o pagamento do sinal feito com os cheques sem provisão pela apelada.
5ª – Do ponto anterior decorre que (erradamente) na sentença não se vê justificação para a resolução do contrato por banda da apelante.
6ª – Da aplicação dos princípios gerais de direito, particularmente, dos artigos 808º do CC ao caso, facilmente se encontra motivação para a resolução do contrato.
7ª – A vasta jurisprudência citada pela decisão, pretendendo ser o seu suporte, mantém toda a sua relevância e merecendo-nos o maior respeito, mas não tem aplicação à factualidade em apreciação.
8ª – Ao julgar procedente a acção proposta pela apelada o tribunal de 1ª instância violou manifestamente o artigo 442º, nº 2, do CC.
A autora não apresentou contra-alegações.
Na sentença apelada, declararam-se demonstrados, sem impugnação, os seguintes factos, que este Tribunal da Relação aceita, nos termos do estipulado pelo artigo 713º, nº 6, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:
Por escrito particular datado de 21 de Fevereiro de 2003, a ré prometeu vender à autora e esta prometeu comprar-lhe, livre de quaisquer ónus ou encargos, a fracção autónoma a designar pela letra “M”, destinada a habitação, correspondente a um T1+1, composta por um hall de entrada, um hall de distribuição, uma sala comum, uma cozinha, uma marquise, um quarto, um escritório, uma casa de banho, uma varanda, no primeiro andar, e ainda uma garagem fechada na cave, designada com o nº 21, no bloco III do prédio composto de rés-do-chão, 1º e 2º andares, sótão e logradouro, na altura em construção no lote de terreno, sito em Póvoa da Carvalha, freguesia de Recardães, concelho de Águeda, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 01465 – A).
O preço estipulado foi de 68584,71€ - B).
Consta do documento de folhas 6 e seguintes que, a título de sinal e princípio de pagamento do preço, a ré “recebe da promitente compradora (…) a quantia de 10000,00€ (…), da qual dá (à segunda outorgante) plena quitação” – C).
Mais consta do documento de folhas 6 e seguintes que o pagamento da parte restante do preço seria efectuado, no acto da outorga da escritura pública de compra e venda, que deveria ser celebrada, no Cartório de Águeda, até 30 de Outubro de 2003, incumbindo à ré o encargo da respectiva marcação e de comunicação à autora, com a antecedência mínima de 10 dias, do mês, dia e hora da respectiva celebração – D).
Por escrito particular, datado de 10 de Setembro de 2003, a ré prometera vender a N…. e a M….., e estes prometeram comprar-lhe, pelo preço de 72326,00€, a fracção autónoma, referida em A), tendo recebido, a título de sinal, a quantia de 5000,00€, nos termos constantes dos documentos de folhas 15 e seguintes – E).
Por escritura pública de compra e venda, celebrada em 17 de Dezembro de 2003, os gerentes da ré, F….. e A……, declararam vender aos referidos N……e M….., pelo preço de 72326,00€, que declararam ter recebido, a dita fracção autónoma, designada pela letra “M”, habitação no bloco B três – T1, no primeiro andar esquerdo e garagem na cave, identificada pela letra “M”, do prédio urbano, sito em Póvoa da Carvalha, freguesia de Recardães, concelho de Águeda, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 2907, omisso na respectiva matriz – F).
Em 21 de Fevereiro de 2003, a autora entregou à ré o cheque nº 0517166923, com a data de 30 de Março de 2003, para pagamento da quantia de 10000,00€, mencionada em C), tendo solicitado aos sócios-gerentes da ré que o apresentassem a pagamento, apenas, nessa data – G).
Apresentado tal cheque a pagamento, foi o mesmo devolvido, por falta de provisão – H).
Autora e ré acordaram na substituição daquele cheque por outros dois, cada um deles titulando a quantia de 5000,00€, que tinham sido emitidos por uma pessoa que a autora disse ser sua amiga – I).
Apresentado um desses cheques a pagamento, foi o mesmo devolvido, por falta de provisão – J).
Na sequência do descrito em H) e J), a ré enviou à autora carta registada com aviso de recepção, datada de 13 de Agosto de 2003, que a aurora recebeu, em 18 de Agosto de 2003 – K).
Em Novembro de 2003, o apartamento prometido vender à autora estava pronto, faltando, apenas, pequenos acabamentos no prédio – 3º.
A ré nunca convocou a autora para a celebração da escritura pública – 5º.
A ré não devolveu o cheque de 10000,00€, à autora – 10º.
Um dos cheques, mencionados em I), foi pago, em 24 de Junho de 2003 – 11º.
Em 29 de Agosto de 2003, a conta do cheque, referido em I), foi aprovisionada com 5000,00€ - 13 e 14º.

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Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir, na presente apelação, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do CPC, são as seguintes:
I – A questão de saber se a mora do promitente comprador se transformou em incumprimento definitivo, susceptível de permitir ao promitente vendedor obter a resolução do contrato-promessa, com a consequente faculdade de fazer sua a quantia entregue, a título de sinal.
II – A questão de saber se o promitente comprador tem direito a receber o sinal em dobro.

DO INCUMPRIMENTO DEFINITIVO

Efectuando uma síntese do essencial da factualidade que ficou consagrada, com vista à decisão do objecto da apelação, importa reter que, no dia 21 de Fevereiro de 2003, a ré prometeu vender à autora que, por seu turno, lhe prometeu comprar a fracção autónoma do prédio em discussão, pelo preço de 68584,71€, tendo esta entregue, no acto, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de 10000,00€, representada por cheque, com a data de 30 de Março de 2003, solicitado à ré que o apresentasse a pagamento, apenas, nessa ocasião, enquanto que o pagamento da restante parte do preço seria efectuado, no acto da outorga da escritura pública de compra e venda, que deveria ser celebrada, até 30 de Outubro de 2003, incumbindo à ré o encargo da respectiva marcação e comunicação à autora.
Porém, apresentado esse cheque a pagamento, foi o mesmo devolvido, por falta de provisão, tendo, então, a autora e a ré acordado na sua substituição por outros dois cheques, cada um deles titulando a quantia de 5000,00€, sendo certo que, apresentado um deles a pagamento, foi devolvido, por falta de provisão, pelo que a ré enviou à autora uma carta registada com aviso de recepção, datada de 13 de Agosto de 2003, em que a informava de que, por esse meio, vinha resolver o contrato-promessa, considerando que, a partir da data da recepção, ocorrida a 18 de Agosto de 2003, se encontravam, definitivamente, desvinculadas do negócio.
Entretanto, um dos dois cheques desdobrados havia sido pago, em 24 de Junho de 2003, enquanto que a importância referente ao segundo, no montante de 5000,00€, foi aprovisionada, em 29 de Agosto de 2003, na mesma conta de onde fora sacado aquele primeiro cheque de 5000,00€.
Seguidamente, a ré, por escrito particular, datado de 10 de Setembro de 2003, prometeu vender a N….. e a M….., e estes prometeram comprar-lhe, pelo preço de 72326,00€, a fracção autónoma em análise, tendo recebido, a título de sinal, a quantia de 5000,00€, sendo certo, outrossim, que, mediante escritura pública, celebrada em 17 de Dezembro de 2003, vendeu aqueles, pelo mencionado preço, a dita fracção autónoma.
A ré não convocou a autora para a celebração da escritura pública, que se deveria realizar, até 30 de Outubro de 2003, mas cujo encargo de marcação e comunicação à autora lhe incumbia, nem lhe devolveu o cheque de 10000,00€.
Sustenta a ré que a correcta apreciação dos factos provados integrantes do comportamento da autora deveria conduzir ao respectivo enquadramento na figura do incumprimento definitivo do contrato e não da simples mora, determinante da justeza da sua motivação para a resolução do contrato.
O não cumprimento da obrigação vem a ser a situação objectiva que consiste na falta de realização da prestação debitória, com a consequente insatisfação do interesse do credor, independentemente da causa de onde a omissão procede Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 2ª edição, 1974, 59..
Por seu turno, no âmbito da responsabilidade contratual, o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado, tornando-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor, desde que falte, culposamente, ao seu cumprimento, nos termos das disposições combinadas dos artigos 762º, nº 1 e 798º, do Código Civil (CC).
A isto acresce que existem três modalidades de não cumprimento das obrigações, quanto ao efeito ou resultado produzido, ou seja, a falta de cumprimento ou incumprimento definitivo, a mora e o cumprimento defeituoso ou imperfeito.
A mora do devedor não permite, por via de regra, com ressalva da existência de convenção em contrário, a imediata resolução do contrato, a menos que se transforme em incumprimento definitivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 801º, 802º e 808º, nº 1, todos do CC, o que pode acontecer se lhe sobrevier a impossibilidade da prestação, se o credor perder o interesse na mesma, que se afere em função da utilidade que a prestação para ele teria, embora atendendo a elementos susceptíveis de valoração pela generalidade das pessoas, justificada por um critério de razoabilidade própria do comum das pessoas Baptista Machado, RLJ, Ano 118º, 55; e Almeida Costa, RLJ, Ano 124º, 95 e 96., ou, finalmente, em consequência da inobservância do prazo suplementar e peremptório que o credor fixe, razoavelmente, ao devedor relapso.
Afastada que está, de todo, face à prova produzida, a hipótese do cumprimento defeituoso, porquanto a prestação debitória, a cargo da promitente compradora, continua em falta, muito embora esta tenha aprovisionado a conta da ré, com a importância de 5000,00€, com a qual perfaria a única prestação vencida, resta considerar os termos da alternativa subsistente, isto é, a falta de cumprimento ou a mora, sendo certo que, uma vez definida a modalidade do não cumprimento das obrigações aplicável ao caso, importa ainda averiguar se o devedor actuou com culpa, ou seja, fixar a causa da falta da respectiva prestação.
A falta de cumprimento, também designada como impossibilidade da prestação ou não cumprimento definitivo, tem lugar, tão-só, em três situações tipificadas, encontrando-se a primeira, prevista nos artigos 801º e 802º, que ocorre quando a prestação deixou de ser executada, no devido tempo, e já não pode ser cumprida, por se ter tornado impossível, total ou parcialmente, a segunda, quando a prestação, sendo ainda, materialmente possível, perdeu todo o interesse para o credor, e a terceira, também, como a segunda, no pressuposto da mora, quando a prestação não for realizada dentro do prazo que, razoavelmente, for fixado pelo credor, com consagração no artigo 808º, nº 1, todos do CC.
A primeira situação é, liminarmente, de rejeitar, porquanto a omissão do pagamento parcial do preço correspondente ao valor acordado para a venda do prédio traduz-se, como é óbvio, numa prestação, material e objectivamente, possível.
Relativamente à segunda situação, a perda do interesse para o credor, na prestação em mora pelo devedor, é apreciada, objectivamente, em conformidade com o disposto pelo artigo 808º, nº 2, do CC, não sendo uma mera decorrência do novo prazo resultante da moratória acordada ou concedida entre as partes.
Efectivamente, constituem realidades distintas a perda absoluta, completa, do interesse na prestação, e a mera diminuição ou redução de tal interesse, traduzida, por via de regra, no desaparecimento da necessidade que a prestação visa satisfazer.
A perda do interesse do credor significa que, para este, o fim da obrigação já se não traduz em obter a prestação do devedor moroso, entregando, em troca, a sua contraprestação, mas antes no desaparecimento objectivo da necessidade que a prestação visa satisfazer Antunes Varela, RLJ, Ano 118º, 55 e 56 e nota 3; Pessoa Jorge, Lições de Direito das Obrigações, 1966, 102..
Porém, no comum das obrigações pecuniárias, que é a hipótese que aqui interessa considerar, a prestação devida, não obstante a mora do devedor, continua a revestir todo o interesse para o credor STJ, de 21-5-98, BMJ nº 477, 460 e ss., a folhas 469..
A isto acresce, no sentido da não verificação da situação da perda do interesse do credor, que a ré não alegou, na contestação, e, consequentemente, não se demonstrou, que a observância do prazo fixado no contrato-promessa lhe era essencial e que, portanto, já não tinha interesse na respectiva prestação retardada.
Efectivamente, há casos em que, não sendo a prestação efectuada, dentro de certo prazo, seja qual for a razão do não cumprimento, a obrigação se considera, definitivamente, não cumprida, o que acontece, em geral, quando a demora no cumprimento faz desaparecer o interesse do credor na prestação, designadamente, nas situações em que, expressa ou tacitamente, neste caso, através da finalidade atribuída à prestação, as partes fixaram um termo essencial para o cumprimento, findo o qual o credor não se considera vinculado a aceitar a prestação, com o fundamento em que esta já lhe não interessa Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 2ª edição, 1974, 76 e 77. .
No caso em análise, não obstante as partes terem fixado um termo para o cumprimento, o mesmo não pode ser considerado essencial, quer, expressamente, uma vez que nada estipularam, nesse sentido, no respectivo contrato-promessa, nem sequer, como já se referiu, a ré alegou esse facto, na contestação, quer, tacitamente, porquanto tal não se infere, manifestamente, da finalidade que as partes atribuíram à contra-prestação convencionada.
Trata-se, com efeito, não de um negócio de prazo, absolutamente fixo, ou de um negócio fixo, impróprio ou absoluto, em que a obrigação deve ser, necessariamente, cumprida, no prazo fixado, e não mais tarde, e em que a impossibilidade temporária do cumprimento, na data estabelecida, vale como impossibilidade definitiva, determinante da extinção da obrigação, mas antes de um negócio de prazo, geralmente fixo, em que a determinação do prazo, apenas tem o alcance de se convencionar a sua perfeita observância, de modo a que a prestação posterior ainda seja possível, no qual a falta da prestação debitória não equivale ao não cumprimento definitivo, nem a respectiva impossibilidade transitória, no tempo fixado, extingue a obrigação, se não for cumprida nesse prazo Vaz Serra, Impossibilidade Superveniente por Causa não Imputável ao Devedor e Desaparecimento do Interesse do Credor, BMJ nº 46, 63 a 65; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 2ª edição, 1974, 72 e 77 e nota 2; STJ, de 4-11-06, Revista nº 06A3613. .
Porém, a mora converte-se ainda em não cumprimento definitivo da obrigação, se esta não for realizada dentro do prazo que, razoavelmente, for fixado pelo credor, através da interpelação admonitória, prevista no artigo 808º, nº 1, do CC, tendente à resolução do contrato bilateral.
Esta interpelação deve conter uma intimação formal dirigida ao devedor moroso para que cumpra a sua obrigação, dentro de certo prazo determinado, sob pena de se considerar o seu incumprimento como definitivo Baptista Machado, Pressupostos da Resolução por Incumprimento, Estudos em Homenagem ao Prof. Teixeira Ribeiro, 382; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 2ª edição, 1974, 109, 110 e 119. .
Por isso, não se está, no caso «sub judice», perante uma situação de impossibilidade da prestação ou de incumprimento definitivo, mas antes de retardamento da prestação ou de «mora debitoris», com base no estipulado pelos artigos 801º e 804º, sendo certo que a ré não demonstrou, como lhe competia, atento o disposto pelos artigos 342º, nº 2 e 799º, todos do CC, a ausência de culpa.
Verificam-se, pois, todos os requisitos consagrados pelo artigo 804º, do CC, para a existência da mora, ou seja, o retardamento, imputável ao devedor, do cumprimento da prestação, embora subsistindo a possibilidade futura do mesmo.
Assim, não se tratando, «in casu», de uma hipótese de impossibilidade da prestação, imputável ao devedor, deparavam-se à ré duas vias, no sentido de ultrapassar o diferendo, isto é, ou procurava demonstrar a perda automática do seu interesse na concretização do contrato, ou, entendendo que à autora ainda era lícito o seu cumprimento, interpelava-a, para o efeito, de acordo com o preceituado pelo artigo 808º, nº 1, 2ª parte, do CC.
Por isso, na ausência de uma situação ostensiva de incumprimento definitivo, imputável à autora, que se não demonstrou, a mora em que esta incorreu, pode converter-se em incumprimento definitivo, designadamente, através da perda do interesse do credor na prestação, objectivamente apreciada, nos termos do estipulado pelo artigo 808, nº 2, do CC, mas, também, em resultado da inobservância do prazo suplementar que o credor fixou, criteriosamente, ao devedor relapso, e que este não cumpriu.
O direito de resolução do contrato, que decorre do disposto nos artigos 801º, nº 2 e 432º, nº 1, do CC, é admitido com fundamento na lei ou em convenção.
Com efeito, o direito de resolução, que se traduz num poder optativo, unilateral e potestativo de extinção do contrato, válido face ao aparecimento de condições posteriores à sua celebração que venham a frustrar os fins que as partes pretendiam atingir ao contratarem STJ, de 29-10-1996, Poc. nº 429/96, 1ª secção, http://www.telepac.pt/stj, funciona, nos contratos bilaterais, sem mais, como uma constante, nos casos de impossibilidade culposa do devedor, isto é, em situações de incumprimento definitivo STJ, de 29-11-2001, Rev. nº 3388/01, 7ª secção, http://www.cidadevirtual.pt/stj/jurisp/bol55civel.html, enquanto que, nas hipóteses de mora, em que a prestação é ainda possível, a resolução actua já como uma possibilidade, dependente do tratamento e conversão do artigo 808º, do CC, o que significa que pode funcionar, desde que condicionada aos pressupostos deste normativo, já analisados, ou seja, a perda do interesse para o credor, ou, após o decurso de um novo prazo razoável, considerando-se, em qualquer deles, para todos os efeitos legais, como não cumprida a obrigação.
Na hipótese do não cumprimento definitivo, a prestação já não é possível, pelo que se compreende a resolução do contrato bilateral, uma vez que a contraprestação perdeu a sua razão de ser, enquanto que, ao contrário, no caso de mora, a prestação ainda pode ser realizada, razão pela qual nem sempre e, desvinculadamente, mas antes, de forma qualificada ou condicionada, se pode atribuir ao credor o direito de o resolver, a menos que inexista interesse da sua parte, na prestação, situação esta mais próxima do incumprimento definitivo do que da mora, pois que, se o interesse existe, então, o contrato não deve ser resolvido, com base na simples mora do devedor, antes de se conferir a este a oportunidade de o impedir, cumprindo-o, através da concessão de um prazo razoável Vaz Serra, Mora do Devedor, BMJ, nº 48, 251, 254 e 255; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 2ª edição, 1974, 63, nota 1, e 115, nota 1; Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7ª edição, revista e actualizada, 1997, 454 e 455..
Revertendo ao caso em análise, não se demonstrou que a ré tenha comunicado à autora que pretendia que esta concretizasse o pagamento da prestação vencida, a 30 de Março de 2003, em prazo definido, sob pena de, se tal não acontecesse, se considerar, para todos os efeitos, não cumprida a obrigação, com a consequente perda de todo o interesse na celebração do negócio.
Efectivamente, a autora efectuou o pagamento do quantitativo de 5.000,00€, alusivo ao cumprimento parcial do sinal, em 24 de Junho de 2003, tendo ainda aprovisionado, em 29 de Agosto de 2003, a mesma conta de onde fora sacado aquele primeiro cheque de 5000,00€, com a importância remanescente, no montante de 5000,00€.
Quer isto dizer que a autora já havia realizado o pagamento parcial do sinal e disponibilizado os meios pecuniários indispensáveis para a sua conclusão, na conta bancária de onde deveria provir o pagamento do segundo cheque de 5000,00€, quando procedeu à resolução do contrato-promessa, sem haver, previamente, antecipado à autora o cenário dessa hipotética situação, e sem que a mesma faculdade se encontrasse contemplada naquele documento.
Entretanto, a ré, a quem incumbia a convocação da autora para a celebração da escritura pública, que se deveria realizar, até 30 de Outubro de 2003, prometeu vender a outrem, em 10 de Setembro de 2003, pelo preço de 72326,00€, a fracção autónoma em apreço, tendo recebido, a título de sinal, a quantia de 5000,00€, sendo certo, outrossim, que, mediante escritura pública, celebrada em 17 de Dezembro de 2003, vendeu ao mesmo, pelo mencionado preço, a dita fracção autónoma.
Como assim, é, de todo, irrazoável a pretensão da ré em ver, validamente, resolvido o contrato-promessa de compra e venda que celebrara com a autora.
Efectivamente, sustentando o incumprimento do contrato-promessa e a improcedência da presente acção, a ré alcançaria uma vantagem patrimonial substancial, porquanto obteve um acréscimo de preço com a venda realizada a outrem, em relação ao contrato prometido à autora, de 3741,29€, recebendo daquele o sinal de 5000,00€, em vez de 10000,00€, quando, então, a autora já lhe havia disponibilizado os meios pecuniários bastantes para pagar a totalidade do sinal acordado.
Afigura-se bastante óbvio que a ré, na expectativa da venda da fracção por um preço bastante superior, se tenha esquecido do sinal pago pela autora, mesmo que parcial, muito embora, porém, igual aquele que os novos promitentes compradores lhe entregaram, subestimando o facto de a autora ter provido a conta bancária sacada da importância necessária para satisfazer o valor do segundo cheque.
Assim sendo, não se verifica qualquer uma das modalidades possíveis de não cumprimento definitivo da obrigação.
Por outro lado, a simples mora, atraso ou retardamento da prestação, constitui-se quando o devedor, por causa que lhe seja imputável, não efectuou a prestação, no tempo devido, sendo ainda possível, por continuar, no essencial, a corresponder ao interesse do credor, nos termos do estipulado pelo artigo 804º, nº 2, do CC.
Ora, sendo ainda, materialmente possível, o pagamento integral do preço acordado, como já se demonstrou e a autora pretendia, e correspondendo, também, a prestação ao interesse da ré, que nada alegou em contrário, e, inclusivamente, vendeu a fracção autónoma a terceiro, configura a hipótese em causa uma situação de mora da prestação debitória.
Assim sendo, não se verifica, no caso em apreço, qualquer uma das situações que permitem ao credor transformar a mora em incumprimento definitivo e, consequentemente, resolver o contrato-promessa e fazer sua a coisa entregue, a título de sinal.
Ora, inexistindo fundamento, legal ou convencional, para o exercício do direito de resolução, está-se perante uma situação de recusa de cumprimento, em que a ré incorreu, ao negar-se a celebrar com a autora o contrato prometido.
Efectivamente, a perda do sinal encontra-se, indissoluvelmente, ligada à resolução ou desistência do contrato, ou, pelo menos, ao seu não cumprimento definitivo, e não à mora.
Na verdade, o artigo 442º, nº 2, do CC, continua a associar a perda do sinal ao facto de a pessoa que o constitui ter deixado de cumprir a obrigação, como decorre, igualmente, embora com recurso a fórmulas afins, tais como “falta de cumprimento” e “não cumprimento da obrigação”, do texto dos artigos 798º, 799º, 804º, nº 2 e 808º, nº 1, todos do CC, que apontam aquela consequência para a situação do não cumprimento definitivo e não para o simples retardamento no cumprimento da obrigação.
Portanto, a mora no cumprimento contratual não envolve a perda do sinal, embora possa arrastar consigo outras consequências Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 303 e ss.; e Sinal e Contrato-Promessa, 11ª edição, 118 e ss.; Januário Gomes, Temas de Contrato-Promessa, 15; STJ, de 23-3-07, Revista nº 07A543; de 14-11-06, Revista nº 06A3613; de 14-11-06, Revista nº 06A3344; de 14-9-06, Revistas nº 06B2117; de 29-11-06, Revista nº 06A3723 e de 9-2-06, Revista nº 05B4093; Antunes Varela, RLJ, Ano 119º, 215 a 217; em sentido contrário, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 8ª edição, 350 e 351; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª edição, 423..
Não procedem, pois, com o devido respeito, as conclusões constantes das alegações da ré.

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CONCLUSÕES:

I - A mora do devedor não permite, por via de regra, com ressalva da existência de convenção em contrário, a imediata resolução do contrato, a menos que se transforme em incumprimento definitivo, o que pode acontecer se lhe sobrevier a impossibilidade da prestação, se o credor perder o interesse na mesma, ou, finalmente, em consequência da inobservância do prazo suplementar e peremptório que o credor fixe, razoavelmente, ao devedor relapso.
II - A perda do interesse do credor significa o desaparecimento objectivo da necessidade que a prestação visa satisfazer, o que não acontece, no comum das obrigações pecuniárias, em que a prestação devida, não obstante a mora do devedor, continua a revestir todo o interesse para o credor.
III - Só com a fixação expressa de um termo essencial para o cumprimento, no respectivo contrato-promessa, ou com a alegação desse facto, na petição inicial, a obrigação deve ser, necessariamente, cumprida, no prazo fixado, sob pena de se tratar de um negócio de prazo, geralmente fixo, em que a impossibilidade temporária do cumprimento, na data estabelecida, não vale como impossibilidade definitiva, determinante da extinção da obrigação, sendo a prestação posterior ainda possível, não equivalendo a falta da prestação debitória ao não cumprimento definitivo.
IV – Nos contratos bilaterais, o direito de resolução funciona, como uma constante, nos casos de incumprimento definitivo do devedor, em que a prestação já não é possível, enquanto que, nas hipóteses de mora, onde a prestação ainda pode ser realizada, a resolução está condicionada pela perda do interesse para o credor ou pelo decurso de um novo prazo razoável.
V – A perda do sinal encontra-se, indissoluvelmente, ligada à resolução ou desistência do contrato, ou, pelo menos, ao seu não cumprimento definitivo, e não à mora.

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DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em confirmar, inteiramente, a douta sentença recorrida.

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Custas da apelação, a cargo da ré “A……, Ldª”.