Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3947/08.2TJCBR-L.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: INSOLVÊNCIA
PEDIDO
EXONERAÇÃO
PASSIVO
TEMPESTIVIDADE
Data do Acordão: 12/10/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MONTEMOR-O-VELHO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: 1.ª PARTE DO N.º 1 DO ART.º 236.º E ALÍNS. A), B) A G) DO N.º 1 DO ART.º 238.º DO CIRE
Sumário: a) – A apresentação fora de prazo, causa de indeferimento liminar, do pedido de exoneração do passivo restante a que alude a alín. a) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE reporta-se à apresentação após a realização da assembleia de apreciação do relatório do administrador da insolvência;

b) – O decurso do prazo de 10 dias a contar da citação a que se reporta a 1.ª parte do n.º 1 do art.º 236.º do CIRE não preclude a possibilidade de o devedor apresentar o requerimento de exoneração até ao termo daquela assembleia;

c) – Nessa circunstância, o juiz decide por sua livre decisão e mais amplamente do destino desse pedido, em função dos dados substanciais constantes do processo sobre o mérito do comportamento dos devedores, v. g., os que se reportam às diversas alíns. b) a g) do n.º 1 daquele art.º 238.º e da posição assumida pelos credores e pelo administrador da insolvência na assembleia de apreciação do relatório.

Decisão Texto Integral: Decide-se singularmente no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

A... e B...., na acção com forma de processo especial de insolvência que a credora “C.....”, contra eles requereu no TJ da comarca de Montemor-o-Velho, deduziram procedimento de exoneração do passivo restante após terem sido notificados da sentença que os declarou em situação de insolvência e antes da realização da assembleia de credores para apreciação do relatório do administrador de insolvência.

Nessa assembleia quer os credores presentes, quer o administrador da insolvência pronunciaram-se pelo indeferimento do requerido fosse por extemporaneidade, fosse por inobservância dos necessários requisitos legais, v. g., violação do dever de apresentação à insolvência por parte dos requerentes.

Mediante despacho exarado em acta dessa assembleia, a Ex.ma Juíza, com fundamento em que o pedido fora formulado muito para além do prazo de 10 dias que decorreu entre a citação e o termo da assembleia, alegadamente ao abrigo do disposto na alín. a) do n.º 1 do art.º 238.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), indeferiu liminarmente o pedido, por ter sido apresentado fora de prazo.

Inconformados com o assim decidido, recorreram os requerentes, em cujas alegações formularam as seguintes úteis conclusões:

a) – A questão nuclear do presente recurso centra-se em saber se se mostram preenchidos os pressupostos exigidos pelo art.º 238.º, n.º 1, alín. a) do CIRE ou se, pelo contrário, deveria ter sido proferido o despacho inicial consignado no n.º 1 do seu art.º 239.º;

b) – A iniciativa do processo de insolvência não pertenceu aos recorrentes, mas à sociedade “C....., pelo que, de harmonia com o art.º 236.º do CIRE, o requerimento de exoneração do passivo restante deveria ser apresentado nos 10 dias posteriores à sua citação para o processo, contudo, nunca depois da realização da assembleia de apreciação do relatório do administrador de insolvência;

c) – De acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 236.º do CIRE, o juiz deve rejeitar sempre o pedido se for apresentado após a assembleia de apreciação do relatório, enquanto decide livremente sobre a admissão ou rejeição se for apresentado no período intermédio;

d) – Período intermédio significa o que decorre entre a citação e a realização da assembleia;

e) – O pedido de exoneração do passivo restante pressupõe a insolvência, sendo uma confissão ficta de tal situação;

f) O requerimento contendo o pedido de exoneração do passivo restante foi apresentado logo após a notificação dos requerentes da sentença de declaração de insolvência e com cerca de 1 mês e meio de antecedência da marcação da assembleia de apreciação do relatório do administrador de insolvência;

g) – Tal como é defendido por Carvalho Fernandes não é verdade que a apresentação do pedido fora de prazo determine, sem mais, o seu indeferimento liminar, tal só acontecendo se, cabendo a iniciativa do processo da insolvência a terceiro, o pedido de exoneração for apresentado após a realização da assembleia de apreciação do relatório do administrador da insolvência, sendo que, nos demais casos, a extemporaneidade do pedido só por si não releva para efeito de indeferimento liminar, cabendo ao juiz apreciar livremente se deve ser admitido ou rejeitado o pedido, em função de outros dados (substanciais) que o processo releve e da posição assumida pelos credores e pelo administrador da insolvência na assembleia de apreciação do relatório;

h) – O tribunal a quo não podia indeferir liminarmente o pedido somente com fundamento na alín. a) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE uma vez que este fundamento necessitava de, a jusante, ser coadjuvado com os demais requisitos substanciais exigidos do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE;

i) – Existe contradição com o regime legal preconizado com o n.º 2 do art.º 238.º, pois, caso o tribunal a quo julgasse que o pedido era extemporâneo, deveria ter proferido despacho dentro do prazo anterior à assembleia de apreciação do relatório do administrador da insolvência;

j) – A Ex.ma Juíza solicitou que somente a comissão de credores se pronunciasse, esquecendo e não inquirindo os restantes credores, o que constitui uma violação do princípio da igualdade, quando estes se deverão pronunciar sobre os requisitos materiais/substanciais;

            Cumpre apreciar, singularmente, dada a simplicidade da questão, ao abrigo do disposto no art.º 705.º do CPC.

A única questão que nos é colocada consiste em saber até quando pode ser formulado o pedido de exoneração do passivo restante no caso de a insolvência ser requerida por um credor – se apenas no prazo de 10 dias após a citação dos requeridos (como entendeu o despacho recorrido), se até ao termo da assembleia de credores de apreciação do relatório do administrador da insolvência (como pugnam os recorrentes).


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            II. Fundamentação

            1. De facto

            O quadro factual relevante para a resolução dessa questão é o constante do antecedente relatório.


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            2. De direito

            Dispõe o art.º 236.º, n.º 1 do CIRE (diploma a que nos reportaremos desde que outro se não indique) que “o pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação e será sempre rejeitado se for deduzido após a assembleia de apreciação do relatório; o juiz decide livremente sobre a admissão ou rejeição de pedido apresentado no período intermédio”.

            E o n.º 1, alín. a), do art.º 238.º, que o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se for apresentado fora de prazo.

            A resposta a dar à questão colocada passa por saber qual o alcance daqeula expressão “período intermédio”.

            O despacho recorrido louvou-se numa anotação àquele art.º 236.º de Carvalho Fernandes e João Labareda[1] em como “por período intermédio, para o prazo de 10 dias ter sentido, tem de se entender o período de tempo que, com observância desse prazo, decorra entre a situação e o termo da assembleia”.

            E porque o pedido foi feito muito para além do prazo de 10 dias que decorreu entre a citação e o termo da assembleia, decidiu-se pela extemporaneidade do pedido.

            Trata-se de uma interpretação, salvo o devido respeito, cujo alcance se tem dificuldade em conceber, desde logo porque a citação a que tal preceito alude destina-se a deduzir oposição à insolvência (e também à informação da possibilidade de ser solicitada a exoneração do passivo restante, como no caso assim se procedeu – art.º 236.º, n.º 2) e a assembleia de credores para apreciação do relatório é marcada na sentença que declara a insolvência entre o 45.º e o 75.º dia subsequente (art.º 36.º, alin. n)).

            Cremos, contudo, que, pese embora a discutível perfeição dos preceitos em causa em termos de técnica legislativa, é outra a interpretação a fazer do preceito e da expressão “período intermédio”.

            Aliás, será legítimo admitir que aqueles Autores a terão abandonado, uma vez que num estudo recentemente publicado[2] destacaram que “período intermédio” significa o que decorre entre a citação e a realização da referida assembleia”, sendo que na anotação ao mencionado art.º 236.º do Código Anotado tinham mencionado que no caso de apresentação do devedor “período intermédio, é todo o que decorre após a petição e também até final da assembleia de credores a que se refere o art.º 156.º”.

            É esse, com efeito, o sentido da norma quanto ao período em que o devedor pessoa singular pode solicitar a exoneração do passivo restante, novidade inspirada no direito alemão e determinada pela necessidade de conferir aos devedores (pessoas singulares) uma oportunidade de começar de novo a sua actividade económica (fresh start).

            Com efeito, o que resulta da parte final do art.º 236.º é que a rejeição do pedido apenas pode ocorrer se este for apresentado após a assembleia de apreciação do relatório, sendo que o decurso do prazo de 10 dias após a citação não preclude a possibilidade de o devedor apresentar mais tarde (até ao termo da assembleia) esse requerimento.

            Da conjugação desse preceito com a alín. a) do n.º 1 do art.º 238.º resulta que quando este comina com o indeferimento liminar o pedido de exoneração “apresentado fora de prazo” quer referir-se “ao pedido que for apresentado após a assembleia de apreciação do relatório”.[3]

            A diferença, referida na lei (que na prática não se vislumbra o alcance útil) entre apresentar o requerimento naquele prazo de 10 dias ou após e até à assembleia está em que nesta última hipótese o juiz “decide livremente”, mais amplamente, talvez, (que nunca arbitrariamente), do destino do prédio.

            O critério que deve presidir a tal decisão há-se dizer respeito à vontade e à concreta capacidade do devedor para cumprir as exigências legais do instituto em causa[4], lançando mão dos dados substanciais que o processo revele e da posição assumida pelos credores e pelo administrador da insolvência na assembleia.[5]

            Do exposto resulta que o despacho recorrido interpretou incorrectamente a alín. a) do n.º 1 do cit. art.º 236.º, uma vez que se tem por atempado o pedido formulado pelos recorrentes, cumprindo apreciá-lo livremente, o que não poderá deixar de passar pela análise das demais alíns. do n.º 1 do ar.º 238.º e não, passar já, ou tão pouco, ao despacho inicial do art.º 239.º, como os recorrentes sustentaram, sendo que os credores (e não apenas a comissão de credores como referem os recorrentes, assim se não menosprezando o princípio da igualdade) e o administrador da insolvência já sobre ele se pronunciaram, em sentido negativo, aliás.

            O art.º 715.º do Cód. Proc. Civil arvorou em regra a substituição da Relação ao tribunal recorrido, mas com a reserva de dispor dos elementos necessários à decisão (n.º 2).

            Ora, acontece que só o processo de insolvência (e seu anexos, v. g. o incidente de qualificação que com carácter pleno foi declarado aberto) pode fornecer os elementos de facto necessários à apreciação do pedido que, por isso, compete à 1.ª instância.


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            3. Resumindo e concluindo e em jeito de sumário (art.º 713.º, n.º 7 do CPC):

            a) – A apresentação fora de prazo, causa de indeferimento liminar, do pedido de exoneração do passivo restante a que alude a alín. a) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE reporta-se à apresentação após a realização da assembleia de apreciação do relatório do administrador da insolvência;

            b) – O decurso do prazo de 10 dias a contar da citação a que se reporta a 1.ª parte do n.º 1 do art.º 236.º do CIRE não preclude a possibilidade de o devedor apresentar o requerimento de exoneração até ao termo daquela assembleia;

            c) – Nessa circunstância, o juiz decide por sua livre decisão e mais amplamente do destino desse pedido, em função dos dados substanciais constantes do processo sobre o mérito do comportamento dos devedores, v. g., os que se reportam às diversas alíns. b) a g) do n.º 1 daquele art.º 238.º e da posição assumida pelos credores e pelo administrador da insolvência na assembleia de apreciação do relatório.


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            III. Decisão

            Face a todo o exposto, julgando-se apresentado em tempo o requerimento de exoneração do passivo restante, decide-se julgar procedente, nos termos referidos, a apelação e, assim, revogar a decisão recorrida, devendo a 1.ª instância pronunciar-se sobre a admissibilidade ou rejeição do pedido apresentado naquele requerimento, nos termos acima apontados.

            Custas pela massa insolvente.


[1] “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, Anot.”, 2008, pág. 780.
[2] “Colectânea de Estudos sobre a Insolvência”, Quid Juris, 2009, pág. 283 e nota 18.
[3] É esta a posição de Meneses Leitão, “Direito da Insolvência”, Janeiro de 2009, pág. 307, Maia do Rosário Epifânio, “Manual de Direito da Insolvência”, Outubro de 2009, pág. 267, C. Fernandes e J. Labareda, “CIRE, Anot.”, pág. 784 e “Colectânea” cit., pág. 283.
[4] Maria do Rosário Epifânio, ob. cit., pág. 268 e citação, na nota 745, de Assunção Cristas, “Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante”, Themis, 2005, pág. 168.
[5] C. Fernandes e J. Labareda, “Colectânea”, pág. 284.